PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Abdias Nascimento questionou arte da Europa e reivindicou modernismo negro

No ano que marca uma década da morte do intelectual negro e os 40 anos do Ipeafro, obras do Museu de Arte Negra são expostas em Inhotim, Minas Gerais, revelando a potência da influência africana nas artes modernas 

Imagem mostra Abdias Nascimento desenhado.

Foto: Imagem: Fernanda Rosário

10 de dezembro de 2021

Idealizado como um museu do futuro pelo poeta, escritor, artista plástico, panafricanista e político Abdias Nascimento, o Museu de Arte Negra (MAN) inaugurou em 4 de dezembro uma sede no Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. Com uma exposição de dois anos de duração e dividida em quatro atos, a Galeria Mata do Inhotim abrigará obras do acervo do MAN, preservadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).

“Essa visão de museu do futuro do Abdias Nascimento foi lançada em 1968 em um artigo para uma revista, no qual ele discute qual é o futuro do museu. Ele pensava a rendenção desse espaço como sendo aberto para a arte negra e para os artistas negros”, explica Julio Menezes Silva, pesquisador do Ipeafro e um dos curadores da exposição.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Segundo o pesquisador, Abdias acreditava que o museu só era viável no futuro abrindo espaço para todos os grupos étnicos e abarcando a diversidade. Além disso, o intelectual questionava a origem da arte moderna vinda da Europa e reivindicava o modernismo negro.

“A partir do processo de colonização europeu, muitas dessas obras de arte africanas, que nem eram consideradas objetos artísticos, chegaram na Europa. A partir dessa confluência, surge o modernismo. Então o Abdias Nascimento reivindica esse vanguardismo da Europa, que vem fundamentado na arte negra”, pontua Julio.

De acordo com Elisa Larkin Nascimento, diretora do Ipeafro, Abdias traz isso para alguns dos mais importantes artistas que atuavam no Brasil naquele momento. “A coleção passa a ser uma espécie de panorama de alguns dos artistas mais importantes e, ao mesmo tempo, está discutindo as categorias pejorativas e diminutivas que se usa para definir os artistas negros”, destaca.

Julio e Elisa do Ipeafro no Museu de Arte Negra do Abdias.

Julio Menezes e Elisa Larkin ao lado da imagem de Abdias Nascimento | Crédito: Fernanda Rosário

Abdias Nascimento e a produção artística negra

 Idealizado em 1950 e apresentado por Ironides Rodrigues no Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, o MAN nasceu como um projeto dentro do Teatro Experimental do Negro (TEN), iniciativa desenvolvida sob a liderança de Abdias Nascimento. Projeto pioneiro, o museu tinha a missão de combater o racismo estético, com a divulgação da influência africana nas artes modernas ocidentais e da pluralidade da produção artística da diáspora africana.

Em 1968 e com a instituição do Ato Institucional N° 5, na Ditadura Militar, o curador Abdias Nascimento foi obrigado a ser exilado por 13 anos nos Estados Unidos e na Nigéria, época em que seguiu recebendo doações de artistas para a coleção do MAN e passou a se dedicar à pintura como atividade artística.

“Sua pintura era um exercício de memória e ativismo, acessando e representando experiências do passado e assuntos emergentes do presente e do futuro do mundo negro. Esse exercício visual era executado sempre em relação estreita com os orixás e a simbologia epistemológica de origem africana”, descreve os curadores na apresentação da exposição.

“Abdias trabalhava muito a parte da simbologia epistemológica africana que não era exatamente os orixás, mas outras simbologias, como os adinkra, como as simbologias egípcias, que são precursoras da escrita hieroglífica”, complementa Elisa Larkin.

Em 1981 e de volta ao Brasil após o exílio, Abdias e Elisa, também sua esposa, criaram o Ipeafro, responsável por guardar e preservar o acervo do museu, além de realizar atividades educativas, culturais e atuar no combate ao racismo.

