No início da semana, 62 organizações e entidades dos movimentos sociais baianos divulgaram, em conjunto, uma carta aberta que denuncia o aumento da violência contra a população negra na Bahia. A iniciativa busca pressionar as autoridades a tomarem medidas diante do agravamento da repressão policial no estado e do descaso na proteção das comunidades do campo, como acampamentos, assentamos, áreas indígenas e quilombolas.
“A histórica desigualdade social baiana e brasileira, que cresce neste estágio da sociedade racista, patriarcal e capitalista neoliberal, acresce também cada vez mais a violência sob o impacto da militarização pesada dos grupos criminosos locais, em aliança com as facções do eixo sudestino, importando um modo de agir caracterizado pela desocupação forçada de imóveis e até usando moradores como reféns”, destaca um dos trechos da carta.
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O documento denuncia que o aumento da violência urbana e rural é resultado da chamada “guerra às drogas” e ao narcotráfico, parte de um conjunto de políticas genocidas adotadas pelo Estado.
“Essa política de segurança, ineficaz e ineficiente, não reduz os índices de criminalidade e a insegurança da população só aumenta”, diz a carta, apontando que os resultados desse embate têm sido mais confrontos armados com perdas de vidas negras e pânico para a comunidade.
Os autores da carta também chamam atenção para os dados de letalidade policial em 2022, onde a Bahia ocupou o primeiro lugar do ranking. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), o estado responde por 22,77% das ocorrências nacionais.
No último domingo (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos, os manifestantes estenderam uma faixa entre dois barcos que percorreram o Porto da Barra em direção ao Farol da Barra, um dos principais pontos turísticos de Salvador, dando destaque à denúncia do manifesto com a frase: “A Bahia é o estado que mais mata o povo negro. #ViverÉDireito”. Ao longo do mês de dezembro, outras ações de denúncia também serão realizadas pela capital baiana.
Leia a carta na íntegra:
CARTA À SOCIEDADE CIVIL E AO ESTADO BAIANO
Os territórios negros centrais ou periféricos da cidade de Salvador e várias cidades do interior baiano vêm registrando a intensificação do confronto armado, que envolve a disputa de poder e território entre facções criminosas rivais e a atuação das forças repressivas do Estado.
À histórica desigualdade social baiana e brasileira, que cresce neste estágio da sociedade racista, patriarcal e capitalista neoliberal, acresce também cada vez mais a violência sob o impacto da militarização pesada dos grupos criminosos locais, em aliança com as facções do eixo sudestino, importando um modo de agir caracterizado pela desocupação forçada de imóveis e até usando moradores como reféns.
Sabe-se o quão desafiador é o enfrentamento dessa problemática, mas não se pode esvaziar o debate e naturalizar a ideia de que o enfrentamento deva passar apenas pela esfera de uma repressão estatal a esses territórios e comunidades. O que se nota é um modelo operativo com ações características de uma guerra regular, que gera pânico e mortes nas comunidades negras.
A manutenção dessa guerra não se restringe ao modelo de segurança pública adotado, mas sim ao conjunto de políticas genocidas que vão desde a eliminação física dos corpos e a desagregação dos territórios negros pela negação do direito à moradia digna, à saúde, à educação, ao transporte público de qualidade, ao trabalho e renda dentre outros direitos.
Assim, a alegada razão para o aumento da violência nesses bairros tem sido o combate à criminalidade, a militarização das comunidades pelas facções e, de modo mais geral, a chamada “guerra às drogas” e ao narcotráfico. Se as drogas estão em todos os espaços, inclusive nos bairros de classe média e alta, porque somente os territórios negros são os alvos dessas operações repressivas, que somaram 380 mortes, entre janeiro e novembro de 2023?
O aumento da repressão não é uma exclusividade dos territórios urbanos. Nas comunidades rurais, a violência se intensifica com a incidência das milícias rurais e da pistolagem, principalmente nos territórios tradicionais (quilombolas, fundo e fecho de pasto, indígenas, pesqueiras/marisqueiras etc.), para onde avança a fronteira agrícola. Nesses espaços, em geral, a violência ocorre em virtude da omissão do Estado em processos de regularização fundiária, inclusive onde há fortes indícios de grilagem de terras devolutas. Assim prosseguem as mortes e violações de direitos, que afetam famílias vivendo há gerações nesses territórios, cada vez mais cobiçados pelo agronegócio, mineração, especulação imobiliária e grandes empreendimentos.
