“Espero que você perca seu mandato, vá para a cadeia e sirva de mocinha para os presos. Invadir uma igreja, isso não tem perdão”, escreveram ao vereador de Curitiba Renato Freitas (PT-PR). No dia seguinte a uma manifestação em memória e por justiça aos assassinatos de Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, as caixas de mensagens do parlamentar estavam lotadas de ameaças, frases racistas, depreciativas e caluniosas.
O vereador, que foi tido como o líder da manifestação que adentrou uma igreja no centro histórico da capital paranaense, foi denunciado à Comissão de Ética da Câmara Municipal e corre o risco de perder o mandato. As 30 testemunhas de defesa começaram a depor nesta segunda-feira (28). As oitivas estão previstas para terminar no dia 11 de abril, quando também depõe o parlamentar.
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Atos em homenagem ao jovem congolês, morto por espancamento no início do ano, em um quiosque no Rio de Janeiro, aconteceram no dia 5 de fevereiro, em 13 capitais brasileiras. Em Curitiba, manifestantes de pelo menos sete grupos distintos, entre eles o Movimento Negro Evangélico do Paraná, o Movimento dos Policiais Antifascismo e o Movimento Negro Unificado do Paraná se reuniram na Praça do Largo da Ordem, em frente a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, símbolo da resistência negra na região.
Segundo participantes, para não atrapalhar a missa que acontecia naquele momento, o grupo se afastou um pouco, permanecendo do lado de fora do templo. Algumas pessoas tentaram entrar pela porta da frente, mas ela foi fechada por fiés que se opuseram ao ato. Os manifestantes então se dirigiram à porta lateral, que estava aberta, e adentraram a igreja, permanecendo em seu interior entre 8 e 12 minutos, logo após o término da missa, como mostra o vídeo de transmissão ao vivo da celebração, disponível no YouTube.
Na ocasião, a Arquidiocese de Curitiba classificou as manifestações como “agressividades e ofensas” e disse que o ato foi uma “profanação injuriosa”. O presidente Jair Bolsonaro (PL) chamou os manifestantes de marginais e pediu a intervenção do ministério da Justiça e da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Os dias que se seguiram foram regados a ataques. “Eu iriei guiá-lo até a sua cova, aguarde até o fim do mês”, “Macaco filho da p…, vai terminar igual a Marielle”, diziam algumas das mensagens privadas recebidas por Renato Freitas e que a Alma Preta Jornalismo teve acesso.
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O vereador Renato Freitas em sessão da Câmara Municipal de Curitiba (PR). Foto: CMC/Divulgação
O que diz a acusação
Ao todo, cinco representações por quebra de decoro parlamentar foram aceitas pela Câmara Municipal de Curitiba para instaurar o Processo Ético Disciplinar. Nesses documentos existem três fatos a serem julgados – a perturbação e a interrupção da prática de culto religioso e de sua liturgia; a entrada não autorizada de manifestantes no templo; e a realização de ato político no interior da Igreja.
De acordo com as acusações, Freitas infringe, além do Código de Ética, o artigo 5º da Constituição Federal que assegura o livre exercício de culto religioso e garante a proteção a locais de culto e suas liturgias. Ainda, uma das bases da argumentação dos representantes é o artigo 208 do Código Penal. A legislação condena, dentre outras ações, o ato de “impedir ou pertubar cerimônia ou prática de culto religioso”, sob pena de detenção, de um mês a um ano ou multa.
Os vereadores Osias Moraes e José Bezerra disseram, em sua representação, que lideranças do grupo tiveram “comportamentos invasivos, desrespeitosos e grotescos”, dentre eles Renato Freitas. “Agindo com agressividade e ofensas”.
Já o vereador Éder Borges declarou que Freitas, juntamente com “sua turba enfurecida, por meio de intimidação e atos violentos”, adentraram a igreja e interromperam a missa que, segundo ele, estava em pleno andamento.
