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A sociedade brasileira e os mitos

22 de julho de 2016

Texto: Miriam Alves / Edição de Imagem: Pedro Borges

O que constitui o cidadão brasileiro? Ou melhor, o sujeito brasileiro reconhecido ou não, enquanto cidadão de direitos constitucionais? Sujeito de direitos “naturais” ou o “homem nu” que conforme Hanna Arent: não tem direito que lhe pertença, não é um sujeito político, despossuído de posses ou títulos. O que corresponde à realidade por detrás dos mitos que nos regem?

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Para chegar a tal resposta, trago a reflexão sobre o “Mito fundador”, o “Mito da Igualdade”, o “Mito da cordialidade”, o “Mito da não-violência” e o “Mito da Democracia”, sendo que todos estes se interseccionam em alguma medida. Do que estou falando? Quando pensamos a nossa identidade enquanto povo brasileiro, pensamos em uma identidade unificada, contraditória e marcada por simbolismos culturais. O Brasileiro é aquele que gosta de samba, futebol e carnaval, sendo a “mistura de várias raças”. Um povo reconhecido pela alegria, sensualidade e cordialidade. Mas, será que é realmente assim?

Uma identidade nacional é criada em torno de uma “comunidade imaginativa[1]”, que são narrativas construídas em torno da tradição e da herança sobre um passado histórico por vezes venerado, que perpetuam concepções e práticas ao longo de gerações, estabelecendo normas e valores.

A obra de Gilberto Freire, Casa-Grande e Senzala, foi um material central para constituição do mito da democracia racial

No caso brasileiro, nos identificamos com uma herança escravocrata, que hierarquiza as relações sociais, por meio da violência desmedida que subjuga e destitui o “Outro” de sua humanidade. Dizer que “Somos todos humanos” ou “todos iguais” é rejeitar a humanidade do “Outro” em suas diferenças étnicas, e assim de seus direitos “naturais”.

Na “cultura nacional”, o discurso da igualdade ganha corpo e legitima as injustiças por meio do “mito da democracia racial”, que persiste em mascarar suas opressões. E sendo tão iguais, é lógico que não existe racismo no Brasil, pois somos a mistura de várias raças (afinal, todos temos um avô negro). Porém, “o que conta no nosso cotidiano ou que faz parte das nossas representações coletivas do negro, do branco, do índio, do amarelo e do mestiço não se coloca no plano do genótipo, mas sim do fenótipo, num país onde segundo Oracy Nogueira o preconceito é de marca e não de origem” (MUNANGA, Kabenguele).

Somos tão cordiais que “a empregada é quase da família, mas não pode sentar na mesa de jantar”; “Não temos preconceito, mas casais homossexuais não devem se beijar em locais públicos”, “Não somos contra os direitos das mulheres, mas elas têm que se dá o respeito”. Por trás dos “mas” os preconceitos arraigados no seio da sociedade, são expostos sem nenhum decoro. E é lógico que com todos esses predicativos, jamais admitimos nossa culpa, e a transferimos com muita facilidade para o “Outro”.

Reconhecemos o racismo, mas o racismo está no “Outro” e este “Outro”, muitas das vezes é a vítima. Se uma mulher é estuprada, lógico que a culpa é dela: “quem mandou sair com roupa curta”; Se apanha do namorado “mereceu, rezando é que não tava, vai ver deu motivos”.  E quando o “Outro” reage à violência, dizemos que ele está se “vitimizando” ou “ficou louco”, vira uma ameaça a qual deva ser controlado ou combatido.  A nossa cordialidade se transverte no discurso da “culpabilização”, e nos coloca em um lugar cômodo, onde naturalizamos as diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais, pois o que se visa é a manutenção de privilégios, e a solidificação das relações entre dominantes e subordinados. De acordo com Marilena Chauí [2]:

O mito é uma narrativa de origem, que repete uma narrativa a origem, que se perdeu lá na origem. O grande mito brasileiro, o nosso mito fundador, elaborado desde a época das grandes navegações marítimas. É de que o Brasil é uma terra abençoada por Deus, destinada a um grande futuro, cadinho de cada raça, generoso com os seus e acolhedor com os estrangeiros” […] ”o mito opera com antinomia, tensões e contradições que não podem ser resolvidas, sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo. […] o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente. […] o mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmem. Isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas, que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade, ou seja, o mito não é um simples pensamento, uma simples crença, um mito é uma forma de ação.

Sendo assim, o mito da democracia não passa de uma narrativa, construída sobre a própria palavra. Um governo democrático é aquele capaz de afirmar o poder do povo. Mas, ao contrário, “a Democracia vem suprimir as paixões ávidas da “vida democrática”, ao suprimir a soberania popular em nome do “bom governo”[1]”. Ela exerce controle sobre as liberdades individuais por meio da repressão, geralmente pelas ”forças policiais”.

Na Democracia, o “liberalismo” ganha corpo. O “homem nu” é destituído de sua cidadania,  pois apenas aqueles com “poder de compra” e “direitos naturais” de nascença, nobrezas e títulos, são reconhecidos  em sua humanidade. Os direitos civis ou individuais não passam de direitos daqueles que possuem privilégios, sobre uma ampla gama de trabalhadores, camponeses, índios e negros, que acarretam a função única de “servir”; estruturando relações profundamente desiguais e mantenedoras de uma tradição colonialista e uma herança escravocrata e patriarcal.

Prof. Kabenguele Munanga é um dos principais intelectuais do país

Não por menos, a vida política torna-se os direitos naturais daqueles que possuem títulos, por meio de eleições diretas e votos. A democracia representativa é a máscara do “poder oligárquico” e da burguesia, que indistintamente entre esquerda e direita, consegue corromper o homem a um simples consumidor dos bens e serviços oferecidos pelo capital.

O cidadão da democracia liberal, individualista e egoísta, ou simplesmente o “cidadão de bem” sendo este, o cidadão cordial, honesto, ético, com a moral incorruptível e inabalável, contrário ao “homem nu”, sendo este o marginal, corrupto, desonesto, antiético e imoral, portador dos males e da violência, entendendo como violência, apenas a violência incisivamente veiculada pela grande mídia, como o furto, o roubo, o latrocínio e o tráfico, qualquer outra forma de violência é invisibilizada.

O machismo, o racismo e a homofobia são menos valorados pela mídia e sistema judiciário enquanto crime, mesmo quando retira anualmente milhares de vidas. Mas, a vida de quem? Quando muitas das vezes os crimes cometidos contra as mesmas são efetivados pelo próprio Estado, através de suas forças militares e a institucionalização das opressões. O Estado de exceção é a faceta, entre a Democracia factóide a e Democracia real, adquirida pelo poder de consumo.

[1] Rancière Jacques, 1940- O ódio à democracia/Jacques Rancière; tradução Mariana Echalar.-1.ed. – São Paulo:Botempo, 2014.

[1] HALL, Stuart. A identidade Cultural da Pós-Modernidade. 2006

[2] https://www.youtube.com/watch?v=YB3SnE4RMos

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