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Masculinidades negras: rompendo estereótipos e enfrentando desafios

O caso Jef Delgado evidencia a urgência de desmantelar estereótipos nas masculinidades negras, transcender debates virtuais e promover ações coletivas para enfrentar as opressões que nos atravessam
Imagem mostra homem negro e jovem pressionando as mãos sobre o rosto.

Foto: Rony Hernandes

18 de dezembro de 2023

Por: Lívia Teodoro*

No turbilhão das redes sociais, no dia 13 de dezembro, Jef Delgado, fotógrafo paulistano, se defendeu das acusações de agressão feitas por sua ex-companheira, Madu, estilista e assessora comercial. A complicada relação entre masculinidades negras, racismo e machismo emerge como o centro desse polêmico debate, ultrapassando fronteiras virtuais e exigindo uma reflexão da comunidade negra.

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Em seu pronunciamento, Jef disse: “Os relatos dela provocaram uma profunda reflexão sobre comportamentos meus que possam ter sido emocionalmente irresponsáveis. […] embora nosso relacionamento tivesse tido traços tóxicos em diversos aspectos, nunca, sob nenhuma circunstância, houve agressão física”.

Mostrando que, para ele, as violências relatadas por Madu não são tão graves quanto à agressão física. Isso fica mais problemático quando J.D. diz: “Rejeito veementemente a violência misógina e busco constantemente distanciar-me de pessoas que compactuam, atuam como um e aquelas que sustentam e alimentam o estereótipo do homem negro agressivo”.

Mas, vamos lá: ao chamar suas agressões de “irresponsabilidade emocional”, não de “violência misógina real” e arrematar com o estereótipo do homem preto raivoso, vai além de minimizar a seriedade das acusações, mas também compromete a luta antirracista ao reforçar estereótipos prejudiciais como a explicação para a repercussão negativa.

“Homens negros, são representados excessivamente nos noticiários como criminosos. Significa que são mostrados como criminosos de modo exagerado, mais do que o número real (…). Então, você educou um povo, deliberadamente, por anos, por décadas, para crer que homens negros, em especial, e pessoas negras, em geral, são criminosos. Quero ser clara. Não estou falando só de pessoas brancas. Pessoas negras também acreditam e morrem de medo de si mesmas.”

As palavras de Malkia Cyril, diretora-executiva da “Center for Media Justice”, ao documentário “A 13ª Emenda”, da Netflix, atestam essa nossa realidade. A construção midiática, historicamente carregada de desumanização, alimenta a representação distorcida e exagerada de homens negros como criminosos. Apesar dessa realidade, não podemos usar esse estigma como escudo para minimizar acusações sérias de violência contra a mulher.

Mulheres Negras: pilar da opressão

Mulheres negras estão na base da pirâmide social da opressão brasileira. Enfrentando salários abaixo da média, ocupando cargos subalternizados e frequentemente silenciadas, vivem numa encruzilhada entre o machismo e o racismo. E é importante destacar que não se trata de hierarquia de opressão; homens e mulheres negras são afetados negativamente pelo racismo.

Quando homens negros entram na discussão sobre as masculinidades negras na posição defensiva, usando o racismo como escudo, o debate perde a integridade intelectual. J.D., ao tratar sobre sua masculinidade, afirmando que dedicou seu tempo a refletir ao lado de “pessoas que respeito e admiro”, revela uma propensão a ouvir somente seus pares, negando às vozes críticas de várias mulheres negras, negando-lhes a posição de observadoras válidas.

O verdadeiro debate precisa transcender as redes sociais e aparecer na vida cotidiana, incluindo vozes discordantes. Não se pode apenas marginalizar aqueles e aquelas que apontaram a violência relatada por Madu, os colocando na posição de meros reprodutores de estereótipos racistas.

Frantz Fanon destaca que meninos negros têm a figura paterna desautorizada pelo Estado, seja pela violência, abandono ou o assassinato, comprometendo o desenvolvimento do complexo de Édipo, e este é apenas um exemplo de como a construção da masculinidade para homens negros é marcada desde sempre pelo racismo.

Este fenômeno não pode desconsiderar o impacto do machismo na vida da mulher negra, conforme mostrado por Lélia Gonzales em seu texto “Por um Feminismo Afro-latino-americano”, onde ela diz: “É por aí que a gente entende por que dizem certas coisas, pensando que estão xingando a gente. Tem uma música antiga chamada “Nega do cabelo duro” que mostra direitinho por que eles querem que o cabelo da gente fique bom, liso e mole, né? É por isso que dizem que a gente tem beiços em vez de lábios, fornalha em vez de nariz e cabelo ruim (porque é duro). E quando querem elogiar dizem que a gente tem feições finas (e fino se opõe a grosso, né?). […] Se bobear, a gente nem tem que se defender com os xingamentos que se referem diretamente ao fato de a gente ser preta.” Racismo e machismo se atravessam.

Desafiando dualidades: homens negros na luta antirracista e contra o machismo

Homens negros precisam compreender que a luta antirracista não os exime do combate ao machismo. Mesmo sem usufruir de todos os privilégios patriarcais, eles continuam integrando o sistema opressor. Reconhecer essa dualidade é crucial para desconstruir estereótipos e enfrentar, como coletivo, as opressões que permeiam a sociedade.

Neste contexto desafiador, vemos que a interseccionalidade entre racismo e machismo é um terreno complexo a ser explorado. Ao confrontar as estruturas que perpetuam estereótipos prejudiciais, os homens negros não apenas desempenham um papel crucial na desconstrução desses padrões, mas também desafiam as limitações impostas pelo sistema opressor.

O exemplo citado aqui destaca a necessidade urgente de um diálogo mais amplo, que ultrapasse as barreiras virtuais e alcance a vida cotidiana. O nosso compromisso com a reflexão e a aprendizagem contínua é essencial para garantir que as vozes subalternizadas, como diria Spivak, sejam ouvidas e que as ações individuais contribuam para uma mudança coletiva. 

Assim, quando enfrentamos as encruzilhadas da luta antirracista e antipatriarcal, quando homens negros assumem a sua  responsabilidade neste problema e não apenas tentam se eximir de uma culpa cristão, pavimentamos o caminho para uma sociedade mais igualitária e justa. 

O caso Jef Delgado pode ser considerado marcador importante no diálogo sobre masculinidades negras. Um belo exemplo de como não agir para violentar novamente uma mulher que já sofreu agressões. A desconstrução de estereótipos exige uma abordagem integrada, indo além das redes sociais e dando frutos na nossa realidade. O debate não deve ser apenas uma reflexão, mas uma ação coletiva, em busca da equidade e do fim das opressões que moldam nossa sociedade.

* Lívia Teodoro é mineira de 32 anos, é comunicadora, influenciadora e historiadora graduada pela UFMG. Faz parte do time de influenciadores da primeira edição da Teia de Criadores. Com formação em História da África e afro-brasileira, também é pós-graduanda em jornalismo digital. Discute pautas de gênero, raça e sexualidade de maneira didática e objetiva para ser acessível a todas as pessoas

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