A legalização da maconha somente será efetiva se considerar a justiça social para os grupos perseguidos pela proibição, como os negros e latinos; Entenda sobre o assunto no texto do historiador Henrique Oliveira* para a Smoke Buddies
Texto / Henrique Oliveira
Imagem / #PraCegoVer
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Estreou no sábado (20), na Netflix, na data em que se celebra no mundo todo “O dia da maconha”, o documentário “Grass in Greener”, que para a versão em português ganhou a estratégica tradução de “Baseado em fatos raciais”.
A produção é dirigida e narrada por Fred Brathwaite, que ficou conhecido como Fab5 Freddy, o primeiro apresentador de um programa de Rap na MTV. O documentário tem entrevistas com grandes nomes da música, que se envolveram durante a sua carreira com a bandeira da legalização da maconha, tais como Snoop Dogg, Cypress Hill, Run DMC e Damian Marley.
O documentário começa a ser construído a partir de um questionamento: Por que a maconha foi proibida nos EUA e por que agora ela está sendo aceita? Tendo uso medicinal regulamentado em 36 estados e o recreativo em 10. Segundo a pesquisa CBS News, que é realizada desde 1987, 65% dos norte americanosapoiam a legalização da maconha.
A história da maconha nos EUA guarda uma relação muito íntima com a história da música, sobretudo a música negra. Os primeiros defensores do uso legal de maconha nos EUA foram os músicos de Jazz, o cantor Cab Calloway inventou o termo “Reefer Man”, que dá nome a uma de suas músicas, que fala de tocar Jazz sob o efeito de maconha.
“Erva, bagulho, baseado e fumo” eram gírias usadas pelos músicos de Jazz, quando estavam cantando sobre maconha, esses termos acabaram se transformando nas gírias que utilizamos até hoje em dia. Os artistas de Jazz consideravam que o uso de maconha deixava a música mais lenta, permitindo a improvisação, músicos como Fasts Wallace e o consagrado pianista Duke Ellington utilizavam maconha como forma de estimular a criatividade.
Nos EUA, a maconha estava associada a dois grupos minoritários e marginalizados: afro-americanos e a cultura do Jazz em Nova Orleans, e aos mexicanos, ao ponto de deixarem de utilizar o nome cannabis, para popularizarem o nome “Marijuana”, porque era mais facilmente relacionado com os mexicanos. Um dos grandes medos propagados pelos brancos norte-americanos era que a maconha fosse utilizada para seduzir mulheres brancas, principalmente da região norte do país.
O cantor e instrumentista Louis Armstrong, nascido em James Alley, Nova Orleans, é uma das figuras mais importantes para o desenvolvimento do Jazz. Nos início da década de 1920, a maconha começou a ser proibida nos estados norte-americanos, no ano de 1930, Louis foi preso enquanto tocava no Cotton Club, na Califórnia, por fumar um baseado no lado de fora do local, durante o intervalo, juntamente com o seu baterista Vic Berton.
Na década de 1950, o Departamento de Estado dos Estados Unidos, a fim de limpar a imagem do país frente às acusações de racismo e segregação racial, passou a promover artistas e atletas negros a Embaixadores da Boa Vontade, com status de diplomata, que deveriam viajar pelo mundo defendendo a liberdade e os valores norte-americanos, sobretudo para fazer frente à União Soviética, num contexto de “Guerra Fria”.
#PraCegoVer: ilustrações, lado a lado, de dois filmes lançados décadas atrás que demonizavam a maconha. Neles lemos em destaque os títulos: “Devil’s Harvest” e “Reefer Madness”.
Ao voltar das viagens, Louis Armstrong sempre era dispensado da fiscalização na alfândega, mas em 1958 os agentes haviam sido alertados sobre a chegada de produtos contrabandeados, o que fez Louis Armstrong entrar na fila para ter a bagagem inspecionada, só que tinha um grande problema, uma mala com 1,3 quilos de maconha.
Foi então que apareceu nada mais, nada menos do que Richard Nixon, futuro presidente dos EUA, conhecido na década de 70 por declarar “guerra às drogas”, elegendo o consumo de drogas como inimigo público número 1 da nação. Ao reconhecer que Armstrong estava na fila, Nixon, que na época era vice-presidente, falou que embaixadores não precisavam ser fiscalizados pela alfândega, e que ele mesmo iria carregar a mala do cantor, dessa forma Nixon carregou uma mala de maconha para Armstrong. Louis chamava a maconha de “Gage”, para saber mais sobre a relação do cantor com a erva, leia aqui.
