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Assim é o racismo ‘criollo’: EUA, 4 anos após assassinato de George Floyd

Após o assassinato de George Floyd por um policial branco, uma multidão multiétnica tomou as ruas de Minnesota: em poucos dias, os protestos se espalharam por mais de 140 cidades. Quanto tempo mais será necessário para desmantelar a violência contra os afrodescendentes nos Estados Unidos? E na Argentina? "Subestimar o racismo local contra os negros não é apenas um erro de cálculo político, mas um risco real para o nosso sistema democrático", diz o cientista político e ativista afro-argentino Federico Pita. E acrescenta: a justiça social se torna um slogan vazio se a justiça racial não for levada em conta. Porque hoje os espaços de poder são sempre da mesma cor: brancos.
A delegacia de polícia de Minneapolis em chamas durante os protestos contra o assassinato de Floyd

Foto: Marx21US/Reprodução

15 de junho de 2024

Por: Federico Pitaensaio originalmente publicado em 4 de junho de 2020, na publicação argentina Revista Anfibia

Miguel Angel Paz mora em Olivos, em um prédio nobre com conforto e segurança 24 horas. A quarentena para a Covid-19 ainda não começou na Argentina, mas ele, que acaba de voltar de uma viagem aos Estados Unidos, deve cumprir o isolamento obrigatório. Só que Miguel não vai deixar que o guarda negro de seu prédio lhe diga se ele pode ou não sair de casa. Por isso, ele lhe dá uma surra. A polícia responde à chamada de emergência do guarda ferido, registra a queixa e envia um carro de patrulha à casa para garantir o cumprimento das regras. Gustavo Cardinale, diante do decreto presidencial de isolamento preventivo e compulsório, coloca sua empregada no porta-malas do carro para que ele possa levá-la para sua casa no campo e não ficar sem alguém para lavar sua roupa. A polícia recebeu a denúncia e devolveu a empregada à sua casa. Muitos outros Miguéis, Gustavos, lotam a rotatória de Pinamar para passar a quarentena em frente ao mar. As operações policiais convidam os veículos a retornar aos seus locais de origem. Quando o empresário Gustavo Nardelli resolve dar uma volta em seu iate, em clara violação ao isolamento, as forças de segurança também aparecem para estabelecer a ordem, com respeito e distância, de acordo com a lei e com tratamento justo. É assim, entre várias outras formas, que o privilégio branco funciona na Argentina.

Quando você é negro, as coisas mudam. Quando as forças de segurança entram nos bairros da classe trabalhadora e precisam fazer cumprir as mesmas regras ou leis, a atitude é radicalmente oposta. Há violência, espancamentos, difamação, ameaças (o famoso “fique calmo”), balas de chumbo nas costas. Os direitos não são os mesmos quando você é negro. Como sociedade, insistimos em explicar essas diferenças em termos de classe social e demonstramos uma cegueira absoluta que não nos permite ver que elas são, pura e simplesmente, expressões locais de racismo.

Minneapolis

Em Minneapolis, no estado norte-americano de Minnesota, o policial branco Derek Chauvin aperta o pescoço de George Floyd com seu joelho por oito minutos. Ele o aperta até a morte: outro assassinato de um afro-americano por um policial nos Estados Unidos. Uma multidão multiétnica sai às ruas e, em poucos dias, as mobilizações se espalham por 140 cidades. As redes sociais do mundo explodem e a Argentina não é exceção. O jornalismo argentino se apressa em fazer sua análise. O jornalismo hegemônico enfatiza os tumultos, a destruição da propriedade privada e justifica a ação repressiva ao criminalizar o protesto. O jornalismo progressista se solidariza com as pessoas nas ruas e denuncia o racismo, como se essa ideologia fosse exclusiva da América do Norte, da Europa e, no máximo, do Brasil, mas não da Argentina.

As vidas dos negros valem tão pouco que os policiais não perceberam que estavam sufocando George Floyd. Eles o trataram mais como um objeto sobre o qual se apoiar, sem nenhum cuidado, do que como uma vida humana em suas mãos. Os policiais ouviram Floyd dizer que não conseguia respirar, como alguém que ouve a chuva.

Luciano Arruga era uma criança quando foi detido por horas na delegacia de polícia, incomunicável e sem a presença de um promotor juvenil. O comissário o chamou de “negro rastejante” enquanto o torturava. Ele ainda era uma criança quando se tornou desaparecido e foi enterrado como indigente. O racismo nos Estados Unidos é baseado na memória e nos efeitos ainda presentes da escravidão, da conquista e da colonização desses territórios. Na Argentina também, mas é difícil admitir isso.

