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A luta de mães-solo para se manter nas universidades brasileiras

Segundo o IBGE, maternar, estudar e trabalhar é um desafio para mais de um milhão de mulheres no Brasil, que às vezes precisam escolher entre o cuidado com os filhos e os estudos

Imagem: I’sis Almeida/Alma Preta Jornalismo

Foto: Imagem: I’sis Almeida/Alma Preta Jornalismo

28 de março de 2023

Mantenedoras do lar, dos filhos e da própria vida acadêmica, a rotina das mães-solos universitárias se divide entre a maternidade, o trabalho e os estudos. São 11 milhões de mulheres que cuidam de seus filhos sem parceiros no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Destas, 12% (em torno de 1,3 milhão) são universitárias, sendo um quarto delas negras.

Gabriella Maria Martins dos Santos, de 24 anos, é estudante do terceiro período de Administração na Universidade Federal do Ceará (UFC). Mãe de dois filhos – Helena, de sete anos, e Enzo Matheus, de três  anos – a universitária cuida das crianças sozinha e concilia o trabalho como recepcionista hospitalar e a vida acadêmica.

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De acordo com nota enviada à Alma Preta Jornalismo, a UFC não possui um espaço reservado para os filhos das alunas. No entanto, por meio da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), o campus Fortaleza oferece um benefício denominado Auxílio-Creche no valor de R$ 210 para estudantes em condições de vulnerabilidade socioeconômica, que moram com seus filhos com idade entre seis meses e quatro anos.

“Esse benefício é contínuo, e mais: é um benefício que pode ser acumulado com outros auxílios e bolsas na Universidade”, diz a UFC.

Gabriella, de Caucaia (CE), cidade ao lado da capital Fortaleza – onde fica a universidade –, afirmou que não sabia que a UFC dispunha desse benefício, mas que vai procurar se informar. Para ela, poder contar com o auxílio, pelo menos para seu caçula, Enzo, será uma solução para custear parte do gasto mensal com a babá, contratada pela recepcionista.

De segunda à sexta, as crianças vão à escola das 8h às 16h30. Após esse período, eles são buscados por uma vizinha, que os leva para a casa, dá banho, jantar e os coloca para dormir por volta das 21h.

“Chego da faculdade por volta das 23h40, então normalmente meus filhos estão dormindo. O tempo que tenho com eles é curto, por que só consigo passar uma pequena parte da manhã com eles. Deixo eles na escola, vou trabalhar, e de lá vou direto para a aula. É uma rotina cansativa”, comenta a recepcionista.

Desde sua separação, que aconteceu em maio do ano passado, o pai das crianças não faz visitas ou paga pensão alimentícia. Órfã de mãe, a estudante nunca conheceu o pai e não tem parentes próximos que possam lhe ajudar, o que dificulta mais o seu desempenho acadêmico.

“Mensalmente eu pago R$ 800 para a babá dos meninos. Ganho R$ 2 mil de salário. Então me sobra R$ 1.200 para pagar aluguel, água, luz, internet, compras. Com duas crianças fica muito difícil estudar, ainda mais por que às vezes preciso faltar na aula porque um dos dois está doente. Sem rede de apoio, parece que a vida acadêmica e a maternidade não combinam”, desabafa.

Apesar do sonho de se formar, para dar um futuro melhor para seus filhos e ampliar suas possibilidades de trabalho, Gabriella confessa que pensa em desistir dos estudos devido ao cansaço e a distância.

“Foi muito difícil passar na faculdade, então eu fico dividida em continuar estudando ou aproveitar a infância deles. Muitas coisas que acontecem é a Dona Benedita [babá] que me fala, como o primeiro dente mole da Helena. Eu estudo por eles, mas penso em desistir por eles também”, explica a recepcionista.

Abandono paterno

Segundo dados da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), no ano passado cerca de 3,42 milhões de estudantes abandonaram as universidades públicas e privadas no Brasil — uma taxa de 36,6% de evasão. Desse total, 41% são mulheres.

