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O ‘novo’ latifúndio sob o clima: transição energética, expropriação de terras e racismo ambiental

Com a promessa de promoção de um desenvolvimento sustentável, mega projetos e empreendimentos de energia renovável, como linhas de transmissão, torres eólicas e placas solares têm invadido áreas produtivas e de importância para a história e cultura do país
Foto tirada na comunidade quilombola do Cumbe, situada no município do Aracati, litoral leste do Ceará.

Foto tirada na comunidade quilombola do Cumbe, situada no município do Aracati, litoral leste do Ceará.

— Flávia Almeida/CBJC

Por: Alanna Cristina Araujo Loiola Carneiro e Nzinga Cavalcante 

Os impactos foram imediatos. Nosso solo, que sustentava cultivos e plantas saudáveis, começou a mostrar sinais de fraqueza e desertificação. Embora a transição energética — uma mudança no sistema de produção e consumo de energia, substituindo combustíveis fósseis por fontes renováveis — seja amplamente divulgada como solução para a crise climática, seus efeitos sobre nossos territórios têm sido severos.

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Poluentes resultantes desse processo afetam não apenas a terra e os animais, mas também a saúde humana.  Com a promessa de promoção de um desenvolvimento sustentável, mega projetos e empreendimentos de energia renovável, como linhas de transmissão, torres eólicas e placas solares têm invadido áreas produtivas e de importância para a história e cultura do país.

Entre os danos documentados estão doenças como esfarelamento dos ossos, problemas cardíacos, visuais e auditivos, além de alterações na fertilidade animal. Desde 2019, eu, Nzinga Cavalcante, tenho visto minha comunidade, localizada no Assentamento Chico Mendes, em Pernambuco, sofrendo com as ações de um conglomerado de energia. Este conglomerado, que atua com agropecuária, mineração e distribuição de energia, invadiu nosso território tradicional, o Sítio Ágatha, para a instalação de linhas de transmissão de alta tensão.

Com as linhas de transmissão, as plantas morrem, e o solo parece adoecer com a tensão elétrica. Chuvas que tocam os cabos liberam faíscas que queimam folhas e causam destruição visível na flora. Observamos o desaparecimento de flores, abelhas e aves, cujas penas aparecem espalhadas sem explicação.

Além dos impactos ambientais, a paisagem foi radicalmente alterada. Onde antes existia natureza viva, agora erguem-se “monstros de ferro” que contrastam com o significado sagrado que atribuímos à nossa terra. Este território, conquistado após gerações de luta, foi o refúgio de minha tataravó, sequestrada do povo Mbundo na África, escravizada nos latifúndios da cana-de-açúcar e finalmente reconectada à terra pela reforma agrária.

Foto: Flávia Almeida/CBJC

A farsa do “desenvolvimento verde”

A história que vivemos é reflexo de um modelo colonial disfarçado de progresso. O chamado “desenvolvimento verde” repete as dinâmicas do latifúndio: acúmulo de terras, exploração e racismo ambiental. As tecnologias modernas apenas tornam o processo mais eficiente e menos humano, ignorando nossos modos de vida e nossas necessidades. Não houve consulta pública nem espaço para que nos posicionássemos sobre a chegada das linhas de transmissão, algo essencial para qualquer projeto que impacta territórios tradicionais.

A solução que defendemos é simples e efetiva: escutar as comunidades. Modelos energéticos alternativos e de baixo impacto, como os que utilizam energia gerada por movimento, devem ser desenvolvidos. Apenas assim conseguiremos criar uma transição energética justa, que respeite nossos direitos, proteja nossas terras e valorize nossos saberes.

O litoral do Ceará é um outro exemplo de como os megaempreendimentos energéticos promovem desigualdades e violações. Na busca pelo “desenvolvimento verde”, grandes empresas estrangeiras, como Engie (EUA), Enel Green Power (Itália) e Iberdrola (Espanha), disputam territórios ricos em biodiversidade para instalar complexos eólicos. Essa estrangeirização de terras (controle direto e indireto de terras por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras) não é registrada oficialmente, pois muitos contratos ocorrem por arrendamentos e concessões que fogem ao controle do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).

Em Icaraí de Amontada, onde eu, Alanna tenho minhas raízes, os impactos desses empreendimentos são severos. Sofremos com efeito estroboscópico, ruídos incessantes e alterações no campo magnético que afetam tanto as pessoas quanto os ecossistemas. Dunas móveis e áreas de proteção permanente estão sendo destruídas, e a biodiversidade endêmica é ameaçada. Para nós, mulheres, o aumento de trabalhadores externos trouxe ainda mais insegurança, ampliando as violações de direitos, especialmente contra as meninas.

Foto: Flávia Almeida/CBJC

Esses empreendimentos também destroem nossa cultura e modos de vida. A pesca e a agricultura, que sustentam nossa segurança alimentar e mantêm nosso vínculo com a terra e o mar, estão sendo inviabilizadas. Isso nos força a buscar alternativas em áreas periféricas, ampliando bolsões de pobreza e acentuando desigualdades.

O governo brasileiro tem o dever de mudar essa lógica. É necessário promover uma transição energética que inclua as comunidades impactadas, garantindo consultas prévias, livres e informadas, e respeitando nossos modos de vida. A soberania energética só será justa se descentralizar riquezas, redistribuir benefícios e proteger nossas terras e ecossistemas. Enquanto isso não acontece, seguimos resistindo, lutando para proteger nossos territórios e construir um futuro em que o progresso não seja sinônimo de destruição.

Alanna Cristina Araujo Loiola Carneiro é fundadora do Instituto Eco Maretorio, bióloga formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, é mestranda no programa de Ciências Marinhas Tropicais da UFC, onde aprofunda seus estudos sobre impactos socioambientais de megaempreendimentos de energia eólica. Originária da comunidade de pescadores(as) e caiçaras de Icaraí de Amontada, Litoral Oeste do Ceará.  

Nzinga Cavalcante é agricultora afroecológica, mãe, técnica em agroecologia pelo Serta, graduanda em Agroecologia, Campesinato e Educação Popular pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e diretora financeira da Associação de Educação, Arte, Cultura e Agroecologia Sítio Agatha.

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  • CBJC

    O Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) é uma organização nacional da sociedade civil dedicada às temáticas da população negra na agenda climática do Brasil. A missão é ampliar o debate público e influenciar políticas públicas de justiça climática e equidade racial a nível local, regional e nacional.

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