Na história, existem cinco cardeais do samba na cidade, nomes descritos como fundamentais para a consolidação do carnaval em São Paulo; Alma Preta entrevistou um deles e o único vivo, Seu Carlão do Peruche
Texto: Pedro Borges | Imagem: Monalisa Lins
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Em 2019, o carnaval de São Paulo movimentou cerca de 3 bilhões de reais, segundo a Secretaria Estadual de Cultura. Com cobertura anual das principais redes de televisão do país e uma avenida do samba, Sambódromo do Anhembi, percebe-se o carnaval como uma festa consagrada na cidade.
Mas nem sempre foi assim.
O samba era coisa de preto, vagabundo, criminalizado e demorou muito para ganhar um status de festa oficial. Quem lutou para isso acontecer foram, principalmente, mas não só, os cinco cardeais do samba de São Paulo.
Tia Eunice, Lavapés, Pé Rachado, Vai-Vai, Seu Nenê, Nenê de Vila Matilde, Inocêncio Mulata, Camisa Verde e Branco, e Seu Carlão, Unidos do Peruche, formam o grupo descrito como os cinco cardeais do samba da cidade.
“Essas pessoas, juntamente comigo, lutaram para o carnaval chegar nesse estágio de hoje. Nós vimos diversos prefeitos passarem pela cidade. Nós agendávamos reunião com eles para cuidar do samba de São Paulo e só nos davam canseira. Quando chegava uma delegação, diziam que não podiam nos atender e assim passaram muitos anos com desculpas esfarrapadas”, recorda Seu Carlão do Peruche.
O título de Cardeal do Samba foi dado por Juarez da Cruz, Mocidade Alegre, em alusão à luta feita por essas pessoas para que o carnaval da cidade chegasse ao estágio onde está hoje.
O Alma Preta entrevistou um dos cinco cardeais e o único vivo, Seu Carlão, quem é o presidente de honra e um dos fundadores da Unidos do Peruche. Aos 89 anos e Presidente da Associação Independente Cultural da Velha Guarda do Samba do Estado de São Paulo, Seu Carlão se sente realizado pelo título que carrega de Cardeal do Samba.
“Eu, intitulado como um dos cardeais de São Paulo, no meu modo de pensar deve ser no sentido dessa luta que nós fizemos, no que se refere à cultura popular, que é o samba. Eu me sinto realizado, muito orgulhoso por ter esse título”, afirma.
Mesmo responsáveis pelo estágio em que o carnaval em São Paulo se encontra, Camisa Verde e Branco, Vai-Vai e Nenê de Vila Matilde estão juntas no grupo de acesso 1, pela primeira na história. A Unidos do Peruche está no grupo de acesso 2 e a Lavapés está no grupo 4 da União das Escolas de Samba Paulistanas (Uesp), outra liga de escolas presente no carnaval paulistano.
Seu Carlão, quem participou da fundação da Unidos do Peruche aos 25 anos de idade, lamenta a situação e acredita que o samba passou a ser gerido por “muita gente que não é do samba”.
“Uma série de coisinhas, regulamentos, que tirou toda a espontaneidade, a liberdade do samba, dos movimentos. Hoje é tudo automático, você tem que fazer isso, aquilo, parece que é tudo mecanizado, e isso tirou, ao meu entender, a beleza da cultura do samba”.
Ele acredita que quem perde com esse “engessamento” são as próprias escolas de samba, que perdem público para os blocos de carnaval na cidade. De acordo com dados oficiais, são esperados 556 desfiles de blocos em São Paulo, contra 498 no Rio de Janeiro, primeira vez que a capital paulista supera a fluminense na história. Há também uma diferente expectativa de turistas para as duas metrópoles, com 12 milhões para SP, contra 7 milhões para o RJ.
“Por que os blocos cresceram? É onde a gente tem liberdade, expansão dos sentimentos para brincar carnaval, um carnaval sadio. Escola de Samba está bitolada, trabalha o ano inteiro para 65 minutos”, afirma Seu Carlão, quem também é fundador do bloco Sovaco de Cobra, o terceiro mais antigo de São Paulo, criado em 1975.