Essa política de segurança, ineficaz e ineficiente, não reduz os índices de criminalidade e a insegurança da população só aumenta. Os resultados têm sido mais confrontos armados com perdas de vidas negras, prejuízos à economia dos bairros populares, adoecimento psíquico, desespero e pânico para a comunidade, principalmente as mães que perderam ou que temem perder os seus filhos.
Segundo o Anuário de Brasileiro de Segurança Pública (2023), a Bahia ocupou o primeiro lugar no ranking de letalidade policial em 2022, respondendo por 22,77% da letalidade das ocorrências nacionais, quando apenas uma vítima das 299 pessoas mortas pela polícia era branca, conforme o estudo (“Pele Alvo: a cor que a polícia apaga”, 2022). Até quando o racismo estará presente nas práticas de “segurança pública”?
O Estado brasileiro não pode apostar na violência como estratégia de segurança pública, e negligenciar as demandas populares e a necessidade de reparação histórica aos povos. A universalização da educação pública de qualidade; o reconhecimento, demarcação e regularização dos territórios camponeses, indígenas, quilombolas e extrativistas; a presença efetiva com unidades de saúde e atendimento psicossocial adequados às necessidades de cada grupo; a capacitação técnico-profissional e estímulos creditícios amplos à economia social comunitária; equipamentos recreativos e culturais, com apoio à produção e valorização das iniciativas locais, dentre outras políticas públicas são condições fundamentais para possibilitar a inserção desses territórios e povos aos espaços de cidadania.
Neste final de ano, quando vivenciamos de maneira mais intensa a solidariedade, convocamos a sociedade a compreender a urgência e a necessidade de apoiar esta pauta. Para além da responsabilização do Estado, como podemos nos solidarizar com as famílias e comunidades que sofrem as consequências dessa guerra?
Salvador, 11 de dezembro de 2023
1. Associação dos/as Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR)
2. Ação Social Arquidiocesana (ASA)
3. ABJD
4. Agência 10envolvimento
5. ANAJUDH-LGBT
6. Articulação dos Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador
7. Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado
8. Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (AMDH)
9. ASCOMBAVE
10. Associação de Trabalhadores de Base – Bahia (ATB Bahia)
11. Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
12. Cáritas Brasileira Regional Nordeste 3
13. CDDH Dom Tomás Balduíno
14. Centro Alternativo de Cultura (CAC)
15. Centro Burnier
16. Centro de Estudos Bíblicos (CEBI)
17. Centro de Estudos e Ação Social (CEAS)
18. Centro de Estudos Victor Meyer (CVM)
19. Centro de Promoção de Agentes de Transformação (CEPAT)
20. Coletivo Buranhém
21. Coletivo de Familiares de Pessoas Privadas da Liberdade Bahia
22. Coletivo Guardiões da APA Bacia do Cobre/São Bartolomeu
23. Comissão Pastoral da Terra (CPT)
24. Comunidades Eclesiais de Base (CEBS)
25. Conselho Ecumênico Baiano de Igrejas Cristãs Cristãs (CEBIC)
26. Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE)
27. Defensoria Regional de Direitos Humanos da Bahia
28. Federação Regional dos Urbanitários do Nordeste (FRUNE)
29. Fórum Permanente de Itapuã
30. Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência
31. Frente Estadual pelo Desencarceramento Bahia
32. Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP)
33. Grupo GeografAR – Universidade Federal da Bahia (UFBA)
34. Grupo Tortura Nunca Mais – Bahia
35. Igreja Batista Nazareth
36. Instituição Beneficente Conceição Macedo (IBCM)
37. Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU)
38. Instituto de Geociências – Universidade Federal da Bahia (UFBA)
39. Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC)
40. Instituto de Saúde Coletiva (ISC-UFBA)
41. Juspopuli Escritório de Direitos Humanos
42. Juventude Ativista de Cajazeiras (JACA)
43. ManifestA ColetivA
44. Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
45. Movimento dos Trabalhadores Assentados Acampados e Quilombolas (CETA)
46. Movimento Luta pela Terra
47. Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) – Brasil
48. Núcleo de Pesquisa, Mídias e Arte (NUPOMAR)
49. Odara Instituto da Mulher Negra
50. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA)
51. Observatório Rio Pardo Vivo e Corrente
52. OPIAJBAM
53. Paróquia Anglicana do Bom Pastor
54. Pastoral Operária Salvador
55. Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil
56. Presbitério do Salvador da Igreja Presbiteriana Unida
57. Rede das Escolas Família Agrícola Integradas do Semiárido (REFAISA)
58. Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES)
59. Serviço de Apoio Jurídico da Universidade Federal da Bahia (SAJU)
60. TRAMA
61. Unidade Força Feminina – Rede Oblata Brasil
62. Quilombo do Orubu