O que diz a defesa
Representada pelo advogado Guilherme Gonçalves, a defesa de Renato Freitas diz que a narrativa é distorcida para responsabilizar, individualmente, o vereador que “jamais extrapolou o limite da liberdade do direito de manifestar-se”. Segundo a defesa, Freitas participou do ato “na condição de cidadão” e não liderou uma manifestação orgânica composta por centenas de pessoas, o que não configuraria quebra de decoro.
No documento entregue ao Conselho de Ética, a defesa demonstra, conforme vídeo disponível no Youtube, que o grupo de manifestantes não entrou na igreja enquanto a missa ocorria e, sim, cerca de seis minutos após o término, quando já estava praticamente vazia. O Padre Luiz Haas, sacerdote que celebrava o rito no dia da manifestação, enfatizou que “a missa já havia acabado” quando o grupo adentrou o templo e que “em nenhum momento quebraram e nem danificaram nada dentro da igreja”.
Sobre a realização de ato político dentro da igreja, a defesa alega que em nenhum momento o vereador Renato Freitas porta bandeiras ou objetos relacionados ao PT, legenda da qual faz parte. O Código Eleitoral assegura, ainda, que as manifestações “proferidas em locais em que se desenvolvam atividades acadêmicas ou religiosas, tais como universidades e templos, não configuram propaganda político-eleitoral e não poderão ser objeto de limitação”.
De acordo com Freitas, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos é um local que foi construído por escravisados, em 1737, “justamente porque os negros, nossos ancestrais, não podiam frequentar outras igrejas”. Ele afirma que o grupo não forçou a entrada no recinto, mas sim, utilizaram a porta lateral, que estava aberta. Para a defesa, uma manifestação pelo direito a vida de milhões de pessoas, contra o racismo, a xenofonia e o genocídio causa mais comoção e reações adversas que os próprios assassinatos de pessoas negras.
Desdobramentos
Para apresentar pareceres contrários ou a favor de Renato Freitas, o Conselho de Ética elegeu como relator e vice-relatora do processo os vereadores Sidnei Toaldo (Patriota) e Maria Letícia Fagundes (PV), respectivamente. Toaldo é um parlamentar da base governista que, segundo fontes na Câmara Municipal, pode apresentar um parecer mais desfavorável ao mandato. Já Maria Letícia faz parte do mesmo bloco partidário do PT, o que pode trazer a possibilidade de um relatório diferente do primeiro relator.
Se condenado, as penalidades impostas a Freitas podem variar entre censura pública, que consiste na exposição em diversos veículos e meios de comunicação para um pedido de desculpas; suspensão de prerrogativas regimentais, que pode ser a suspenção das atividades na Câmara por alguns dias ou a perda do poder de fala durante as sessões por tempo determinado; e, em última instância, a perda do mandato.
Nesta segunda-feira (28) a Arquidiocese de Curitiba sugeriu que o parlamentar não receba a penalidade máxima da Câmara Municipal. A instituição religiosa disse, em nota, que “houve alguns excessos” e que seria necessária uma medida disciplinadora proporcional ao incidente, mas pediu que se evitem “motivações politizadas”. A Arquidiocese afirmou, ainda, que a movimentação contra o racismo é legitima, fundamenta-se no Evangelho e “sempre encontrará o respaldo da Igreja”.
O vereador acusado procurou as autoridades religiosas, reconheceu o seu erro e pediu desculpas publicamente. Além disso, recolheu mais de 13 mil assinaturas de pessoas que apoiam a continuidade de sua atividade política.
Aos 37 anos, Renato Freitas é professor universitário, mestre em Direito Penal, Criminologia e Sociologia da Violência e advogado popular. Foi o 16º candidato a vereador mais votado de Curitiba nas Eleições de 2020. Essa foi a terceira eleição que ele disputou. Em 2018, concorreu a uma vaga na Assembleia Legislativa do Paraná, também pelo PT, quando obteve mais de 15 mil votos.
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