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Racismo ambiental barra desenvolvimento pleno de crianças negras na primeira infância

Pesquisa recente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal aponta que 64% das crianças negras na primeira infância não têm acesso a saneamento básico
Uma mulher carrega uma criança no leito de um rio seco devido à grave seca no rio Negro em Davi Marina, oeste de Manaus, estado do Amazonas, Brasil, em 29 de setembro de 2023.

Uma mulher carrega uma criança no leito de um rio seco devido à grave seca no rio Negro em Davi Marina, oeste de Manaus, estado do Amazonas, Brasil, em 29 de setembro de 2023.

— Michael Dantas/AFP

28 de junho de 2024

A agente popular Jany Dayse Fidelis da Silva, de 44 anos, mora com o filho José Lucas, de dez, e convive com o neto Erick Gabriel, de três, que fica em sua casa enquanto a sua filha está no trabalho. A família convive diariamente com a falta de saneamento básico e a exposição a insetos e animais peçonhentos, como ratos, baratas e escorpiões. 

Jany reside na Favela Muvuca, localizada no bairro Vergel do Lago, parte baixa de Maceió (AL). A região do complexo lagunar, às margens da Lagoa Mundaú, é formada por quatro favelas: além da Muvuca, há a Sururu, Peixe e Mundaú, formadas por barracos feitos com restos de lona e madeira.

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“A gente convive com muito mosquito aqui, os insetos e fora que com ele pode vir a dengue, a zika que eu já peguei e até hoje sofro as consequências. Meu neto teve, mas o dele foi leve, graças a Deus. Na verdade, era para ter saneamento básico, mas já que não tem, que fosse pelo menos repelente oferecido a população”, relata, em entrevista à Alma Preta.

A situação de pobreza na primeira infância vivenciada pelo pequeno Erick Gabriel está associada às vivências de privação em variadas dimensões que afetam o desenvolvimento infantil, segundo a  36º edição do Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. 

“Geralmente, um contexto de insuficiência de renda é marcado também por insegurança alimentar, inadequação de moradias, violência nos bairros residenciais, estresse familiar, acesso limitado a serviços de saneamento básico, saúde e educação, entre outros”, diz trecho da publicação. 

Além disso, essa exposição pode levar a um maior risco de “doenças evitáveis, desnutrição crônica, mortalidade infantil, e atrasos no desenvolvimento emocional, cognitivo e de linguagem durante esta etapa da vida que vai até os seis anos de idade”.  

A exposição a doenças e as consequências da ausência de saneamento, experienciada pela família de Jany, ajuda a ilustrar o levantamento realizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal com base na Pnad, para compreender o nível de acesso ao saneamento básico na primeira infância

O estudo  cedido à Alma Preta revela que ter estrutura mínima não é uma realidade para parte das crianças brasileiras de zero a seis anos. Dentre elas, 7,2 milhões, o que corresponde a 35%, não têm acesso à rede de esgoto, sendo 64% delas negras.  Cerca de 618 mil pessoas (3%), não têm acesso à água canalizada, 81% desse público é formado por crianças negras. Já 1,9 milhão (9%) não possui acesso ao serviço de coleta de lixo, 72% dessa população é negra.

Crianças brincam atrás de uma porta na favela Morro da Lua, em São Paulo. (Ernesto Banevides/AFP)

Como a falta de saneamento afeta o desenvolvimento das crianças negras?

O acesso à água potável e saneamento compõe a sexta meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Brasil. Até 2030, o país precisa assegurar, entre as metas, a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento, alcançar o acesso universal à água potável e segura, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos.

A professora da Faculdade de Nutrição, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Ana Paula Clemente, integra o Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren) em Alagoas. A educadora defende que ter acesso à água tratada, coleta e tratamento de esgoto é um direito constitucional no Brasil.

Ana Paula destaca que essa garantia reflete na diminuição de doenças de veiculação hídrica, a exemplo da hepatite, a gastroenterites infecciosas, a dengue e a leptospirose, entre outras. “Historicamente no Brasil, a população negra vive em regiões com maior precariedade de saneamento básico”. 

Segundo a professora, a ausência de saneamento pode desencadear em infecções de repetição e carências nutricionais que afetam diretamente no crescimento e desenvolvimento da criança, “uma vez que essa gasta a energia que seria utilizada para esse processo para combater a infecção. E muitas vezes o processo infeccioso exige ainda mais energia para a recuperação do estado de saúde”, acrescenta. 

“Oferecer saneamento à população, como água tratada, encanamento e esgoto faz com que os indivíduos se mantenham saudáveis por mais tempo, permitindo com acesso à adequada alimentação ter o seu pleno crescimento visto que, a falta de saneamento, como já mencionado, pode ocasionar problemas à saúde e também ao meio ambiente”, reforça.

Criança anda de bicicleta no Acampamento do Movimento Sem Terra (MST) em Planaltina, a 50 km de Brasília. (Evaristo Sa/AFP)

Racismo ambiental: negação do acesso a serviços básicos 

O termo racismo ambiental foi criado nos Estados Unidos, na década de 1980, pelo químico e reverendo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr, que na época liderou movimentos pelos direitos civis da comunidade negra.

O conceito também foi difundido pelo sociólogo, ativista e pesquisador Robert Bullard, conhecido como o precursor da Justiça Ambiental. O estudioso conceitua como racismo ambiental qualquer política ou prática que possa afetar ou prejudicar, de maneira voluntária ou não, pessoas, grupos ou comunidades por motivos de raça.

A engenheira ambiental e sanitária, Nathália Nascimento, mestre  em engenharia ambiental pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), se dedicou a estudar em 2020 como as faces do racismo ambiental urbano vão promover consequências para moradores das comunidades da orla lagunar, localizada no bairro Vergel do Lago, mesmo bairro que reside a agente popular. 

Para Nathália, o racismo ambiental se caracteriza por serem negados os direitos básicos para a qualidade de vida dessa população. “São anos em que os políticos negligenciam condições mínimas, seja acesso ao saneamento básico, à saúde ou ao direito de usufruir sua própria cidade. É nítida a diferença do estilo de vida que a classe média alagoana leva e a vida dos que estão à margem da sociedade e da lagoa. É visível também o tom de pele de quem é excluído”, defende.

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

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  • Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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