O grande arquiteto da proibição da maconha nos EUA chama-se Harry Ansliger, que foi comissário de narcóticos do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos, que alinhou o “vício” às pessoas negras. Em sua análise, os ditos “viciados” em maconha eram encontrados nas cidades de Nova York, Filadélfia, Pittsburgh, Detroit e Chicago, cidades com uma maioria da população negra. A partir de então, se iniciou uma produção de informações negativas, com narrativas assustadoras sobre o uso de maconha, associando maconha, loucura e crime, como o filme “Reefer Madness”.
A proibição da maconha nos EUA se relacionou com a estigmatização do Jazz, em lugares como Harlem em Nova York os eventos de Jazz possibilitavam uma integração entre negros e brancos, num momento em que o racismo era amplamente difundido e endêmico na sociedade norte-americana.
A ciência passou a ser utilizada para contra atacar, através da demonização dos efeitos da maconha, por exemplo, a alteração na percepção da passagem do tempo. Artistas como Billie Holiday, Monk e Charlie Parker foram perseguidos. Se quiserem saber mais sobre guerra às drogas e o Jazz, vou deixar essa referência que, no entanto, está em inglês “Racismo, Maconha e Jazz: A verdadeira origem da guerra às drogas”.
A ascensão do movimento Hippie e da contracultura levou ao endurecimento da política de drogas, quando, em 1971, o presidente Richard Nixon declara “guerra às drogas”, e a partir daí foi possível não só prender pessoas que vendiam e consumiam maconha, mas também prender os opositores da política: hippies e negros.
#PraCegoVer: imagem mostra diversas fotos recortadas de pés e flores de maconha, entre outras, e desenhos como as faces de Snoop Dogg e outros artistas esculpidas numa montanha vermelha (em alusão ao Monte Rushmore), bongs e outros; com o espaço sideral podendo ser visto acima das montanhas.
Ao colocar as drogas na mira da política repressiva, a guerra também se tornou contra as pessoas. Em 2016, a revista Harper’s publicou um artigo baseado numa entrevista com John Ehrlichman, ex-conselheiro para assuntos internos do presidente Nixon, dizendo que a “guerra às drogas” foi uma mentira inventada para se perseguir os movimentos antiguerra do Vietnã e os direitos da população negra: “A campanha Nixon em 1968, e depois a administração Nixon na Casa Branca, tinham dois inimigos: a esquerda antiguerra e a população negra.
Compreende? Sabíamos que não podíamos ilegalizar o ser-se contra a guerra ou negro, mas ao associarmos os hippies com a marijuana e os negros com a heroína, e criminalizando-os duramente em seguida, poderíamos desfazer essas comunidades. Podíamos prender os seus líderes, fazer buscas às suas casas, interromper as suas reuniões e difamá-los todas as noites nos noticiários. Se sabíamos que estávamos a mentir sobre as drogas? Claro que sabíamos”.
Enquanto o presidente Nixon declarava sua guerra às drogas, outro ritmo musical negro estava em ascensão: o Reggae.
Assim como os músicos de Jazz, o movimento rastafári também empunhou a bandeira pela legalização da maconha, Bunny Wailler, Bob Marley e Peter Tosh foram os precursores da popularização da maconha por meio do estilo surgido na Jamaica e que rapidamente se espalhou pelo mundo, com músicas como “Kaya”, em que Bob Marley diz “tenho que ter kaya(erva) agora”, e Peter Tosh, na música “Legalize It”, reivindicando de forma pioneira o uso medicinal, “faz bem para o resfriado, faz bem para asma, para tuberculose e até cura glaucoma”.
Na década de 80, o movimento Hip Hop se tornou o novo porta-voz em defesa da legalização da maconha no seio da comunidade negra norte-americana. Na década de 90, vários artistas do Rap apareceram na capa da revista High Time. Em 1993, o grupo Cypress Hill, um dos grupos responsáveis por defender o uso de maconha na cultura Hip Hop, desafiou a proibição e fumou maconha durante a apresentação no Saturday Night Live Stage, o que fez com o que o grupo nunca mais voltasse ao programa.
O primeiro álbum do mc e produtor Dr Dre se chamou “The Chronic” (1992), para fazer referência ao nome pelo qual a maconha era conhecida nas ruas de Los Angeles. Inclusive, “The Chronic” está nas listas dos 500 melhores álbuns de todos os tempos, segundo a revista Rolling Stones.
Legalização da maconha e reparação racial: Uma questão de justiça social
Atualmente nos EUA, o uso de maconha para fins medicinais e recreativos já está regulamentado para mais de 62% da população, são mais de 30 estados com uso medicinal e 10 com uso recreativo. Segundo o relatório do grupo financeiro RBC Capital Markets, em 10 anos as vendas legais de maconha podem chegar aos 47 bilhões de dólares.
Em 2018, a indústria legal da maconha movimentou 10,4 bilhões de dólares. O relatório da consultoria Whitney Economics demonstrou que, no ano passado, o mercado de trabalho na indústria da maconha aumentou 44%, com mais de 210 mil pessoas empregadas diretamente. A quantidade de trabalhadores na indústria da maconha supera, por exemplo, os setores de carvão com 52 mil trabalhadores e do álcool com 69 mil.