Como foi para o carnaval ser o que é
Seu Carlão do Peruche se recorda de um dos momentos mais importante para o carnaval em São Paulo se tornar oficial, na gestão do prefeito Faria Lima, quem governou a cidade de 1965 a 1969. Os baluartes do samba na capital tentavam por anos o diálogo com o poder público para regulamentar a festa e receber o apoio da prefeitura.
Seu Carlão se recorda que depois de muita insistência, Faria Lima aceitou os receber na prefeitura de São Paulo, em 1967.
“E quando nós chegamos, como nós éramos todos negros, achamos por bem convidar o Moraes Sarmento, que tinha um programa de rádio popular na Bandeirantes e nós achamos por bem trazê-lo”.
Faria Lima, prefeito de São Paulo, recebeu o grupo, o que para todos já foi considerado uma grande vitória. Chegaram todos no horário e a secretária disse, “senhoras e senhores do samba de São Paulo, o prefeito os espera”. No encontro estavam Seu Carlão, Tia Eunice, Seu Nenê, Seu Mala, Inocêncio Mulata, Moraes Sarmento e Evaristo Carvalho.
Ao entrarem, viram uma mesa grande, com o prefeito do outro lado dela, ao lado do secretário de cultura da cidade. “Vocês são os senhores do samba de São Paulo? Muito bem. Eu gostaria de saber quanto vai me custar esse carnaval aqui em SP? Onde vocês pretendem fazer o carnaval? Decoração, segurança, transporte, etc”, perguntou de maneira direta Faria Lima.
Seu Carlão lembra, porém, que todos haviam sido pegos de surpresa com a recepção do prefeito. Acostumados a ir para reuniões agendadas e só tomarem “canseira”, não tinham nada preparado para apresentar para o prefeito. Faria Lima ordenou que voltassem na semana seguinte, com as exigências de espaço, transporte e o que mais precisariam para o carnaval.
Depois, os bambas de São Paulo se reuniram para definir o que pediriam ao prefeito. Entre as demandas, estava espaço, transporte e outras exigências, mas nada de pedida de dinheiro. Moraes Sarmento reforçou a necessidade de pedirem uma “importância em dinheiro”. Todos relutaram no início, mas aceitaram, mesmo sem acreditar que o sim para o dinheiro viria.
Na segunda reunião com Faria Lima, contudo, foram surpreendidos, depois de apresentarem a proposta.
“Ele levantou, leu, não tirou nada e falou ‘Vamos fazer carnaval em SP’. Aquilo foi uma alegria, todo mundo falando ‘obrigado seu prefeito’, todo mundo levantou, cumprimentando”.
O primeiro desfile oficial de carnaval em São Paulo ocorreu em 1968, na Avenida São João, e teve a Nenê de Vila Matilde como campeã. Na época, a escola da zona leste homenageou o poeta abolicionista Castro Alves.
Apesar de vitoriosa, a reunião com o prefeito não tem apenas lembranças positivas para o atual presidente de honra da Unidos do Peruche. Seu Carlão conta que com Faria Lima passou a sua maior vergonha no samba de São Paulo.
Durante a primeira reunião, o prefeito disse gostar de samba e apresentou como prova a carteirinha da Mangueira, escola de samba do Rio de Janeiro. Na oportunidade, Seu Carlão falou no ouvido de Mala, da Acadêmicos do Tatuapé, que “sai na Mangueira nada, esses políticos ai só querem voto. Não sai na Mangueira nada”.
O que Seu Carlão não esperava é que Faria Lima havia feito leitura labial dele e esperou para responder um dos fundadores da Unidos do Peruche na segunda reunião.
“Quando ele chegou perto de mim, enfiou a mão no bolso e meteu uma carteirinha na minha cara e falou ‘eu saio na Mangueira’. Ele como sócio da Mangueira era número 360 e alguma coisa. Eu fiquei vermelho, branco, preto, azul, cor de rosa, fiquei tudo e todo mundo ficou assim: ‘Puxa vida, o que está acontecendo?’. E só o Mala dava risada. Mais tarde que eu fui tomar conhecimento que ele leu meus lábios”.