Por: Lucineia Miranda de Freitas e Taynara Gomes
A ocupação do território no Brasil e no mundo foi historicamente moldada por um modelo consolidado e amplamente reproduzido como “ideal” de urbanização, moradia, infraestrutura, mobilidade e uso do espaço público. Esse modelo se baseia em um imaginário global e colonial, que impõe pressupostos universais e homogêneos, desconsiderando as especificidades locais. Ele nasce de uma perspectiva eurocentrada, sustentada por uma urbanização vinculada à industrialização, uma economia formal, uma lógica mecanicista e cartesiana e uma estrutura social padronizada.
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Ainda que relativamente recente na escala da existência humana no planeta, a generalização desse repertório territorial teve impactos profundos e devastadores. Ao longo da história, a imposição desse modelo ocorreu por meio da expropriação de terras, da exploração desenfreada da natureza e dos seres humanos, e da violência sistemática contra povos originários e comunidades tradicionais. Esse processo resultou em genocídios, epistemicídios e ecocídios consolidando desigualdades territoriais que persistem até os dias de hoje.
Olhando para o presente, vemos uma crise sistêmica que se manifesta em múltiplas camadas e se materializa espacialmente em diferentes formas: urbanas, periurbanas e rurais. A crise ecológica, a precarização da moradia e da infraestrutura, a falta de mobilidade, a insegurança alimentar, os conflitos raciais, de gênero e étnicos são agendas que se tornam cada vez mais urgentes. No entanto, compreender essa crise exige um olhar para sua raiz histórica: a formação social, política e econômica do Brasil, estruturada a partir de um processo de invasão colonial que não apenas impôs um sistema econômico excludente, mas também definiu quem seriam os sujeitos de direitos e quem seriam os excluídos desse sistema.
O modelo de ocupação territorial brasileiro foi diretamente moldado pelo latifúndio e pela economia baseada no plantation, voltada para a produção agropecuária e mineral intensiva, com a super exploração e escravização da força de trabalho e produtos para o mercado internacional. Esse modelo gerou um profundo distanciamento entre os seres humanos e a natureza, impondo um processo predatório que não apenas devastou ecossistemas, mas também desestruturou sociedades, criando um quadro de cidadania dilacerada. A terra e a escravização foram os pilares dessa estruturação agrária e urbana no Brasil, definindo o acesso a direitos e a permanência de desigualdades que se perpetuam até hoje.
Tendo o racismo estrutural como base, o Estado brasileiro criou diversos regramentos que agravaram as condições de vida da população, começando pela lei de terras de 1850, e a Lei Áurea de 1888, que se complementam na realização da abolição sem reparação (o cativeiro da terra para a liberdade das pessoas) empurrando a população, pobre, antes escravizada, para as margens, conformando a existência de ocupações “anormais” com uma organização urbana focada na produção e circulação de mercadoria, que pouco se estruturou para a garantia de vida dos/as trabalhadores/as.
O processo de modernização da economia, ocorrida no século XX, no campo e na cidade manteve um perfil conservador, o que exacerbou as questões agrárias e urbanas. No campo não realizou a reforma agrária, não reconheceu o direito ao território dos povos do campo, das águas e das florestas, aumentou a concentração das terras, ampliou as monoculturas, homogenizou o processo produtivo e provocou a expulsão das pessoas, de forma descompassada com a organização das cidades, da criação e garantia de emprego em outros setores da economia, ou com a criação de empregos precarizados, gerando um exército de reserva com milhões de desempregados, e ampliação das periferias.
Na cidade, a reforma urbana, também não implementada, condiciona a maioria da população, em especial população negra, a um contexto de intensa segregação, vulnerabilidade e risco socioambiental, sem condições mínimas de habitabilidade e invisíveis para as políticas públicas estruturantes. Inclusive, a elevada taxa de urbanização é um dos elementos que conectam a questão agrária com grande parte dos problemas sociais e econômicos do Brasil, e a forma que se deu essa urbanização a conecta com o impacto vivenciado pela população nas tragédias climáticas que têm se sucedido.
Os excluídos da terra são também os excluídos da cidade, os dados do censo agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017 apresentam que 47,9% dos estabelecimentos agropecuários são dirigidos por produtores brancos, 7,8% por pretos, 0,6% por amarelos, 42,6% por pardos e 0,8% por indígenas. Em termos de área, os brancos controlam 208 milhões (59,4% do total) e os pretos e pardos ocupam 99 milhões (28,3% do total). Também em termos de gênero as desigualdades são gritantes, com os homens controlando 87,3% dos estabelecimentos agropecuários e as mulheres apenas 18,7%. Quanto maior a área dos estabelecimentos, menor a participação das mulheres na direção destes.
Assim, pode-se observar que as grandes propriedades, que são 1% do número total de propriedade e ocupam 48% das áreas são pertencentes a homens brancos, enquanto a pequena propriedade com áreas de até 10 ha sendo 50,1% das propriedades controlam apenas 2,3 %, são formados majoritariamente por pessoas negras e também é onde tem maior participação de mulheres.
Analisando o cenário urbano, segundo o Censo 2022, o Brasil tem mais de 16 milhões de pessoas morando em favelas e comunidades urbanas, sendo 72,9% população negra e 51,7% mulheres. Territórios esses que são os com menos acesso a abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo, assim como são as áreas que mais figuram os mapas de risco ambiental. Em um contexto de emergência climática e onde a maioria das cidades estão sem planos de adaptação urbana, sem estratégias de mitigação de risco e onde até instrumentos básicos como planos diretores e leis de uso e ocupação do solo estão desatualizados e desarticulados com outras políticas setoriais, fica evidente quem é e será cada vez mais a população impactada nessa crise, que hoje vai muito além de uma crise urbana. Essa população tem classe, tem cor e tem gênero!
Esses dados escancaram o racismo, que no caso do Brasil, pode-se afirmar, é sempre estrutural, ou seja, é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade, bem como uma relação intrínseca entre questão agrária e urbana.
Neste contexto, é urgente compreender que o enfrentamento da crise ecológica e humanitária que o mundo atravessa passa pela crítica do padrão de ocupação do território universalizado pelo sistema capitalista. Assim como é urgente a superação da compreensão estrita da natureza como um entrave para o desenvolvimento ou como uma commodity a ser explorada; e defender que é necessário desmercantilizar a vida, dissociar crescimento econômico e qualidade de vida, superar o patriarcado, o racismo e o colonialismo, perseguir uma sociedade mais justa e igualitária e seguir as populações tradicionais como exemplo de resistência, resiliência e inovação.
Manter este modelo de ocupação territorial, que não reconhece os limites da natureza e domina o planeta sem medir consequências, que opera no curto prazo e aposta na superação da crise climática quase que exclusivamente por meio de uma revolução tecnológica e informacional, significa negar as pautas ecológicas, feministas e raciais, que lutam contra o acúmulo de opressões.
Lucineia Miranda de Freitas é camponesa, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e doutora em Saúde Pública.
Taynara Gomes e arquiteta e urbanista, coordenadora de pesquisa e dados do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC), doutora em Urbanismo e Planejamento Urbano.