Por: Regina Lucia dos Santos
Carnaval é uma festa pagã, que não é originária do Brasil, mas é neste país, nos séculos XX e XXI que o Carnaval deixa de ser só uma festa e passa a ser escola, educação, uma forma grande de resistência, de resiliência das comunidades, da população negra, pobre e periférica. É também o sustento de muitas famílias, o local de encontro, da descoberta do pertencimento, das parcerias, onde se encontra apoio pras horas difíceis. É subverter a individualidade exacerbada nos nossos dias para se voltar a um sentimento coletivo.
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Vou falar do aspecto da educação que o samba enredo assume. Aqui faço um parênteses, para contar uma história que faz parte da minha formação como mulher negra militante. Em 1978, ao ouvir o samba enredo da Beija Flor de Nilópolis, composto por Neguinho da Beija Flor, Gilson Dr e Mazinho, eu me encantei com a descoberta da existência de três princesas africanas e o relato da criação do mundo segundo a tradição iorubá e vou com a curiosidade que o samba me despertou ter o primeiro contato com o candomblé, e ainda vou saber através de outros samba enredos de tantas outras coisas da cultura da população negra e indígena num país que a única história que toda a educação formal ensina é a da Europa.
Eu poderia fazer um passeio pelos sambas enredo de São Paulo e do Rio de Janeiro no século passado e agora no século XXI apontando magistrais aulas da nossa história, mas vou me ater aos sambas enredo deste ano.
Só em 2024, tivemos em São Paulo sambas enredo como o da Acadêmicos do Tucuruvi, “Ifá” que fala da religiosidade e filosofia nascida em Ilê Ifé, Nigéria, portanto de matriz africana, que encontrou milhares de seguidores aqui e fala de respeito a todas as religiões. Vimos também a Camisa Verde e Branco, com o enredo “Adenla – O imperador nas terras do rei”, que apresentou o rei Oxossi e homenageou Adriano Imperador.
Dragões da Real veio com o enredo: “África – Uma constelação de reis e rainhas”, que apresentou vários reinos africanos e reis e rainhas que os lideraram. Já a Independente Tricolor teve como enredo “Agojie, a Lamina da Liberdade” que nos mostra a história de um exército de guerreiras que defenderam o Reino do Daomé.
Enquanto a Mocidade Alegre, campeã do Carnaval 2024 em São Paulo , mostrou as viagens de Mario de Andrade, um escritor negro, com o enredo Brasiléia Desvairada. Por fim, a Vai- Vai com “Capítulo 4, Versículo 3 – da Rua e do Povo, o Hip Hop: um Manifesto Paulistano” homenageou os 50 anos do Hip Hop, tão importante para a formação da juventude negra.
No Rio de Janeiro, tivemos a Mangueira, que homenageou Alcione, nossa eterna Marrom e toda a cultura maranhense, que é eminentemente negra. A Paraíso do Tuiuti veio com Glória ao Almirante Negro, contando a história de resistência a escravidão na Marinha Brasileira sob o comando de João Cândido na Revolta da Chibata. A Portela apresentou o enredo “Um defeito de cor”, baseado no livro homônimo de Ana Maria Gonçalves que aborda de forma ficcional a história de Luisa Mahin, importante líder da Revolta dos Malês.
A Salgueiro levou para a avenida o enredo “Hutukara”, que fala e nos ensina sobre a riqueza da cultura do povo Yanomami. Enquanto a Vila Isabel reeditou o enredo “Gbalá – Viagem ao Templo da Criação”, história fictícia baseada na cultura yorubá de que as crianças e sua pureza são a salvação da humanidade.
E por fim a Viradouro, campeã do Carnaval no Rio, apresentou o enredo “Arroboboi, Dangbé”, que falou do culto ao Vodun Serpente e mostrou toda a riqueza da religiosidade de matriz africana e a sua importância para a preservação da história negra no Brasil.
Me detive nas escolas do Grupo Especial, mas teríamos tantos outros ensinamentos nas escolas dos Grupos de Acesso. O Carnaval é educador, por isso às vezes penso que poderíamos ter alguns carnavais por ano.
Regina Lucia dos Santos é geógrafa, ativista e coordenadora de formação do Movimento Negro Unificado (MNU), em SP.