O Brasil é um dos países do mundo que mais pune criminalmente e, ainda assim, mortes coletivas, como as que aconteceram no último final de semana no Complexo do Salgueiro (RJ), continuam sendo comuns em suas periferias. Segundo o advogado criminalista Jonatas Moreth, temos uma das maiores populações carcerárias, “mas não punimos os organizadores e executores dessas chacinas”. Segundo o jurista, esse modus operandi é fruto de uma política de Estado.
Dados da Universidade Federal Fluminense (UFF) mostram que, desde 2017 até agosto de 2021, ocorreram 264 chacinas no estado do Rio de Janeiro. No âmbito da pesquisa, se considera como chacina o assassinato de três pessoas ou mais. Outra aconteceu na manhã desta segunda-feira (23), quando nove corpos foram retirados, por suas próprias famílias e pessoas próximas, de um mangue, localizado na periferia do município de São Gonçalo, Zona Oeste da capital carioca. De acordo com os moradores, eles tinham marcas de torturas e estavam alvejados por balas.
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Diferente do que foi relatado por moradores, a Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL) informou que os resultados dos laudos de necropsia apontaram que os óbitos ocorridos no Complexo do Salgueiro foram provocadas por projéteis de arma de fogo (PAFs), sem indícios de facadas ou outro tipo de arma com ação cortante ou perfurocortante. As armas dos policiais militares que participaram da ação e a lista dos nomes dos agentes devem ser entregues ainda nesta quarta-feira (24/11), na Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo, Maricá e Itaboraí (DHNSG), que investiga o caso. Segundo o órgão, projéteis retirados de três corpos passarão por exames. “Testemunhas estão sendo ouvidas e outras diligências estão sendo realizadas para esclarecer todos os fatos”, afimou a unidade.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), por meio da 2ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada do Núcleo Niterói e São Gonçalo, instaurou um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) próprio para investigar a operação realizada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Em nota, o órgão declarou que o procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos, noticiou à Promotoria de Justiça, que foi ao local para colher informações e ouvir moradores. “Um perito integrante do Grupo de Apoio Técnico Especializado (GATE/MPRJ) foi designado ao Instituto Médico Legal para acompanhar o exame dos corpos”, disse.
De acorco com Jonatas Moreth, o Estado, quanto a questão da segurança pública, entende que se combate o crime com guerra. “Portanto, o inimigo precisa ser destruído, aniquilado. Fazemos isto, em especial quanto à política de drogas desde que o Brasil é Brasil”, adverte. As mortes aconteceram durante uma operação da Polícia Militar. No sábado (20), um policial militar morreu em uma troca de tiros na região. Devido a isso, o Batalhão de Operações Especiais Policias (BOPE) foi chamado. A população afirma que pelo menos 14 pessoas da comunidade morreram neste final de semana.
Jonas Pacheco, pesquisador da Rede de Observatórios da Segurança, conta que o discurso oficial das polícias do governo é que a operação foi para possibilitar uma estabilização da região, mas o que se tem de extraoficial é que essa operação é decorrente de um vingança após a morte do sargento Leandro da Silva, na região.
“Isso é muito comum aqui no Rio de Janeiro, após óbitos de policiais em uma favela, a polícia retorna para fazer um massacre. É uma carta branca que essa política de segurança tem dado às forças policiais”, diz.
Em nota, a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro informou que foram oito óbitos ao todo, número ainda incerto. As investigações estão em andamento pela Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSG). Os corpos foram encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML) da região.
“Sete dos oito mortos foram identificados, destes, cinco possuem antecedentes ou anotações criminais. Um dos mortos, que não possui antecedentes, também estava com roupa camuflada semelhante a do restante do grupo”, declarou a coorporação. A comunidade já foi vitima de outras chacinas como essa. Em 2017, após uma operação que envolveu o Exército, mais de sete pessoas foram mortas. O inquérito foi arquivado e nenhum responsável foi punido.
O advogado e coordenador do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) Djeff Amadeus afirma que é comum as chacinas acontecerem nas comunidades que concentram o maior número de pessoas negras. “O Estado, sendo um ente dotado de racismo institucional e estrutural, é legitimado por instituições que preservam esse sistema. O sistema penal do país está criado para aniquilar corpos negros”, afirma.
“O Estado, através do seu braço armado que são as polícias, não tem como função institucional fazer revide ou vingança. Isto é um traço vergonhoso da barbárie que ainda persiste em nossa sociedade”, diz Moreth.
Estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 72,6% das pessoas assassinadas no Brasil, em 2020, eram negras. Em 15 anos, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu. Em 2019, de cada três presos, dois eram negros. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) aponta que o Brasil possui uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes.
Esse tipo de ação policial seguida de mortes não é uma situação fácil de solucionar. Jonatas Moreth avalia que é necessário fazer uma profunda mudança de paradigmas nas três esferas do poder público.
“No Judiciário, precisamos limitar, ou se possível, proibir essas operações. Já tem decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) neste sentido, mas que não me parece ter sido eficiente. E mais, é preciso investigar, processar, e quando comprovado abusos e óbitos – o que me parece evidente -, punir. ”, sugere o advogado.
Ele ainda reforça que o Legislativo e o Executivo precisam executar reformas, no sentido de também limitar as ações policiais, mas fundamentalmente rever a forma de organização das forças de segurança. “É preciso rever a organização, seleção, formação e capacitação de nossas forças de segurança. Ao me ver, o controle da segurança deveria ser exercido por civis democraticamente eleitos e não por uma polícia militarizada”, conclui.
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