“Nós, quilombolas, somos apenas suportados no Brasil. Mesmo cuidando, protegendo e dando a nossa vida em defesa de um coletivo, não conseguimos ter visibilidade ou muito menos sermos respeitados”. É o que explica Antônio Crioulo, um dos coordenadores executivos da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) presente na COP27, em Sharm El- Sheikh, no Egito.
Nesta edição da 27° Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (a COP27), onze integrantes da Conaq buscam ocupar mais espaço nas discussões sobre clima e almejam um maior reconhecimento sobre as ameaças e impactos das mudanças climáticas em suas comunidades.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Em 2022, por exemplo, o estado de Pernambuco foi prejudicado por chuvas e enchentes severas, que causaram mais de 120 mortes. De acordo com matéria publicada na Alma Preta Jornalismo, as comunidades quilombolas de Povoação de São Lourenço e a Onze Negras sofreram com as perdas de casas e móveis, além da colheita.
Outro exemplo de impacto sobre os quilombolas ocorre no Pantanal, onde as comunidades têm sofrido com as consequências dos incêndios dos últimos anos. Em 2020, moradores do Quilombo de Mata-Cavalo de Baixo, no Mato Grosso, relataram a perda de plantações de variadas espécies.
Os territórios quilombolas também sofrem com a contaminação por agrotóxicos, destruição de casas e plantações e perda de parte do território por fazendeiros, grileiros e empresários. São os casos encontrados no Território Quilombola de Volta Miúda, na Bahia, e o de comunidades quilombolas dos municípios de Bujaru e de Concórdia, no Pará, que foram cercados pelo monoculturas de eucalipto e de dendê, respectivamente, e viram a perda progressiva da biodiversidade em suas regiões.
A não efetivação de políticas públicas que protegem o território contra invasões é outro desrespeito ao modo de vida dos quilombolas, segundo Crioulo. O coordenador executivo da Conaq acredita existir uma negação do direito à terra para as comunidades tradicionais. “Nós somos um contraponto ao processo de mercantilização dos territórios e a resistência contra a mineração que degrada cada dia o nosso patrimônio territorial”, comenta.
Dados da Comissão Pastoral da Terra revelam que, nos primeiros oito meses de 2021, 418 territórios sofreram violências por conta da ocupação e da posse por parte de fazendeiros e grileiros, sendo que 23% das terras eram quilombolas.
Apesar das dificuldades, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP) entre novembro de 2019 e março de 2022, não visitou um único quilombo no Brasil, segundo apuração da Alma Preta Jornalismo. Uma das funções da FCP é a garantia de assistência jurídica em diferentes níveis, visando a defesa do território quilombola contra invasões ou qualquer outro tipo de violência.
A ausência de diálogo com o poder público tem estimulado a Conaq a buscar espaços internacionais para dar mais visibilidade às comunidades quilombolas, como protetoras do meio ambiente e afetadas pelas mudanças climáticas.
“É para darmos visibilidade às nossas ações [de cuidado e de preservação do território] que nós vimos a necessidade de estar desde o ano passado nessas COPs. É um espaço onde o mundo está voltado, onde a gente está conseguindo dizer que existimos, protegemos o meio ambiente e que precisamos ser incluídas nesse processo. Nós queremos ser envolvidos, porque nós sabemos como manter o meio ambiente e ter também desenvolvimento”, explica Sandra Maria Andrade, coordenadora executiva da Conaq.
Mapeamento também feito pela Conaq em 147 territórios quilombolas revelam que 90% da cobertura do solo nos territórios mapeados é constituída por florestas naturais. Também 83% dos territórios quilombolas mapeados produzem alimentos por meio de práticas agroecológicas que apresentam diversidade de espécies vegetais.
“Nós entendemos que o território é o espaço da nossa existência. Um quilombola desterritorializado é um quilombola sem vida e sem referência. Não há quilombola sem o território, sem meio ambiente. O convívio harmonioso com o meio ambiente é o que nos garante o direito de existir. E a existência está acima da questão econômica”, ressalta Antônio Crioulo.
Invisibilização e racismo
Esta é a primeira vez, desde a primeira edição da COP em 1995, em que há um grande número de quilombolas na conferência climática. Na COP26, realizada em Glasgow, no Reino Unido, houve a participação de quatro representantes. Já na COP25, realizada em Madrid, na Espanha, apenas uma quilombola foi identificada.
Nos outros anos, não há identificação da militância quilombola organizada no evento, mesmo que a construção da conferência tenha se iniciado em 1992, quando a ONU organizou a ECO-92, no Rio de Janeiro.
Katia Penha, coordenadora nacional da Conaq explica que, para a participação na conferência das comunidades quilombolas acontecer, houve muita articulação da organização para mostrar a importância dos quilombolas na luta pela regularização fundiária também como forma de proteção da natureza e no combate ao racismo ambiental. “Tem uma trajetória de invisibilidade dos quilombos no Brasil dentro da proteção ambiental. É como se no Brasil não existisse quilombolas e que eles são um dos grupos que também protegem a natureza e estão dentro dos biomas”, comenta.
