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Racismo ambiental barra desenvolvimento pleno de crianças negras na primeira infância

Pesquisa recente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal aponta que 64% das crianças negras na primeira infância não têm acesso a saneamento básico
Uma criança caminha pela favela Roque Um, em Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil

Foto: Nelson Almeida/AFP

28 de junho de 2024

A agente popular Jany Dayse Fidelis da Silva, de 44 anos, mora com o filho José Lucas, de dez, e convive com o neto Erick Gabriel, de três, que fica em sua casa enquanto a sua filha está no trabalho. A família convive diariamente com a falta de saneamento básico e a exposição a insetos e animais peçonhentos, como ratos, baratas e escorpiões. 

Jany reside na Favela Muvuca, localizada no bairro Vergel do Lago, parte baixa de Maceió (AL). A região do complexo lagunar, às margens da Lagoa Mundaú, é formada por quatro favelas: além da Muvuca, há a Sururu, Peixe e Mundaú, formadas por barracos feitos com restos de lona e madeira.

“A gente convive com muito mosquito aqui, os insetos e fora que com ele pode vir a dengue, a zika que eu já peguei e até hoje sofro as consequências. Meu neto teve, mas o dele foi leve, graças a Deus. Na verdade, era para ter saneamento básico, mas já que não tem, que fosse pelo menos repelente oferecido a população”, relata, em entrevista à Alma Preta.

A situação de pobreza na primeira infância vivenciada pelo pequeno Erick Gabriel está associada às vivências de privação em variadas dimensões que afetam o desenvolvimento infantil, segundo a  36º edição do Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. 

“Geralmente, um contexto de insuficiência de renda é marcado também por insegurança alimentar, inadequação de moradias, violência nos bairros residenciais, estresse familiar, acesso limitado a serviços de saneamento básico, saúde e educação, entre outros”, diz trecho da publicação. 

Além disso, essa exposição pode levar a um maior risco de “doenças evitáveis, desnutrição crônica, mortalidade infantil, e atrasos no desenvolvimento emocional, cognitivo e de linguagem durante esta etapa da vida que vai até os seis anos de idade”.  

A exposição a doenças e as consequências da ausência de saneamento, experienciada pela família de Jany, ajuda a ilustrar o levantamento realizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal com base na Pnad, para compreender o nível de acesso ao saneamento básico na primeira infância

O estudo  cedido à Alma Preta revela que ter estrutura mínima não é uma realidade para parte das crianças brasileiras de zero a seis anos. Dentre elas, 7,2 milhões, o que corresponde a 35%, não têm acesso à rede de esgoto, sendo 64% delas negras.  Cerca de 618 mil pessoas (3%), não têm acesso à água canalizada, 81% desse público é formado por crianças negras. Já 1,9 milhão (9%) não possui acesso ao serviço de coleta de lixo, 72% dessa população é negra.

Crianças brincam atrás de uma porta na favela Morro da Lua, em São Paulo. (Ernesto Banevides/AFP)

Como a falta de saneamento afeta o desenvolvimento das crianças negras?

O acesso à água potável e saneamento compõe a sexta meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Brasil. Até 2030, o país precisa assegurar, entre as metas, a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento, alcançar o acesso universal à água potável e segura, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos.

A professora da Faculdade de Nutrição, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Ana Paula Clemente, integra o Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren) em Alagoas. A educadora defende que ter acesso à água tratada, coleta e tratamento de esgoto é um direito constitucional no Brasil.

Ana Paula destaca que essa garantia reflete na diminuição de doenças de veiculação hídrica, a exemplo da hepatite, a gastroenterites infecciosas, a dengue e a leptospirose, entre outras. “Historicamente no Brasil, a população negra vive em regiões com maior precariedade de saneamento básico”. 

Segundo a professora, a ausência de saneamento pode desencadear em infecções de repetição e carências nutricionais que afetam diretamente no crescimento e desenvolvimento da criança, “uma vez que essa gasta a energia que seria utilizada para esse processo para combater a infecção. E muitas vezes o processo infeccioso exige ainda mais energia para a recuperação do estado de saúde”, acrescenta. 

“Oferecer saneamento à população, como água tratada, encanamento e esgoto faz com que os indivíduos se mantenham saudáveis por mais tempo, permitindo com acesso à adequada alimentação ter o seu pleno crescimento visto que, a falta de saneamento, como já mencionado, pode ocasionar problemas à saúde e também ao meio ambiente”, reforça.

Criança anda de bicicleta no Acampamento do Movimento Sem Terra (MST) em Planaltina, a 50 km de Brasília. (Evaristo Sa/AFP)

Racismo ambiental: negação do acesso a serviços básicos 

O termo racismo ambiental foi criado nos Estados Unidos, na década de 1980, pelo químico e reverendo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr, que na época liderou movimentos pelos direitos civis da comunidade negra.

O conceito também foi difundido pelo sociólogo, ativista e pesquisador Robert Bullard, conhecido como o precursor da Justiça Ambiental. O estudioso conceitua como racismo ambiental qualquer política ou prática que possa afetar ou prejudicar, de maneira voluntária ou não, pessoas, grupos ou comunidades por motivos de raça.

A engenheira ambiental e sanitária, Nathália Nascimento, mestre  em engenharia ambiental pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), se dedicou a estudar em 2020 como as faces do racismo ambiental urbano vão promover consequências para moradores das comunidades da orla lagunar, localizada no bairro Vergel do Lago, mesmo bairro que reside a agente popular. 

Para Nathália, o racismo ambiental se caracteriza por serem negados os direitos básicos para a qualidade de vida dessa população. “São anos em que os políticos negligenciam condições mínimas, seja acesso ao saneamento básico, à saúde ou ao direito de usufruir sua própria cidade. É nítida a diferença do estilo de vida que a classe média alagoana leva e a vida dos que estão à margem da sociedade e da lagoa. É visível também o tom de pele de quem é excluído”, defende.

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

  • Jean Albuquerque

    Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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