Porém, esse crescimento econômico não tem atingido a população negra, da mesma forma em que ela foi atingida com mais de 50 anos de proibição. Os EUA tem a maior população carcerária do mundo, das 2,2005 milhões de pessoas presas, 1,632 milhões estão presas pela lei de drogas. A maioria das pessoas presas nos EUA são negras, 659 mil presidiários, hoje tem mais negros nas prisões dos EUA do que escravos em 1850.
#PraCegoVer: fotografia mostra o momento em que um caminhão do exército transporta em sua caçamba três pessoas negras, juntas a um pé de maconha e escoltadas por cinco militares igualmente negros. Uma ocorrência durante a intervenção federal no Rio de Janeiro.
Entre os anos de 2000 e 2010, 7,6 milhões de pessoas foram presas por posse de maconha, e apesar dos estudos demonstrarem que não há diferença no consumo de maconha entre negros e brancos nos EUA, uma pessoa negra tem 375% mais chance de ser presa. Se o número de pessoas negras fosse o mesmo número de pessoas brancas presas, a população carcerária norte-americana diminuiria em 40%. Mesmo com o avanço na política de legalização e descriminalização, negros e latinos, os considerados não brancos, continuam sendo presos por posse de droga. Sobre a política de encarceramento em massa nos EUA é só assistir o documentário a 13ª Emenda, na própria Netflix.
As pessoas negras são donas de apenas 1% dos depósitos de maconha, a indústria da maconha vem crescendo, mas não está absorvendo pessoas negras, principalmente se elas tiverem algum tipo de acusação ou condenação por posse de maconha. Kassandra Frederique, diretora da Drug Policy Alliance (Aliança de Políticas de Drogas), uma organização fundada no início da década de 1980, que defende uma reforma e mudanças na política de drogas, aborda no documentário que antes de discutirmos sobre como será a estrutura de produção, cobrança de impostos e modelos regulatórios da maconha, nós precisamos resolver como sairemos dos problemas criados pela proibição, porque os danos foram abrangentes, por isso as soluções têm que ser mais profundas ainda.
O ativismo negro que luta contra a proibição da maconha nos EUA está discutindo a nível nacional a necessidade da legalização vir acompanhada de medidas com reparação racial à comunidade negra. Em Nova York, deputados negros estão travando a votação da legalização da maconha até que se incorporem propostas que visem repassar parte do dinheiro da venda para programas de treinamento profissional e que os empreendedores negros recebam licenças para cultivar ou vender maconha de forma mais simples.
A deputada federal Alexandria Ocasio Cortez defendeu uma espécie de “ação afirmativa” para o licenciamento de produtores negros e citou os estados do Colorado e Washington, em que 81% dos comerciantes de maconha são brancos. Em Nova Jersey também há uma pressão, para que seja criado um fundo que reinvista parte do dinheiro da venda nas comunidades negras, com a intenção de promover uma justiça racial.
Esse é um debate que nós teremos que fazer também aqui no Brasil, pois, assim como nos EUA, é a comunidade negra brasileira a principal impactada pela política de drogas, enquanto a favela e as pessoas negras são apontadas como as principais responsáveis pela violência do tráfico de drogas. A verdade é que a comunidade negra fica com o ônus da morte e encarceramento provocado pela política de guerra às drogas, pois a quantidade de dinheiro que o mercado proibido de drogas movimenta não é embolsada pela comunidade negra, que participa apenas no varejo, na ponta do comércio.
A política de drogas promove um verdadeiro massacre negro, ao mesmo tempo em que sabemos que são as pessoas brancas, agentes públicos e privados, que se beneficiam com o atual modelo de proibição das drogas, financiando campanha para partidos políticos e lavando dinheiro. Em tempo, indico a leitura do recente livro de Daniela Ferrugem, “Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial”.
O documentário “Baseado em fatos raciais” faz um convite para que pensemos numa legalização da maconha antirracista, pois se a política de proibição das drogas colocou as pessoas negras no centro, alvo prioritário da repressão, da mesma forma precisamos colocar as pessoas negras como as que precisam ser as principais beneficiadas do seu desmoronamento, porque, se não, poderemos até atacar o proibicionismo mas deixaremos intacto o seu pilar fundamental: o racismo.
*Henrique Oliveira é historiador e militante antirracista contra a proibição das drogas.
**Texto originalmente publicado em Smoke Buddies.
#PraCegoVer: fotografia (de capa) em primeiro plano de Fred Brathwaite, que ficou conhecido como Fab5 Freddy, usando óculos escuros e chapéu redondo de cor marrom, e soltando uma densa nuvem de fumaça branca.