Segundo ela, o racismo faz parte do motivo da não presença específica quilombola anteriormente nas discussões globais sobre as mudanças climáticas. Ela explica que o racismo no Brasil apaga as singularidades das pessoas negras, inclusive a negritude do campo e das florestas de pessoas quilombolas.
“Acham que todo preto é o mesmo. Que toda a história, toda a vivência da negritude, mesmo aquele que mora no campo, aquele que mora na cidade, aquele que mora nas águas, são as mesmas. E não é assim, temos especificidades diferentes. O meu modo de ver a terra é diferente daquele que mora na cidade”, explica.
O antropólogo Antônio Crioulo, coordenador executivo da Conaq, complementa que é por conta do processo de racismo, embranquecimento e invisibilização que não é dito também o quanto a população quilombola tem ajudado a proteger os biomas e o patrimônio ambiental brasileiro ao longo do tempo. “Nós queremos dizer a toda a população mundial que as comunidades quilombolas sabem cuidar. Se eles querem realmente diminuir a poluição e a emissão de carbono, eles devem se inspirar na maneira como a gente trata o meio ambiente”, pontua Antônio Crioulo.
O reconhecimento dos quilombolas no Brasil e o seu direito ao território estão na Constituição Federal de 1988, mas apenas próximo aos anos 2000 políticas públicas, como a de regularização fundiária, começaram a ser efetivadas.
A titulação das terras, fundamental para o processo de garantia dos direitos às comunidades tradicionais e assegurada na Constituição Federal, passa por diferentes fases: autorreconhecimento, certificação e processo de titulação. A primeira etapa começa com o certificado de autorreconhecimento na FCP e segue para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão responsável pelo levantamento territorial e estudos antropológicos e históricos para a demarcação da área a ser titulada.
Segundo Sandra e Antônio, a regularização das terras é o importante carro-chefe entre as demandas quilombolas por efetivação de seus direitos, porque o território é a base das comunidades. No dia 11, sexta-feira, os quilombolas participaram de reunião com a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e sinalizaram a importância da regularização das terras para a proteção ambiental.
“Nós não queremos ter o território para comercializar. O nosso território é pra viver, passar de geração a geração. É por isso que a nossa titulação é coletiva e inalienável, que não pode ser vendida. É para que os jovens tenham onde ficar e dar continuidade assim como a gente teve também. O capitalismo não entende esse modo diferenciado e único”, finaliza Sandra Maria Andrade, coordenadora executiva da CONAQ.
Menos de 5% dos quilombos no país foram titulados desde que a política entrou em vigor. De acordo com a Conaq, no governo Bolsonaro, apenas oito quilombos foram titulados parcialmente por força de decisão judicial: Paiol de Telha (no Paraná); Kalunga (em Goiás); Lagoa dos caminhos (em Sergipe); Mangues (em Minas Gerais); Serra da Guia, Brejo dos Negros e Lago dos Campinhos (em Sergipe).
Segundo o relatório “A conta do desmonte” do Inesc, em 2021, durante o governo Bolsonaro, foram autorizados apenas R$ 340 mil para ação de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, dos quais foram pagos somente R$ 164 mil.
De acordo com Antônio Crioulo, a Conaq surge para os quilombolas conseguirem um corpo mais coletivo aos processos de construção e luta por seus direitos. Jhonny Martins, também integrante da Conaq, explica que antes da criação da organização não havia uma articulação nacional entre os, pelo menos, 5.972 quilombos existentes no país. “Existiam articulações regionais, por meio também das organizações negras, mas não uma articulação nacional como hoje existe com a Conaq”, acrescenta.
Crioulo complementa que é a partir dessa criação que os quilombolas conseguem lutar pela normatização dos direitos e por estar nos espaços decisórios. “Nós acreditamos que nenhuma política deve ser feita de cima pra baixo, mas, sim, que as políticas públicas precisam respeitar e garantir a presença dos beneficiários”, finaliza o coordenador executivo Antônio Crioulo.
Na falta de quilombolas e indígenas nas discussões do espaço do governo federal na conferência, conforme programação divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente, a importância quilombola no enfrentamento à degradação ambiental foi discutida ao longo dos painéis de abertura do espaço da sociedade civil. A luta social quilombola e sua ação de transformação por justiça climática foi um dos temas da última terça (8) do Brazil Climate Action Hub, estande da sociedade civil.
“O debate ambiental sem discutir raça e sem colocar a pauta negra está fracassado. Não tem como continuar debatendo e discutindo sobre o ambiente sem ouvir quem de fato é impactado. A gente não precisa de voz porque a gente sabe falar, o que a gente precisa é de ampliar as nossas vozes e o espaço onde nossos corpos pretos possam ocupar”, reforça a secretária-executiva da Conaq Selma Dealdina durante painel no espaço da sociedade civil.
Leia também: Governo Bolsonaro não fará debates sobre indígenas e quilombolas na COP