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O racismo na apropriação da imagem de crianças negras

Historicamente, a imagem de pessoas negras sempre foram utilizadas sem o seu consentimento para fins que não conheciam; com o passar dos anos, os usos foram se atualizando, mas a prática permanece

Imagem: Dora Lia/Alma Preta Jornalismo

Foto: Imagem: Dora Lia/Alma Preta Jornalismo

16 de março de 2023

Foi por meio das redes sociais que a artista visual e professora Marina Oare, 36, mãe de uma criança de dois anos, soube que a imagem de sua filha foi utilizada na obra de uma grafiteira. O caso se soma ao que aconteceu há poucos meses com o filho da empresária e ialorixá Preta Lagbara, que teve sua imagem tatuada no corpo de um desconhecido. Nas duas situações não houve autorização dos pais das crianças e nem dos fotógrafos para o uso das imagens. 

A artista Marina Oare conta que o grafite com a imagem de sua filha foi realizado em 22 de janeiro deste ano nos muros de um conjunto habitacional no Jardim Matarazzo, na capital paulista. A produção fez parte do projeto de um coletivo dedicado ao fortalecimento de mulheres, o Grapixurras. “No Instagram, passando o feed, encontrei um vídeo do processo de produção do grafite em que mostra a foto da minha filha, com a grafiteira fazendo o stencil, que é o molde, e depois a arte”, relatou Marina à Alma Preta Jornalismo.

A foto da filha dela foi retirada de um arquivo com imagens coletadas em um projeto chamado “Art’Revitalização”, em que as duas artistas (Marina e a grafiteira) estiveram presentes e se falaram pela primeira vez. No entanto, o uso da imagem da criança para o grafite não foi autorizada.

“Eu fiquei muito incomodada, a chamei no direct para conversar. Foi uma conversa que, à princípio, parecia se resolver facilmente, mas depois ficou bem desconfortante, porque ela se apoiou dentro da branquitude dela, da arte dela, de que não é uma pessoa ignorante”, conta a mãe da criança em vídeo publicado nas redes sociais.

Segundo Marina, a conversa piorou à medida que a grafiteira dizia que também era professora e que tinha a pauta negra dentro dos seus trabalhos educativos. Ela se recusou a apagar a obra com o argumento de que era uma homenagem e buscava a representatividade negra.

Segunda a mãe ‘eu não posso tirar [o grafite], porque eu preciso de autorização, mas se você quiser ir lá, apagar, passar uma tinta preta, fazer disso uma bandeira e, se for frutífero pra você, vai lá e faça’. Ela falou de uma forma sutil, foi agressiva passiva”, relatou também a mãe da criança.

“Eu fiquei muito machucada, ferida psicologicamente. Ela fez uma agressão passiva dentro do privilégio branco dela. Pegou a imagem de uma criança que não conhece e que teve apenas um encontro com a família. Ela precisava, sim, de autorização e ela não levou isso em consideração. Ao meu entender, ela fez uma desumanização”, destaca Marina.

A família da artista visual optou por não revelar publicamente o nome da grafiteira. A Alma Preta Jornalismo também entrou em contato com a mulher envolvida no ocorrido com pedidos de posicionamento. Até o fechamento do texto, uma resposta não foi enviada. Em um último contato, a grafiteira disse que leria a matéria, veria o que seria falado e iria procurar também um advogado, já que estava sozinha nessa questão. O espaço permanece aberto.

Um caso semelhante e de grande repercussão nacional ocorreu em novembro de 2022 com a ialorixá e empresária Preta Lagbara, 42. Ela teve a imagem de seu filho, uma criança negra de 5 anos, tatuada no corpo de uma pessoa desconhecida. O caso foi descoberto depois que o tatuador Neto Coutinho ganhou em segundo lugar em uma categoria no prêmio internacional Tattoo Week pela tatuagem.

Nem os pais da criança, nem o fotógrafo da foto coletada, Ronald Santos Cruz, foram consultados sobre o uso. Preta Lagbara, segundo publicação da Folha de São Paulo, entrou com um pedido de indenização por danos morais ao tatuador e à organização do evento pelo ocorrido. O abalo psicológico e físico pela situação também foi comentado pela mãe.