Primeiro ato: Abdias Nascimento e Tunga

Obra de Abdias dedicada a pai de Tunga

‘Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi’ (1972), obra de Abdias dedicada ao pai de Tunga | Crédito: Reprodução

No ano que marca uma década da morte de Abdias e os 40 anos do Ipeafro, o primeiro ato da exposição no Inhotim, intitulada ‘Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra’, tem como um de seus eixos a rede de afetos que atravessa a vida e a obra de Tunga, artista importante para Instituto, com dois pavilhões dedicados às suas obras, e sua relação com Abdias Nascimento.

O pai de Tunga, o jornalista e escritor Gerardo Mello Mourão, era companheiro de Abdias e os dois integravam o grupo Santa Hermandad Orquídea, uma aliança poética feita entre amigos.

“A gente acha que para iniciar esse projeto seria bonito fazer uma homenagem também ao afeto que é a relação de Tunga e Abdias. Tunga cresce em um ambiente em que um frequentava a casa do outro. Nada melhor do que pensar o Tunga, que é essa figura marcante no Inhotim e que está aqui desde os seus primórdios, recebendo e acolhendo o Abdias no Instituto”, explica Douglas de Freitas, curador do Inhotim.

Devido à essa convivência, de acordo com Julio Menezes, Tunga se tornou o primeiro brasileiro a expor no Museu do Louvre, na França, com uma base de formação em diálogo com a arte negra e com o que havia aprendido com Abdias, trazendo em suas obras elementos que refletem esses aprendizados.

Tunga no Jornal.

Matéria do Jornal Correio da Manhã com Tunga e Bida | Crédito: Reprodução

“Tem um quadro dentro do acervo do Ipeafro que é uma matéria do Jornal Correio da Manhã de 68, nele há uma foto do Tunga com 15 anos de idade, o Bida, filho de Abdias Nascimento. Nesse momento Abdias Nascimento está com 54 anos de idade, mas ainda não começou a pintar. Nessa reportagem, Tunga fala que ‘a arte negra foi a primeira a romper os grilhões das saturadas imagens renascentistas’’, pontua Julio Menezes.

Dentro desse primeiro ato da exposição, as obras de Abdias e de Tunga são dispostas de forma a dialogar entre pontos em comum na arte de ambos.

“Abdias falou dos orixás, das religiões de matrizes africanas, que são mitologias, e Tunga cria mitologias também em suas obras. De alguma maneira, eles encontram um lugar em comum. A gente tem aqui a Trança do Tunga junto com as cobras do Exu do Abdias. Claramente, não é uma coincidência”, pontua Douglas de Freitas.

Território específico

A exposição do Museu de Arte Negra em Minas Gerais foi pensada a partir do programa ‘Território Específico’, o eixo temático que norteia a programação do Inhotim até 2022 e é inspirada em estudos do geógrafo Milton Santos sobre as relações sociais e a vida que anima a existência dos territórios.

O tema busca refletir a função da arte nos territórios a níveis local e global, a relação das instituições com seu entorno, além dos afetos, acolhimentos e relações interpessoais também atravessados nesses territórios. São reunidas pinturas, desenhos, fotografias e instalações que evidenciam o diálogo e a conexão artística entre Tunga e Abdias.

“A gente vai fazer desse espaço um quilombo. Estamos prontos para isso em uma perspectiva reparatória, no sentido de ouvir a necessidade das populações que estão ao entorno e de perguntar o que querem fazer desse espaço”, detalha o pesquisador do Ipeafro.

Atualmente, as obras Museu de Arte Negra estão expostas também no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), até fevereiro de 2022, e também de forma virtual. “A gente não tem uma sede fixa, mas temos várias outras sedes e é nesse movimento e nesses fluxos que o Museu de Arte Negra se materializa. Tem sido assim desde 1950, portanto, há 71 anos, a gente atua nessas brechas que o sistema nos oferece”, finaliza Julio Menezes.

Leia também: Minas Gerais terá Museu de Arte Negra idealizado por Abdias Nascimento

Confira fotos da exposição do Museu de Arte Negra em Inhotim: 

 {gallery}Abdias do Nascimento e MAN em Inhotim{/gallery}

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

Leia Mais

PUBLICIDADE

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano