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Descolonizar o conhecimento é crucial para debater justiça climática

 Muitas vezes, a questão racial é tratada apenas como uma externalidade, sem reconhecer sua relação com os problemas climáticos
Rua do Bairro do Educandos, na Zona Sul de Manaus, um dos mais atingidos pela cheia histórica do rio Negro.

Rua do Bairro do Educandos, na Zona Sul de Manaus, um dos mais atingidos pela cheia histórica do rio Negro.

— Rodrigo Duarte/Greenpeace

15 de fevereiro de 2025

Por: Junior Aleixo

Parte significativa da produção de conhecimento hegemônica, especialmente a produção científica eurocêntrica, ainda exerce um forte controle sobre as pessoas, bem como sobre territórios, sociobiodiversidade e recursos naturais ao redor do mundo. Esse controle é tanto uma consequência quanto um reflexo da colonização. No passado, o sistema econômico colonial, baseado na escravidão, se sustentava pela imposição de uma visão única de mundo, que desconsiderava e subordinava os saberes locais. Hoje, essa dinâmica continua presente, garantindo a manutenção desse domínio. 

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A elaboração de categorias universais e simplificadas para definir modelos de desenvolvimento baseados em métricas e em uma suposta modernização das ex-colônias tem ignorado outras formas de conhecimento. Isso acontece especialmente em temas como combate às emergências climáticas e a desigualdade racial em contextos de risco ambiental.

Muitas vezes, a questão racial é tratada apenas como uma externalidade, sem reconhecer sua relação com essas problemáticas. Além disso, tem reforçado o papel histórico imposto aos países da América Latina e da África como espaços de extração de valor a partir da expropriação e comercialização dos ecossistemas, mantendo-os presos a padrões de desenvolvimento dependentes que remontam a formas de dominação racial, concentração econômica e fundiária.

Tamanho o mofo secular e colonial que encharca as páginas de nossa história, que o Brasil ainda hoje integra o quadro de exclusão, dominação e subordinação de sujeitos com base em raça e gênero, com o extermínio de parte da natureza, a degradação ambiental e a expropriação de direitos básicos, como a “perda de um lar, perda de direitos sobre o seu corpo e a perda de estatuto político”, como bem afirma o filósofo e cientista político Achille Mbembe. O contexto brasileiro é evidentemente particular, pois além de se configurar como um país de extensão continental e possuir uma biodiversidade incalculável, as populações autodeclaradas pretas e pardas, de acordo com os dados do último Censo (2022) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), continuam a indicar que constituem a maioria da população, com 10,2% e 45,3%, respectivamente.

Em razão de um desenvolvimento, por vezes imposto e outras tantas vezes condicionado a determinações políticas, a construção imaginária de uma potência nacional agroambiental se ancora em lógicas produtivas monoculturais que afetam diretamente as populações negras em seus respectivos territórios. Essa lógica tem aniquilado ecossistemas, cosmovisões e práticas ancestrais de maneira deliberada e concentrada, com impactos irreversíveis na natureza e na produção e reprodução da vida.

Exemplos não faltam: a monocultura voltada para a produção restrita de produtos agrícolas dependentes da contaminação por agrotóxicos, como no complexo da soja-pecuária, milho e cana-de-açúcar no Cerrado brasileiro; o processo de desertificação do bioma Caatinga; as parcerias público-privadas em grandes e criminosos projetos de mineração nas regiões Norte e Sudeste; os empreendimentos de infraestrutura e logística integrados diretamente ao processo global de produção e exportação de commodities agrícolas e minerais, especialmente nas regiões amazônicas; a privatização de empresas públicas de saneamento básico e a privação do direito humano à água; a construção de complexos e fazendas eólicas e solares estrangeiras em territórios de povos e comunidades tradicionais do Nordeste; os projetos de proteção e mercadorização florestal; e uma gama infinita de expropriações, grilagens de terras e expulsões em nome de um desenvolvimento, hoje, “sustentável”.

A disputa entre elaborar conceitos e categorias e colocá-los em prática posiciona o Estado brasileiro como corresponsável pelo aprofundamento da dominação racial integrada à degradação ambiental, principalmente em contextos de emergências climáticas. Essa tem sido a característica fundamentalmente intocável quando se discute a promoção de justiça climática: não se leva em consideração, ou pelo menos não de maneira indispensável e evidente como deveria, que quando reivindicamos a promoção de justiça socioambiental e climática e endereçamos os principais vetores de injustiças, sejam nações, empresas ou sujeitos coletivos, estamos coincidentemente (ou conscientemente) responsabilizando os mesmos agentes e empreendimentos que, em um passado não tão distante, se espalharam pelos países da América Latina e da África em busca de fontes de extração de riqueza e escravização de populações étnico-diversas.

Compreendendo que a produção de conhecimento é um elemento fundamental na disputa e disseminação de poder e tem sido utilizada historicamente como forma de sujeição de populações e territórios, temos como objetivo primário contribuir e disputar esse campo a partir de outras ordens epistêmicas, metodológicas e teóricas, econômicas, políticas, sociais e culturais que atravessam os territórios brasileiros.

Neste sentido, o Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) reafirma um compromisso ancestral com a produção de conhecimento a partir de cosmovisões negras para a promoção da justiça climática no Brasil, tomando como base cada contexto e território. Entende-se que a estruturação fundamental do saber científico, seja para pensar a sociedade no geral ou para promover a justiça climática em particular, só é possível pelo reconhecimento da multiplicidade étnico-racial e de outras formas de ser, pensar e produzir o mundo.

Qual o desenvolvimento queremos para o contexto em que vivemos e qual desenvolvimento tem sido apresentado? É um desenvolvimento justo, inclusivo e democrático que leva em consideração as desigualdades raciais e de gênero como categorias fundamentais em contextos de emergências climáticas evidentes? Estas são algumas das principais perguntas que o CBJC se propõe a debater, em que a raça “é mais uma vez crucial para esse encadeamento”.

Compreendendo também que a luta por justiça climática é incompatível com o aprofundamento da dominação racial em suas distintas manifestações — social, política, econômica e cultural —, o CBJC se propõe a apresentar contribuições no campo da produção de conhecimento que dialoguem com as diversas realidades, demandas e agendas das populações negras nas cinco regiões do país. Essas são as principais demandas reivindicadas nesse modelo de (des)envolvimento, baseado em um processo civilizatório que garanta a multiplicidade de pensamentos e a produção de conhecimento qualificada e contextualizada como ferramenta indispensável para a promoção de justiça climática e equidade racial

A promoção da justiça climática depende também do reconhecimento da diversidade de histórias e diferentes formas de produção conhecimento. A urgência climática exige não apenas novas políticas, mas novas narrativas, onde o protagonismo das populações negras, indígenas e quilombolas deixe de ser exceção e passe a definir os rumos do mundo que queremos construir. Como nos ensinou nosso mestre encantado e relator de pensamentos (como gostava de ser nomeado), Nego Bispo, o caminho para um pensamento contracolonial, pautado numa transição ecológica justa e antirracista,  só é possível ao passo que nos (des)envolvemos.

Junior Aleixo é pesquisador e doutorando de Ciências Sociais/UFRRJ com período sanduíche na Université Toulouse II (Jean Jaurès), França. É coordenador de Políticas e Programas na ActionAid Brasil e consultor para movimentos sociais e organizações da sociedade civil.

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  • CBJC

    O Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) é uma organização nacional da sociedade civil dedicada às temáticas da população negra na agenda climática do Brasil. A missão é ampliar o debate público e influenciar políticas públicas de justiça climática e equidade racial a nível local, regional e nacional.

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