“O que se trata é que ele não pode simplesmente achar que em pleno 2022 as pessoas ainda têm direito de pegar uma foto de uma criança aleatória e tatuar no corpo de alguém. Você pegar uma foto, levar para um concurso, e tatuar no corpo de alguém que nunca teve algum tipo de contato com a criança é um absurdo, é desrespeitoso, desumano. Meu filho não é um animal em zoológico”, comentou Preta, segundo publicação do Uol. 

Para Marina Oare, além da infração legal do não consentimento, esses casos também podem ser vistos sob a ótica do racismo. “A partir do momento que ela coloca a arte e o ego artístico dela à frente de tudo e as palavras dela nos fere, mesmo que pacificamente, com certeza é racismo. Nós sentimos isso. O ego dela artístico interferiu na humanidade da nossa filha. Se ela está dialogando sobre questões raciais, ela precisa entender que o que ela fez é errado e a forma como ela está dialogando está equivocada, porque é errado ela colocar a branquitude dela e as dores dela na frente da humanidade da minha filha, da minha enquanto mãe e a do meu esposo”, relata à Alma Preta Jornalismo.

O escritor Tago Elewa, 37, pai da criança de 2 anos exposta no grafite, relata no vídeo publicado nas redes que a família preferiu, inclusive, procurar os meios legais para agir para que, na raiva e na indignação, a reação deles, como ir apagar o grafite ou revelar publicamente o nome da grafiteira, não fosse usada contra os próprios pais.

“Nós somos pessoas pretas no Brasil e a gente sabe que a nossa reação ao racismo é sempre utilizada contra nós. Então esse movimento que nós estamos fazendo é também no sentido de que dê um basta à ideia de que os nossos corpos e a nossa imagem é pública”.

Ele conta que a ação tem o intuito de conseguir reparar o dano emocional à família, mas também o dano do racismo como um todo. “Nós acreditamos que essa ação não é uma ação só nossa familiar, mas sim uma ação coletiva, porque ela busca de certa forma criar uma barreira ou um parâmetro para que essas situações não ocorram com tanta facilidade como tem acontecido”, também acrescenta Tago.

O não consentimento como reflexo do passado

Segundo o mestre em História Social Flávio Muniz, bacharelando em Direito e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB Uberlândia, a utilização de imagens de pessoas negras é algo que tem sido feito há muito tempo. No período da escravização, por exemplo, não havia um pedido de consentimento para a coleta dessas imagens.

Ele conta que, no século 19, as fotografias do negro escravizado era negociada e vendida em postais não só no Brasil, mas em todo o continente africano inclusive, como a África colonizada pela França, por Portugal e pela Inglaterra.

O historiador explica que a representação das pessoas negras naquele momento tinha uma função principal: mostrar uma senzala pacificada e sob controle, mesmo isso não sendo uma verdade. As pessoas negras eram colocadas na fotografia em poses, eram moldadas conforme os colonizadores queriam fotografar.

“Aqueles negros poderiam dizer não? Eles não poderiam. Hoje, quando se pega instintamente a imagem de uma pessoa negra e se usa pra um fim qualquer, como fim econômico ou qualquer outro que seja, perpassa também por essa ideia de que o corpo do negro é um não lugar. É um espaço no qual se pode tudo ou com quem se pode tudo. É essa imagem que é construída com relação ao homem negro e sobre a mulher negra, inclusive dentro de todos os estereótipos e preconceitos que o racismo sistêmico produz para as nossas vidas”, explica o historiador.

Escravizados em fazenda de caféEscravizados no terreiro de uma fazenda de café. Vale do Paraíba, c. 1882 | Crédito: Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo IMS

“Quando eu falo do corpo do negro como um não lugar é como se a identidade negra pudesse ser moldada, manuseada da forma com que a sociedade quer, porque foi assim que eles se acostumaram a fazer com a gente”, também acrescenta Flávio Muniz.

Segundo o historiador, ao analisar os casos das imagens de crianças negras utilizadas sem consentimento dos pais, é preciso analisar como foram essas representações, também quem as fez e quem lucra com isso, porque é respondendo a essas perguntas que se encontra a exposição de um lugar de poder e de privilégio.