Para minimizar esses efeitos, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) possui o auxílio creche que é disponibilizado aos estudantes vulneráveis socioeconomicamente, que tenham crianças sob guarda, de zero a cinco anos e 11 meses e 29 dias. O valor do auxílio é de R$250 por dependente por mês, segundo a instituição.

Taís Ferreira, docente da Faculdade de Educação da UFRGS, destaca que a evasão universitária das mulheres se dá, principalmente, devido à maternidade. No artigo “O desafio invisibilizado da maternidade solo na academia”, ela explica que mais de 5 milhões de crianças sequer têm o nome do pai no registro de nascimento, cabendo às mães, inclusive legalmente, a totalidade de responsabilidades para com as crianças.

“Urge desnaturalizar esses índices e perguntar: onde estão esses homens que impunemente se furtam, todos os dias, de suas obrigações parentais? Por que naturalizamos que mulheres sejam oneradas dessa forma em nossas estruturas sociais e renegamos as especificidades das relações afetivas, laborais, psíquicas de uma mãe submetida a esse tipo de maternidade?”, questiona a autora.

É o caso de Nataly Macedo, de 28 anos, ex-aluna do curso de Odontologia da Universidade Guarulhos, na Grande São Paulo. Com apenas quatro semestres para concluir o curso, a operadora de telemarketing abriu mão da carreira acadêmica para cuidar do filho, Otávio, de dois anos e oito meses, que é uma criança neuroatípica.

O pai de Otávio é aluno do curso de medicina veterinária da UNG e, segundo Nataly, disse que não poderia abandonar os estudos para cuidar do filho. Com pais idosos – que não podem prestar ajuda – e com a descoberta do autismo do filho, Nataly diz que se viu sem opções e resolveu trancar a faculdade no final do ano passado.

“A mensalidade estava cada vez mais cara, me desentendi e separei do pai do Otávio por que ele não ajudava a cuidar, só dá R$ 300 de pensão e acabou. Não encontrava ninguém para cuidar de um menino autista. Fiquei sem saída. Otávio em crise fica agressivo, se bate, então não tem como deixar ele na escola em tempo integral”, relata.

Nataly ainda comenta que todos os dias seu filho chegava da escola com hematomas, lesões que ela acredita que eram causadas por outros colegas de sala, que revidavam quando o menino ficava agressivo. Esse fato, segundo ela, foi decisivo para que interrompesse o curso.

“Tranquei para cuidar do meu filho. Saí do emprego que pagava bem para o telemarketing home office e assim vou ficar até ele crescer mais um pouco. Meus pais não dão conta de me ajudar com ele. Aliás, ninguém dá. Ele é uma criança diferente, então a minha vida como mãe é diferente também. Doía muito ver ele machucado, então escolhi ficar perto dele mais tempo”, completa.

A Universidade Guarulhos não possui nenhum apoio ou espaço às mães universitárias, segundo nota enviada à reportagem.

Rede de apoio

Beatriz de Paula, de 31 anos, já possui uma história diferente. Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em 2021, ela conta o quanto foi importante ter uma rede de apoio, dentro e fora do campus universitário.

“Com menos de um semestre de faculdade eu engravidei. Na hora eu fiquei desesperada, confesso. Mas conversando com a minha mãe ela disse que o meu bebê poderia não ter um pai presente, mas teria uma avó. Ela me apoiou em tudo. Assistiu ao meu parto, ficou com a Melissa [filha] pra eu ir à aula às vezes. Sem ela, não seria possível”, conta a arquiteta.

Em 2017, com um bebê em casa e sem pensão alimentícia, os gastos mensais aumentaram exponencialmente, o que fez a mãe de Beatriz, a auxiliar de enfermagem Maria do Carmo de Paula, de 54 anos, ter que fazer mais plantões. 

