Lucas Morais, de 28 anos, foi condenado a cinco anos e dez meses de detenção em regime fechado mesmo sem nenhuma evidência que comprovasse sua participação em um esquema de tráfico de drogas. O jovem saudável morreu no início de julho após contrair o coronavírus na prisão
Texto: Henrique Oliveira | Imagem: Arquivo Pessoal/Lucas Morais
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Lucas Morais nasceu em Espera Feliz, uma cidade com pouco mais de 20 mil habitantes em Minas Gerais. Após a morte da mãe, ele foi morar com a avó em uma casa próxima a uma tia, juntamente com seus seis irmãos. A vida de Lucas foi acompanhada por uma sucessão de tragédias. Primeiro, a perda da mãe. Depois, a casa de um dos membros da família acabou soterrada devido à queda de uma barreira, o que levou todo mundo a morar em apenas uma residência.
Quando foi preso por tráfico de drogas em 2018, Lucas trabalhava em um armazém de café. No dia da prisão, ele estava deitado dentro de casa, vestido com o uniforme da empresa. Os policiais chegaram por volta da meia-noite e sem mandado de prisão para averiguar uma denúncia de tráfico de drogas.
Lucas estava com 10 gramas de maconha no bolso da calça, alegou que era para consumo próprio e acabou levado para a delegacia. A denúncia de tráfico de drogas teve origem após um adolescente ser abordado pela polícia e dito que comprou maconha com Lucas. Porém, esse menor de idade nunca foi ouvido no processo judicial.
Segundo o advogado Felipe Peixoto, a polícia não apreendeu nenhuma balança, uma maior quantidade de droga, dinheiro e nada mais que indicasse que Lucas fosse traficante. Na sentença, o juiz Leonardo Bergamini considerou como prova do crime de tráfico de drogas o fato de que plásticos de sacolé foram encontrados na casa, que na sua visão poderiam servir como armazenamento de maconha para a venda. Mas o que com certeza pesou contra Lucas é que ele era um jovem negro e pobre, que já havia sido condenado anteriormente por roubo, o que para o sistema penal brasileiro é o tipo ideal do reincidente.
Desde o dia 25 de junho, Lucas era monitorado por ter testado positivo para a Covid-19, o novo coronavírus, mas sem apresentar nenhum sintoma. No presídio de Manhumirim, Lucas era um dos 159 detentos contaminados pelo vírus, o que correspondia a 80% das pessoas presas no local.
Condenado em primeira instância a cinco anos e dez meses em regime fechado, até então o poder judiciário tinha negado três pedidos de habeas corpus, um em 2019 e outros dois em abril de 2020. Lucas não sabia que seu advogado havia sido intimado em 1º de julho para que o recurso de apelação fosse julgado no dia 28 de julho, no qual ele tinha grande possibilidade de ser inocentado. Lucas havia completado 28 anos dois dias antes morrer. No dia 4 de julho, o jovem chegou a ser levado para o Hospital Padro Júlio Maria, com parada cardíaca e morreu duas horas depois. Lucas deixou dois filhos, um de quatro e outro de seis anos.
Atestado de óbito de Lucas Morais por Covid-19. (Foto: Reprodução)
Poder judiciário, pandemia e habeas corpus
No dia que a morte de Lucas Morais veio a público por meio da imprensa também ocorreu o julgamento do pedido de habeas corpus e prisão domiciliar de Fabrício de Queiroz, ex-assessor e motorista do senador Flávio Bolsonaro, que é investigado no esquema de “rachadinhas” na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (Alerj). O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio Noronha, além de ter concedido prisão domiliciar a Queiroz, concedeu também a esposa dele, que estava foragida e sequer havia sido presa. Numa decisão considerada rara por outros membros do STJ, uma pessoa foragida e envolvida em um esquema de desvio de milhões de dinheiro público teve direito à prisão domiciliar, enquanto Lucas teve três pedidos de liberdade negados por causa de 10 gramas de maconha. Isso demonstra a falta que faz ser amigo do presidente da República nessas horas.
No final de junho, entidades brasileiras apresentaram denúncias à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre a gestão dos presídios durante a pandemia da Covid-19 e a falta de medidas necessárias para impedir a disseminação do vírus no sistema prisional. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que os casos de coronavírus aumentaram 800% nas prisões brasileiras.