“A pergunta é quem é essa criança? Essa pergunta nunca é feita. Não é um menino abandonado, porque o corpo da criança negra é visto dessa forma. É um pouco dessa imagem de que ser negro é qualquer negro, é todo mundo, são todos iguais. Ninguém nunca perguntou realmente se você quer tirar foto. Chegam, tiram e levam como sempre. E tudo isso acontece dentro de uma sociedade que está minada, porque nós negros sentimos durante muitos anos a irresponsabilidade do estado e das pessoas não só com nossa imagem, mas com as nossas vidas”, explica Flávio.

Além disso, o historiador e bacharelando em Direito ressalta que essas dinâmicas podem acontecer mesmo sem a intenção exata de quem faz, porque é como também funciona o racismo estrutural. Muitas vezes, está no inconsciente coletivo. “As pessoas conseguem reproduzir, porque ele é uma matriz. E aí eles não conseguem entender que eles estão sendo racistas, porque eles acham que o racismo é só a intenção”.

Há inclusive um paralelo que pode ser feito com imagens de pessoas negras que são utilizadas sem pedidos de consentimento quando se divulga iniciativas de voluntariado em localidades com alguma vulnerabilidade ou em campanhas de doação internacional.

O jornalista Dennis de Oliveira, militante da Rede Quilombação, comenta que, nesses casos, pode haver a naturalização da ideia de pessoas negras em condição de vulnerabilidade, de subalternidade, e que a sua condição só pode ser resolvida a partir do paternalismo de uma pessoa branca.

“Essa imagem é muito comum nas campanhas, inclusive internacionais, que sempre colocam crianças, jovens, adolescentes, mulheres negras em situação de miserabilidade enquanto pessoas brancas auxiliam. Isso acaba cristalizando as hierarquias raciais do ponto de vista da sociedade e esse tipo de propaganda acaba contribuindo para a naturalização do racismo”.

Complexo do Salvador Branco

Há muitos casos de pessoas negras expostas sem consentimento em situação de vulnerabilidade quando se divulga iniciativas de voluntariado e doação | Crédito: Reprodução/ Radi-Aid

Ainda de acordo com o jornalista, em alguns momentos, retratar uma imagem de sofrimento pode ser uma denúncia, até para sensibilizar a sociedade em relação àquela situação que está sendo vivenciada e demonstrar que é necessário fazer alguma coisa. Porém cada caso deve ser analisado.

“Quando se persiste nisso e se faz isso de forma recorrente, pode cristalizar a ideia de que o lugar daquele sujeito, pessoa, grupo social e étnico é naquele lugar de subalternidade. Por isso tem que ver caso a caso, sempre levando em consideração o que essas pessoas pensam disso”.

Leia também: Racismo é crime e, como tal, deve ser punido

Medidas legais cabíveis no caso do grafite e da tatuagem

Para Dennis de Oliveira, também professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e escritor do livro “Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica”, as situações ocorridas com as imagens das crianças no grafite e na tatuagem desrespeita a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que protege os dados pessoais e a imagem pessoal de crianças.

“Isso é uma ilegalidade e deve ser tratada judicialmente. E o racismo ocorre porque é a velha ideia de que a população negra está apartada dos códigos legais existentes”, comenta.

De acordo com o advogado e professor João Batista de Oliveira Cândido, cofundador do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é possível penalizar aqueles que tenham agido de forma discriminatória, com suas ações e atos, tanto na esfera civil, como na esfera penal. Porém, tudo depende da comprovação dos atos e fatos praticados.

O advogado observa nos casos a violação do direito à inviolabilidade da imagem prevista no artigo 17 do Estatuto da Criança e Adolescente. Além disso, ele destaca que o direito de imagem da pessoa humana tem proteção constitucional estabelecida na regra do artigo 5º, inc. X da Constituição Federal. No caso da tatuagem e do grafite, ele também observa que há a violação ao direito autoral dos fotógrafos, que fizeram as imagens que foram utilizadas sem permissão.

Segundo o cofundador do IBDFAM, a questão, portanto, tem solução na esfera civil, no plano do direito da personalidade, ensejando o direito à indenização em face da responsabilidade civil, indenização por dano moral e, dependendo da extensão do dano psicológico que exija tratamento, danos materiais.

No caso da criança que teve o rosto tatuado em um desconhecido, o advogado de defesa do tatuador e do evento onde a tatuagem foi realizada chegou a utilizar o artigo 46 da Lei de Direitos Autorais e o conceito de “fair use” (uso de material protegido sob certas circunstâncias) para justificar a legalidade da tatuagem. Segundo publicação do Extra, ele diz que não há uma questão em torno da tatuagem com o rosto da criança, uma vez que ela não teve caráter ofensivo e não foi utilizada para fins comerciais.

