Por: Pryscila Galvão
Inicio este texto com alguns fatos: assim como o funk faz parte da construção sociológica e política do Rio de Janeiro, o samba faz parte da resistência e aquilombamento em Salvador, o samba-rock é um fator intrínseco para o reconhecimento da identidade e negritude no estado de São Paulo. Diferente do samba, que tem um alcance quase que nacional entre pessoas negras brasileiras, o samba-rock assume um caráter de regionalidade que norteia toda a sua construção musical e melódica.
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Assim como o funk, o samba-rock tem origem de gêneros originalmente estadunidenses, mas quando chega em terras brasileiras, acopla no seu comportamento, traços, falas e na musicalidade daqui.
Independente do histórico – não se sabe ao certo a origem do samba-rock – mesmo que ele faça parte do imaginário de netos, avós, pais, tios e tias em toda a São Paulo, sendo dançada de forma profissional ou em meio à bailes que fizeram com que o gênero se mantivesse vivo até hoje.
Luciana Xavier, autora da tese “Rainhas Do Clube E Musas Do Samba-Rock: Raça E Gênero Na Sociabilidade Negra”, nos lembra que a arte, a dança e a música fazem parte do processo de resistência e construção de comunidades entre pessoas negras, e por aqui não seria diferente.
Diferente da grande maioria dos gêneros negros brasileiros, quem protagoniza o samba-rock são as mulheres negras. São elas que ditam os hits, mesmo que os cantem, são elas o centro dos bailes, as chamadas para dançar e quem precisa saber de cor os comandos de cada giro.
Mas além disso, ainda nesse artigo de Luciana Xavier, a presença das mulheres negras dentro dos bailes de samba-rock contrariava o estereótipo de feminilidade e construção familiar atribuído a pessoas negras da época, trazendo a classe, o alinhamento, e a beleza como pontos principais, distanciando a baderna, a pobreza e não valorização de tais estruturas familiares.
Se no Rio de Janeiro tínhamos a construção da malandragem pautada em torno da negação da mão-de-obra negra no trabalho formal, em São Paulo, a “terra da oportunidade”, isso não fazia sentido. Mesmo que essa comunidade fosse destinada dentro do mercado de trabalho para funções braçais e manuais, a “capital das notas” ainda fazia com que pessoas negras fizessem parte da máquina capitalista do Brasil. Então, a partir do que se constrói o malandro paulistano?
Pra segurar a nêga, tem que acompanhar a nêga!
Palmeiras, Aristocrata, Baile do Carmo, Chic Show, são alguns dos quilombos paulistas em formato de bailes que se construíram em torno do samba-rock, e todos eles possuem algo em comum: a mulher negra enquanto ponto central dos bailes, músicas, danças e comportamento dentro desses espaços.
Como dito anteriormente, as mulheres negras possuíam um papel de alterar o status quo destinado às pessoas negras na maior metrópole da América Latina, construindo um novo padrão de feminilidade e requinte em torno de toda a comunidade. Então quando partimos dessa centralidade feminina, entendemos que as demais personas serão construídas a partir dela, e é assim que o malandro paulistano nasce.
Requinte, paciência, charme, respeito e dança são os pilares desse malandro que tem CEP, endereço e residência. Aqui, o ponto de partida sempre serão as mulheres negras, a forma como elas se comportam, a forma como elas querem ser abordadas de forma afetiva e a forma como elas querem ser conduzidas pela dança.
A malandragem paulistana se constrói em cima do charme, da necessidade de ser polido e político ao mesmo tempo para poder se manter na selva de pedra.
Só para VAGABUNDO CHIQUE!
O samba-rock teve seu ápice entre as décadas de 60 e 70, mas embala bailes, churrascos de famílias e intervalos de roda de samba até os dias de hoje. De MAYONGA da Liniker ao EP VAGABUNDO CHIQUE do artista de Soul Music brasileiro, Doug O, o samba-rock se mantém presente na ponta da língua e dos dedos da comunidade negra paulistana.
Passado geração em geração, o lançamento de Doug O exalta a presença do samba-rock na Zona Sul de São Paulo, além de explorar as facetas de soul, do samba e da regionalidade do gênero, retomando a dança como um dos pontos centrais da cultura para além da melodia marcante em curta metragem produzido com o mesmo nome do EP.
O artista mostra de forma visual e em sua composição como o malandro paulistano se comporta, se entende e age dentro do contexto de baile, mas também fora dele. Contando 4 histórias diferentes em 4 faixas, VAGABUNDO CHIQUE faz uma alusão aos espaços de construção do que se tornou o samba-rock que conhecemos hoje, assim como o ressignificado do que é o vagabundo para a sociedade brasileira.
Dessa forma, Doug O te transporta aos bailes de samba-rock frequentados pelos seus pais ao longo das faixas do EP, trazendo a sonoridade intrínseca ao gênero assim como novas formas de usar metais, graves e a própria melodia em si.
O trabalho é dedicado a todas as tias do Brasil, ressaltando a centralidade feminina do gênero.
Com isso, entendemos então que a malandragem paulistana se constrói em cima da feminilidade negra paulistana, baseada principalmente na necessidade de ser polido e político ao mesmo tempo, colocando o charme e a malandragem como habilidades que precisam andar lado a lado.
Co-fundadora da RPretas, Pryscila Galvão é relações-públicas, estrategista criativa e PR de influência, passando por agências tradicionais no mercado como Music2Mynd, Play9, Mutato e Tastemakers. Nascida em São Paulo, utiliza da escrita como forma de expressão, unindo cultura, comunicação e vivências pessoais. Em 2022, recebeu um Leão de Bronze no Festival Cannes Lions pela RPretas, por atuação na campanha “Deixa Fluir”, das marcas SempreLivre e Carefree, do grupo Johnson & Johnson, em parceria com as agências J3, Wunderman Thompson e FleishmanHillard.