As denúncias diziam respeito às questões de higiene e distanciamento social, assim como à adoção de decisões judiciais que reduzissem a superlotação carcerária e que estavam sendo dificultadas. O próprio Conselho Nacional de Justiça por meio da Recomendação 62 orientou que os juízes reavaliassem as prisões de membros dos grupos de risco, como idosos, gestantes, pessoas com HIV, doenças crônicas, além de pessoas presas pela prática de crimes sem violência ou grave ameaça à vida, o que era justamente o caso de Lucas Morais.
Um dos exemplos de como o poder judiciário está dificultando a concessão de habeas corpus nessa fase de pandemia, que já vitimou mais de 72 mil pessoas no Brasil, pode ser visto através das decisões do desembargador Zorzi Rocha, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Somente entre 13 de abril e 1º de julho, o desembargador Zorzi Rocha negou 56 pedidos de prisão domiciliar e liberdade provisória argumentando não saber se a casa das pessoas presas tinha infraestrutura de água e esgoto ou se havia número suficiente de cômodos para a realização do distanciamento social.
Segundo o magistrado, o sistema prisional é um espaço mais seguro para se prevenir da pandemia do que a casa dos presos. Ou seja, por causa da pobreza as pessoas devem continuar presas. Uma decisão como essa não é nada mais que um reconhecimento jurídico sobre a função econômica do sistema prisional: abrigar a população pobre. O ministro João Otávio Noronha, que concedeu prisão domiciliar, sob a justificativa da pandemia, a Queiroz e a esposa Márcia de Aguiar, já havia negado dois pedidos de habeas corpus baseados no risco do vírus.
A vida de um jovem negro vale menos do que gramas de maconha
Um levantamento feito pela Agência Pública sobre sentenças de tráfico de drogas no estado de São Paulo demonstrou que a maioria das apreensões de drogas foram inferiores à 100 gramas, e que as pessoas negras eram mais condenadas por tráfico de drogas do que as pessoas brancas, mesmo com uma quantidade menor de droga.
É de amplo conhecimento que o sistema prisional brasileiro é altamente insalubre, a superlotação agrava os problemas de higiene e os detentos também convivem com insetos e ratos. Segundo os dados do Ministério da Saúde, as pessoas que se encontram presas tem 28 vezes mais possibilidade de contraírem tuberculose do que a população em geral. A doença é totalmente tratável e é uma das que mais matam no sistema prisional. Em janeiro, ocorreu o surto de uma infecção bacteriana na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, em que os presos apareceram com a pele tomada por feridas e corroída.
Lucas Morais foi condenado de acordo a atual lei antidrogas, que diz que a posse de drogas é um crime contra a saúde pública, portanto, ao supostamente violar a saúde pública, o Estado encarcerou Lucas que estava saudável, permitindo que ele adoecesse e morresse. Caso similar aconteceu com Rafael Braga, em 2017, que ao ser condenado por um flagrante forjado de 0,6 gramas de maconha e 9,6 de cocaína, acabou contraindo tuberculose e hoje se encontra em prisão domiciliar. Qual é a lógica de condenar pessoas que ao usarem drogas iriam fazer mal a si mesmas e não a terceiros, para que elas sejam enviadas a lugares que violam à saúde pública tanto quanto as próprias drogas?
Ao mesmo tempo nós devemos nos perguntar como será que está o policial que prendeu Lucas, o delegado que indiciou, o promotor que ofereceu a denúncia, os juízes que condenaram e negaram os pedidos de habeas corpus. Será que eles têm algum tipo de remorso, estão carregando algum sentimento de culpa pela sua morte ou estão dormindo o sono dos justos achando que o dever deles foi cumprido?
As 10 gramas de maconha, será que foram incineradas nos fornos industriais que a polícia utiliza anualmente para “enxugar gelo” nessa insana guerra às drogas? A apreensão de 10 gramas de maconha teve efeito no tráfico de drogas e na violência? O meu maior medo é saber que fomos convencidos que a vida de um jovem negro possa ser oferecida em troca de míseras 10 gramas de maconha.
Henrique Oliveira é historiador e militante do coletivo negro Minervino de Oliveira, em Salvador, na Bahia.