Na época, o tatuador também emitiu um comunicado se retratando pelo acontecido. Ele alegava que também é uma pessoa preta e diz que “pautou a execução da tatuagem sem o nível de informação necessária, reconhecendo o equívoco cometido, mas – sobretudo – sem qualquer intenção de trazer prejuízo para quem quer que seja”.

O advogado João Batista explica que as isenções do artigo 46 da Lei Autoral não são suficientes para superar o direito constitucional de imagem, indevidamente utilizada. A própria regra mencionada define que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de retratos, desde que não haja oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros.

Quanto à alegação da defesa de que não há uma questão em torno da tatuagem com o rosto da criança, uma vez que ela não teve caráter ofensivo e não foi utilizada para fins comerciais, João Batista diz que a ofensa está justamente no uso da imagem sem autorização, vedada constitucionalmente.

“A defesa reproduz na sua lógica o caráter de racismo estrutural que ensejou a situação. Acreditam que não é ofensivo usar imagens não autorizadas de crianças negras. No Brasil, não se veem crianças brancas sendo reproduzidas em tatuagens de corpos sem a devida autorização dos pais, como fizeram com esta criança negra, e isto, só se fez porque se tratava de uma criança negra. É faltar com a verdade dizer que não foi utilizada para fins comerciais. Foi utilizada em um concurso de tatuagem, a qual foi vencedora, tendo premiação e exposição absurda com os fatos praticados, havendo ganhos econômicos de imagem e exposição”, comenta.

O advogado encerra dizendo que em uma situação como essa a sugestão é sempre procurar um defensor público ou advogado para as providências cabíveis. Na esfera penal, segundo ele, a questão deve ser examinada em conformidade com os fatos e atos praticados. “Na questão da grafitagem, por exemplo, é preciso saber se feita com o escopo discriminatório, e injuriante, para aí então adentrar na esfera penal, por exemplo, pelo crime de injúria racial e racismo”.

Ele explica que a recente Lei 14.532 de 11 de janeiro de 2023 (que tipifica como crime de racismo a injúria racial) permite hoje que haja o enquadramento, a depender dos fatos e atos, destas situações praticadas pela professora, e mesmo do tatuado, caso tenham sido realizadas com intenção discriminatória, o que pode ser apurado.

Inclusive a nova lei, em seu artigo 20c, diz que “o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.

Preta Lagbara, que aguarda os desdobramentos do caso na Justiça, conta não saber se ainda, de fato, a remoção da tatuagem de seu filho está em andamento, conforme o tatuador contou. Ela ainda não teve acesso a vídeos e fotos da sessão de remoção, mas conta estar satisfeita com a repercussão do caso desde então.

Depois do ocorrido, a deputada estadual Renata Souza (PSOL) e a vereadora Thais Ferreira (PSOL) protocolaram um projeto de lei que regulamenta o uso de imagens de crianças e adolescentes por tatuadores na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e Câmara do Rio. O projeto se chama “Lei Ayo”, mesmo nome do filho de Preta.

“Eu não queria uma resolução a curto prazo, eu queria uma resolução a longo prazo, justamente para que outras crianças não passassem por esse tipo de exposição, constrangimento, desrespeito e desumanização”, disse a ialorixá à Alma Preta Jornalismo.

Já Marina Oare, mãe da criança exposta em um grafite, conta que ela e seu marido iniciaram uma rifa, divulgada em suas redes sociais, para coletar os recursos necessários ao longo da ação judicial que estão movendo contra a grafiteira que fez a arte com a imagem de sua filha.

“O alerta mesmo é para nós comunidades pretas para que todos não possam se calar. A gente está num parâmetro em que negros estão na moda, estamos na TV, estamos na mídia, estamos em vários lugares, só que ainda somos vítimas, constantemente, de um racismo que está atrás de nós o tempo todo. Essa maneira só se atualizou. É importante nós como pretos saber que nós temos direitos e a gente não precisa relevar qualquer coisa. As pessoas precisam ser colocadas nos seus devidos lugares”, finaliza.

Leia também: Três mulheres são condenadas por ataques racistas a criança moçambicana em Maceió

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