Em 1º de janeiro de 1804, o Haiti completou sua revolução, iniciada em agosto de 1791, conquistou a independência da França e aboliu a escravidão. Liderada por nomes como Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines e Henri Cristophe, a Revolução Haitiana se destaca por ter sido a única revolta de escravizados que culminou na derrota dos senhores e na fundação de um novo Estado.
A influência da Revolução Haitiana reverbera até hoje como um marco de luta contra o racismo, o colonialismo e pela defesa da igualdade. Para o pesquisador e escritor Marcos Queiroz, autor de “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlanticismo Negro” e do recém-lançado “Assombros da Casa-Grande“, a Revolução Haitiana tem como principal legado a inauguração de uma “era das abolições”.
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Isso porque a partir do sucesso revolucionário dos haitianos, a perspectiva internacional sobre a escravidão muda e a abolição se torna um tema incontornável.
“Esse é o principal legado, porque a Revolução Haitiana coloca na agenda do Ocidente, das sociedades atlânticas, a palavra abolição e a necessidade de levar ao término aquele sistema de exploração de um ser humano por outro ser humano”, explica Queiroz, em entrevista à Alma Preta.
Para além da luta contra a escravidão, a revolta dos haitianos também se destaca como marco para a independência de países latino-americanos e caribenhos. O Haiti foi o primeiro país dessas regiões a conquistar a emancipação das metrópoles europeias.
Queiroz ressalta que a Revolução Haitiana não só foi um marco formal e temporal desse movimento, mas que os haitianos prestaram também apoio material às campanhas de independência de países na região.
A força da Revolução Haitiana também se expressa na defesa das ideias de igualdade e liberdade atreladas à ideia de igualdade racial. Dessa forma, a revolta dos escravizados na ilha do Caribe lega ao futuro um ideário antirracista, inclusive no Brasil.
“Hoje, por exemplo, vemos na nossa Constituição de 1988, nos princípios da República e no artigo 5º da Constituição, a ideia da igualdade racial, a ideia de que não pode haver preconceito ou tipo de discriminação baseado na cor, na etnia ou na raça das pessoas. Isso quem coloca como uma pauta dos direitos humanos para o mundo é a Revolução Haitiana.”
‘Medo branco’: a influência da Revolução Haitiana no Brasil
A destacada revolta de escravizados no Haiti ecoou no Brasil, cujas elites passaram a conviver com a sombra de um movimento semelhante em uma população de maioria negra. Esse quadro influenciou o chamado “medo branco” — como descrito pela autora Célia Maria Marinho de Azevedo — de uma “onda negra” no país.
Marcos Queiroz explica que essa não é uma questão trivial. Para ele, a Revolução Haitiana foi o evento de maior impacto na formação da sociedade brasileira no início do século XIX, principalmente na formação do Estado independente.
O pesquisador ressalta que, por um lado, a vitória contra os franceses na Ilha de São Domingos — nome da ilha caribenha onde fica o Haiti — injetou esperança na população subalterna brasileira — trabalhadores, negros e escravizados.
“Havia uma circulação muito forte de discursos, de conspirações, de notícias que vinham do exterior. E, portanto, a queda do sistema escravocrata francês na ilha de São Domingos é algo que gera uma perspectiva de uma possível vitória dos escravizados na sociedade brasileira”, aponta Queiroz.
Por outro lado, o exemplo concreto da revolta vitoriosa de escravizados nas Américas e as notícias correntes sobre o feito histórico dos haitianos gera na classe senhorial brasileira o que Queiroz descreve como “profundo pânico”. Essa classe passa então a se organizar para evitar que o desfecho haitiano se repetisse no Brasil.
“Isso vai marcar profundamente o nosso processo de independência. Ao mesmo tempo que há esse desgarramento de Portugal, há também um desgarramento que é sempre mediado, sempre conservador, pois era uma independência política, mas uma independência que não significava liberdade e igualdade para todos, uma cidadania efetiva e real para todos.”
Queiroz cita como exemplo o político João Severiano Maciel da Costa, o marquês de Queluz, que governou a atual Guiana Francesa no início do século XIX, quando o território ainda era parte do domínio português. O político brasileiro teria ficado “muito horrorizado” diante do impacto da Revolução Haitiana na população negra na região do Caribe.
De volta ao Brasil, o marquês foi um influente parlamentar da Assembleia Constituinte de 1823 e umas das principais mentes da Constituição de 1824. “Ou seja, ele é o pai do haitianismo, desse grande medo da Revolução Haitiana na sociedade brasileira, mas também um dos pais fundadores do nosso constitucionalismo”, salienta o autor.
Queiroz explica que a influência desse ator e do ideário atrelado ao medo causado pela revolta haitiana está expressa na Constituição de 1824, marcada por uma concepção restrita de cidadania à população negra liberta e também pelo silêncio sobre a escravidão — mantida na primeira Carta Magna brasileira — em termos de regulação pelo Estado.
“Isso é uma ação do João Severiano Maciel da Costa pensando nas melhores maneiras de você construir uma arquitetura institucional político-constitucional para evitar o Haiti no Brasil”.
O preço da revolução: o Haiti nos dias atuais
O Haiti hoje tem cerca de 12 milhões de habitantes e é um dos maiores e mais populosos países do Caribe, ao lado de Cuba e República Dominicana. Apesar da revolução histórica e vitoriosa no passado, atualmente o Haiti vive uma crise política e social que tem se agravado desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021.
Para o pesquisador Marcos Queiroz, é impossível dissociar a atual situação do Haiti das consequências sofridas pelo país após a independência que completa agora 221 anos. Segundo ele, o Haiti foi impedido ao tentar rejeitar a ordem internacional “imperial, supremacista racial e forjada nos desenhos do capital”.
“A história presente do Haiti é uma história que está absolutamente atrelada ao desfecho que as potências ocidentais deram à Revolução Haitiana de tentar limitar ao máximo que aquele país pudesse ser soberano do ponto de vista econômico político e que buscasse assim construir o seu próprio destino”, diz Queiroz.
O escritor afirma que o Haiti sofreu uma série de sabotagens dessas potências, como ocupações, a cobrança da dívida relativa à independência que o país levou até a década de 1940 para quitar, assim como o uso de governos ditatoriais implantados no país caribenho — o caso de François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc.
Queiroz também aponta nesse meio as missões de paz da ONU, com importante participação do Brasil. Para ele, essas missões — amplamente denunciadas por erros operacionais e violações de direitos humanos no país — são formas de desestabilizar a autodeterminação do povo haitiano.
“A forma como o Ocidente reage à Revolução Haitiana é algo que determina muito as condições precárias nas quais o povo haitiano vive hoje”, sintetiza o escritor.
Na conversa com a Alma Preta, Queiroz cita obras da escritora haitiana Edwidge Danticat. Ele lembra que no livro Criando Perigosamente, a autora cita a sensação de que a Revolução Haitiana teria acabado ontem e que está muito próxima dos eventos recentes da memória do povo haitiano.
Para Queiroz, de certa forma é como se a revolta também tivesse acabado ontem para as potências ocidentais, tendo em vista as ações tomadas para que o Haiti fosse punido por contestar a ordem “racista e imperial do capital no Ocidente”.
“O Haiti tentou construir um outro futuro, um futuro em que não houvesse escravidão, um futuro em que não houvesse a plantation, em que não houvesse desigualdade racial, que não houvesse a desumanização baseada na cor e na identidade das pessoas. E o Ocidente, ao bloquear esse outro futuro, deu como resposta isso, que esse povo não poderá ser soberano plenamente, que ele sempre terá a sua liberdade e o seu futuro sabotados.”