“Falei para a Bia ‘será que não tem um lugar para quem é mãe na Unesp?’ Ela pesquisou e descobriu que tinha sim, e que nos dias que eu precisasse fazer plantão no hospital a bebê podia ficar lá. Foi o que me deixou tranquila”, conta a mãe de Beatriz.

A Unesp mantém 14 Centros de Convivência Infantil (CCIs), que abrem vagas para servidores e também para estudantes da universidade. De acordo com nota oficial, atualmente, o percentual de vagas para filhos de alunas nos CCIs varia em torno de 15% (são 51 estudantes que usufruem deste serviço no momento).

Além disso, neste mês, o Conselho Universitário da Unesp aprovou a resolução de número 33, de 2023, em que prevê a concessão de auxílio financeiro à estudante em situação de vulnerabilidade socioeconômica responsável direto pela criança.

“Este auxílio é de R$ 500, com possibilidade de acumular com outros auxílios fornecidos pela Coordenadoria de Permanência Estudantil da Unesp. Se a estudante só receber este recém-criado auxílio maternagem, receberá ao menos o valor de R$ 500 acrescido dos R$ 300 do subsídio-alimentação, fornecido a todos os estudantes que recebem auxílio”, afirma a universidade em nota.

A Unesp informa também que cabe ao professor responsável pela disciplina autorizar ou não a presença de crianças na sala de aula. O docente tem plena autonomia nestes casos. Beatriz comenta que nunca teve problema com nenhum professor, pelo contrário, ela diz que eles a incentivaram a até mesmo amamentar durante as aulas.

O papel das universidades

Na Câmara dos Deputados, atualmente tramita um projeto de lei (PL 794/2023), que propõe a inclusão de um adicional de 50% do valor da bolsa estudantil para alunas provedoras de família monoparental na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Aguardando o parecer do presidente da Casa, Arthur Lira (PP), o benefício foi proposto pela deputada Dandara Tonantzin (PT). Durante uma reunião na Câmara, a parlamentar defendeu que a medida pode assegurar às mulheres a possibilidade de impulsionarem sua carreira acadêmica e profissional. 

“As mulheres, em especial as que são mães, são as mais impactadas pela falta de acesso à educação, e precisam ter a oportunidade de estudar sem se preocupar com a sobrevivência financeira”, afirma a deputada Dandara, que foi vereadora de Uberlândia (MG).

Enquanto a nova proposta não entra em vigor, algumas universidades tentam cumprir seu papel para a manutenção de mães-solo nos espaços acadêmicos, como é o caso do Grupo de Trabalho Unesp Mulheres. A instituição afirma manter na pauta de suas ações um debate permanente mirando o apoio às mulheres da comunidade universitária, bem como a busca pela equidade no ambiente universitário.

Os dados sobre universidades que possuem um espaço dedicado aos filhos das alunas não estão disponíveis no Ministério da Educação. No entanto, por mais que a maior parte dos campus não possua tais locais, algumas – como é o caso da Unesp e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) –  disponibilizam polos de cuidado infantil, para que as estudantes possam levar seus filhos à universidade.

Além disso, existem ainda instituições que concedem um benefício mensal às estudantes mães-solo para serem utilizados para o pagamento de creches, como é o caso da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por exemplo.

De acordo com o diretor de Assistência Estudantil da Ufes, Iury da Silva Pessôa, o marcador social mãe-solo “interfere na permanência da estudante na universidade, levando à retenção e à evasão”. Logo, segundo ele, o Auxílio Educação Infantil é muito relevante para essas estudantes e para o cumprimento dos objetivos da Assistência Estudantil.

“Ele [Auxílio Educação Infantil] dá condições para as estudantes custearem parte das despesas com creche, pré-escola ou cuidadores, oportunizando a elas concentrarem-se nas atividades universitárias ligadas à sua formação, contribuindo diretamente para a permanência qualificada na universidade e reduzindo-se a evasão e a retenção universitária”, finaliza o diretor.
Leia também: ‘O racismo na apropriação da imagem de crianças negras’

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