O dia 28 de novembro de 2013 seria mais uma data especial para a família Souza. Era o aniversário de Márcia*, a matriarca da família, e, um dia antes, a sua filha, genro e neto viriam do Rio de Janeiro para preparar uma festa surpresa.
Porém, o que ela não esperava é que a celebração fosse terminar na delegacia depois do seu neto Gabriel*, de 15 anos, ser agredido e ter o nariz quebrado por policiais militares do Pelotão de Emprego Tático Operacional (PETO) ao sair de uma academia em Paripe, bairro localizado no subúrbio de Salvador.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Os PMs que agrediram o jovem foram identificados como Leonardo Assis de Oliveira, Antônio Expedito Pires e Tárcio Oliveira Nascimento, um dos cabos denunciados pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) por envolvimento no assassinato de três jovens negros no bairro da Gamboa, em Salvador, no dia 1º de março de 2022.
Por causa da agressão contra o adolescente, uma denúncia feita pelo MP-BA contra os PMs foi apresentada na Vara da Auditoria da Justiça Militar do Estado da Bahia em agosto de 2016, quase três anos após a ocorrência, em que os PMs foram acusados de lesão corporal previsto no artigo 209 do Código Penal Militar.
Mesmo com a suspeita de agressão, o processo foi arquivado em maio de 2022 por prescrição, ou seja, quando há a anulação da ação judicial pelo tempo.
O arquivamento atendeu um pedido da defesa dos policiais, que argumentou que a pena por lesão corporal é de até um ano, sendo prescrito em quatro anos. A sentença foi assinada pelo juiz auditor Paulo Roberto Santos de Oliveira.
Agressões da PM
Assim que chegou em Salvador para o aniversário da avó, em 2013, Gabriel* quis visitar os primos em uma academia na região de Tubarão, em Paripe, quando foi surpreendido pelos PMs que faziam uma abordagem na localidade.
Segundo declaração prestada pelo então menor, obtido em documento acessado pela Alma Preta, Gabriel* estava na companhia de uma parente e, sem perceber a presença dos agentes, teria gritado para uns amigos: “Estou doidão para pegar uma prima”.
Tal frase teria sido o suficiente para que o PM Leonardo o puxasse pela camisa, desse um soco no estômago do jovem e pedisse a identificação dele. Ao dizer que era do Rio de Janeiro e filho de militar da Marinha, o PM teria dito “Ele é militar lá no Rio. Aqui ele não é nada. Aqui ele é um merda”.
Antes de ser conduzido para a viatura, Gabriel* teve o celular quebrado pelo PM Antônio Expedito após receber um tapa na mão e um soco no nariz pelo PM Leonardo, o que lhe causou uma fratura confirmada por relatório médico. Logo após ele foi jogado no veículo e desmaiou.
Sem saber que se tratava de um adolescente, os PMs levaram Gabriel* para a 19ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM), em Paripe, para registro da ocorrência. Ao chegarem no local, se depararam com a mãe do adolescente, Paula*, que também foi algemada por desacato.
“Fui algemada porque quando eles chegaram com meu filho com o nariz quebrado eu fiquei doida, avancei em cima dos ‘polícias’, disse que eles não podiam fazer isso com meu filho, que ele não era vagabundo, que a gente era de família e aí me algemaram”, relata Paula* à Alma Preta.
Ao ver a mãe na 19ª, Gabriel* tentou ir ao encontro dela, porém foi impedido por Leonardo e Tárcio, que voltaram a agredi-lo com socos no estômago e o colocaram de volta na mala da viatura.
Em declaração ao antigo Grupo de Atuação Especial para o controle externo da atividade policial (GACEP), do Ministério Público, o PM Tárcio Oliveira disse que a mãe do adolescente apareceu na 19ª CIPM e, ao ver o filho, passou a ofender os agentes “com palavras de baixo calão” e por isso foi algemada por desacato.
Oliveira também informou que o adolescente, na presença da mãe, ficou mais agressivo e deu um soco no PM Leonardo. Ele negou que os agentes tenham fraturado o nariz do menor de idade e que o fato “foi provocado pelo próprio menor enquanto se debatia no interior da viatura”.
Antes de ser conduzido para a Delegacia do Adolescente Infrator (DAI), Gabriel* foi levado pelos policiais ao Hospital João Batista Caribé para atendimento médico. No entanto, o relatório médico detalha que o jovem deu entrada “com agitação e agressividade” e se recusou ao atendimento médico.
Em declaração à Corregedoria da Polícia Militar da Bahia, no dia 29 de novembro de 2013, Gabriel* relatou que apenas deixou o médico limpar e colocar um curativo no nariz e que não tomou ponto nem remédios por ser alérgico a algumas medicações.
Ameaças
Após o ocorrido, Gabriel* e a família ficaram em Salvador em busca de justiça pelas agressões cometidas pelos policiais. Porém, sair de casa ou ouvir o barulho da sirene de uma viatura se tornaram um tormento para o adolescente, que ficou traumatizado.
À reportagem, Paula* conta que o filho chegou a ser abordado duas vezes pelos mesmos PMs. “Teve um dia que ele ainda parou meu filho na praia e o abordou de novo — foram os mesmos [policiais]. Eles falaram que não era pra levar nada adiante, aí a gente se sentiu ameaçada e foi embora para o Rio. A gente foi embora porque se sentiu coagida”, recorda a mãe do adolescente.
Para além do medo e da coação, o episódio trouxe consequências devastadoras para a família de Gabriel*. O avô do jovem teve um princípio de infarto depois do ocorrido, o que deixou a sua saúde fragilizada. Ele faleceu em 2018.
“Meu pai morreu tudo em consequência desse estresse. A gente vê tanta coisa acontecendo, os policiais fazendo, às vezes a pessoa nem mexe com coisa errada e eles pegam, prendem a pessoa, bota drogas, fala que pegou com arma, isso acontece… A gente não teve mais paz”, desabafa Paula*.
Ainda segundo a mãe, a família não levou o caso para frente por medo de represálias. “Na verdade, ninguém nunca mais procurou a gente pra poder falar nada, esclarecer nada e a gente também não correu atrás, decidiu esquecer”, argumenta.
Posicionamentos
Em nota, o MP-BA informou que apresentou a denúncia contra os policiais em 2016, ano em que foi recebida pela Justiça pelo crime de lesão corporal.
“O processo seguiu seu rito, cumprindo algumas fases, mas não foi possível a sua finalização e, em maio de 2022, ele foi arquivado pela Justiça porque o crime, cuja pena máxima é de um ano de detenção, prescreveu em 2020 (quatro anos após o recebimento da denúncia conforme prevê a lei). A norma também dispõe que a prescrição é causa de extinção de punibilidade”, cita o órgão em nota.
Por causa da prescrição, o MP-BA também disse que não há possibilidade de recorrer ou solicitar reabertura do processo e informou que não recebeu qualquer informação sobre possível coação ou risco apresentado ao adolescente e aos seus familiares.
A reportagem também entrou em contato com a defesa dos militares, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.
* Nomes fictícios para preservar a identidade das pessoas citadas.