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Para Polícia Militar, jovem negro com black power é o perfil de um ladrão

7 de fevereiro de 2020

Se é pela estética que o racismo nos persegue, nos humilha e nos mata primeiro, cada cabelo black power, trançado, dreadlock deve ser encarado como uma trincheira de luta contra a opressão racial; Henrique Oliveira é historiador e militante antirracista

Texto: Henrique Oliveira* | Imagem: Reprodução/Facebook

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O caso de um jovem negro que foi agredido e sofreu ofensa racial por causa do cabelo black power em uma abordagem policial em Salvador, na Bahia, ganhou repercussão nesta semana. A ação, filmada e divulgada nas redes sociais, levou a pessoa que fez o vídeo a se mudar do local onde morava após receber ameaças.

Nas imagens é possível ver o jovem de costas, como se estivesse sendo revistado. O policial militar puxa o boné usado por ele e grita: “Você para mim é ladrão, você é vagabundo. Olha essa desgraça desse cabelo aqui. Tire aí vá, essa desgraça desse cabelo aqui. Você é o quê? Você é trabalhador, viado? É?”. Em seguida, desfere socos e chutes na vítima.

A fala do PM questionando se o jovem era trabalhador por causa do cabelo black power é reveladora de uma estratégia utilizada por nós homens negros, quando nos deparamos com uma abordagem truculenta da polícia, que é dizer que somos trabalhadores, mas por que o policial precisaria saber se somos trabalhadores? Esse argumento de ‘defesa’ tem origem na política de repressão a vadiagem, na qual um sujeito com boas condições de saúde, mas que não tivesse um emprego poderia ser preso e condenado, pois era um vadio e estaria se recusando a trabalhar.

Ao se afirmar enquanto um trabalhador, a expectativa é que o policial compreenda que a pessoa abordada tem uma renda e consequentemente não é criminosa, já que para a segurança pública brasileira o pobre é um potencial ladrão. Por trás desse jogo de palavras sobre “ser trabalhador”, existe uma tentativa de ser tratado com um mínimo de dignidade e respeito pela polícia.

O segundo fato a se destacar aqui é que durante muitos anos o movimento negro brasileiro denunciou o racismo no mercado de trabalho, que se operava através da oferta de vagas com uma exigência chamada “boa aparência”. Um mecanismo utilizado para barrar a contratação de pessoas negras, sobretudo em funções relacionadas ao contato direto com o público. Para termos uma ideia, somente em 1992 o Ministério Público e os grandes jornais de circulação em Salvador fizeram um acordo para que esse tipo de anúncio deixasse de ser veiculado. Uma lei municipal proibindo a oferta de vagas com o requisito de “boa aparência” foi aprovada na cidade em 1998.

De acordo com uma pesquisa divulgada em 2017 pela Etnus, consultoria especializada em códigos culturais de consumo entre os negros, 67% dos paulistanos negros ouvidos disseram que deixaram de ser contratados por serem negros. Para 70% dos entrevistados, a expressão “boa aparência” está associada, no caso das mulheres, ao cabelo alisado, e no caso dos homens, ao cabelo raspado. Além disso, 53% dos negros afirmaram já terem mudado o estilo do cabelo para serem contratados ou aceitos no ambiente de trabalho.

O piscólogo negro Altair dos Santos Paim, apresentou em 2016 sua tese de doutorado intitulada “Pele negra sem máscaras brancas: o julgamento da boa aparência na seleção pessoal”, em que aborda os efeitos do racismo no processo seletivo de empresas de recursos humanos em Salvador. O estudo mostrou que o racismo estético do mercado de trabalho também tem impacto na violência policial, pois a Polícia Militar sabe que pessoas negras e com cabelo black power ou dreadlock têm mais dificuldade de conseguir empregos formais. Isso foi o suficiente para o PM questionar e sentir legitimidade ao dizer que o jovem era ladrão e não um trabalhador.

Um dia após o vídeo circular na internet e alcançar a imprensa, em entrevista o jovem contou que iria cortar o cabelo por não se sentir mais à vontade para usar seu black power. Segundo o jovem, essa foi a primeira vez que ele havia sido discriminado por causa do cabelo. A vítima também falou como o racismo policial atingiu a subjetividade, ferindo a sua identidade negra com o cabelo, explicitando como a violência racial é uma violência promotora de embranquecimento e auto ódio nas pessoas negras.

O que o racismo quer é justamente que negros e negras cortem seus cabelos crespos. Cortamos nosso black power, tiramos os dreads, não descolorimos, não fazemos nenhum tipo de corte com desenho e mesmo assim continuamos a ser vistos como criminosos porque não deixamos de ser negros. Para a polícia, o suspeito se reconhece pela cor, o cabelo é mais um detalhe ‘confirmador’ do seu olhar racializado.

O deputado estadual do (PSL), Capitão Alden, ficou conhecido em 2015 após publicar a famigerada “Cartilha da Tatuagem”, que associa determinados desenhos e símbolos com crimes. Em uma publicação no Facebook no ano seguinte, o Alden afirmou que certos tipos de corte de cabelo também fazem parte da “fundada suspeita” para abordagem policial.

O governador da Bahia, Rui Costa (PT), declarou repúdio a ação policial que teve repercussão nesta semana, no entanto, argumentou de forma contraditória. Rui Costa afirmou que por mais que a violência policial seja um comportamento repetitivo, o fato em questão se tratava de um caso isolado. Eu gostaria de saber como o governador concluiu que comportamentos repetitivos são casos isolados? É por vários casos isolados, repetitivos e rotineiros, que no dia 6 de fevereiro a chacina do cabula completou cinco anos. Na época, a mesma Polícia Militar acostumada a forjar tiroteios para matar duas ou três pessoas, achou que poderia matar 12 jovens negros sem nenhum problema.

Nós sabemos que a violência policial contra negros não são casos isolados. São casos sistemáticos e que refletem o racismo estrutural da sociedade brasileira e suas instituições. Levantamento feito pelo jornal Correio sobre punição a PMs filmados agredindo e espancando pessoas negras nos últimos anos demonstrou que a maioria dos agentes públicos só sofreram sanções administrativas.

Em janeiro deste ano, também aqui em Salvador, uma mãe denunciou um caso de racismo cometido por um segurança da empresa CCR, administradora do Metrô. Ao passar pela catraca com as duas filhas que tinham cabelo black power, a mãe ouviu o segurança dizer que elas eram “bucha 1 e bucha 2”, se referindo aos cabelos das crianças.

Esses dois fatos são exemplos da importância da estética afro diaspórica. Se é pela estética que o racismo nos persegue, nos humilha e nos mata primeiro, cada cabelo black power, trançado, dreadlock deve ser encarado como uma trincheira de luta contra a opressão racial.

* Natural de Salvador, Bahia, Henrique Oliveira é historiador e militante do coletivo negro Minervino de Oliveira.

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