Racismo criollo*

Afrodescendente é qualquer pessoa de ascendência africana nascida fora do continente africano. As pessoas escravizadas foram introduzidas em todo o continente americano durante a colonização da América e várias décadas após as guerras de independência. As feridas da conquista, da escravidão e da colonização nos atravessam do Alasca à Terra do Fogo. A Argentina anunciou que a escravidão deixou de existir em 1853 com a aprovação da Constituição Nacional, embora Buenos Aires não tenha aderido à Carta Magna até 1860. Os EUA aboliram a escravidão logo depois, em 1863. Enquanto nos EUA os afro-americanos são chamados de negros, na Argentina usamos o termo de forma mais ampla: negro é qualquer pessoa de ascendência africana, um descendente de africanos escravizados, um membro de nações nativas e/ou um descendente de povos nativos, uma pessoa provinciana de pele escura, uma pessoa de pele escura, um morador de uma favela ou de um bairro operário, uma pessoa pobre.

Os negros de cabeça, os negros de merda, os negros de favela, os negros de dentro, os negros de alma na Argentina têm uma origem profundamente identitária e o Estado se encarregou de enterrá-los como uma vergonha familiar. A verdade, porém, é que este país foi construído sobre as costas de afrodescendentes e indígenas: os primeiros, trazidos em navios negreiros como mão de obra escrava, como mercadoria e contra sua vontade; os segundos, reduzidos à mais atroz servidão. Centenas de milhares de afro-argentinos e indígenas foram aqueles que colocaram seus corpos em batalhas para conquistar a independência e a liberdade que hoje são recompensadas com invisibilidade e negação. Nem a febre amarela nem os rifles Remington nos mataram a todos, embora essa fosse a intenção do Estado. O genocídio simbólico, físico e material daqueles que não se encaixam no paradigma do poder está imortalizado no vergonhoso artigo 25 da nossa Constituição Nacional, “O Governo Federal incentivará a imigração europeia…” — traduzido: os brancos são bem-vindos, os outros não.

As violações originais dos direitos humanos sobre as quais os alicerces desta nação foram construídos são os pecados originais da escravidão, do comércio transatlântico de escravos e do plano para exterminar os povos nativos. Esses foram os primeiros crimes contra a humanidade em nossa terra natal. A colônia acabou, mas deixou o sistema de castas não mais de jure, mas de facto: as pessoas dos bairros da classe trabalhadora são, em sua maioria, de pele escura. Nós somos os descendentes.

O racismo é geralmente entendido como um fenômeno que afeta sociedades com minorias étnico-raciais, como os Estados Unidos, onde os afrodescendentes representam 14% da população. Na Argentina (assim como no Brasil, por exemplo), o racismo rege as estruturas sociais, políticas e econômicas, embora a maioria da população não seja branca. Não há leis que digam que os negros não podem eleger nossos representantes ou ser eleitos para esses cargos, mas há um monocromo violento que une os membros dos três poderes de nossa ordem republicana. Nas ruas da cidade de Buenos Aires, do Paraná, de Salta, de todas as cidades e vilas de nosso país, as pessoas são de todas as cores, enquanto nos lugares de poder os brancos são a maioria esmagadora.

Virar as costas para um problema só o torna maior

A extrema-direita está avançando no mundo; os novos fascismos estão consolidando maiorias legislativas e, em alguns casos, conquistando chefes de Estado. O presidente da maior potência militar do mundo, Donald Trump, nomeia o antifascismo — uma corrente política antirracista e classista — como um grupo terrorista. E na Argentina ainda nos damos ao luxo de duvidar se o racismo existe ou não. Certamente são poucos os que se atrevem a dizer publicamente que o racismo e qualquer questão relacionada aos povos indígenas e aos afrodescendentes não são importantes. Nos debates políticos e acadêmicos, muitas vezes é dada importância a eles. O problema é que a fenda racial que atravessa nosso país, o racismo estrutural que sofremos, simplesmente não é uma questão importante. Reconhecer e abordar o racismo é uma necessidade urgente se quisermos começar a falar sobre justiça racial e reparações para afrodescendentes e povos indígenas.

Subestimar o racismo contra os negros na Argentina não é apenas um erro de cálculo político, mas um risco real para o nosso sistema democrático. A direita argentina aggiornada [termo italiano para “atualizado”], que está concorrendo às eleições, obteve 40% dos votos em 2019 e tem uma forte base eleitoral nos grandes centros urbanos. Experiências como as do partido Vox na Espanha, a ascensão sustentada de Marine Le Pen na França ou mesmo o triunfo de Bolsonaro no Brasil (somente após a impugnação da candidatura de Lula) nos lembram que dar as costas a um problema só o torna maior. Esses partidos apelam para os desencantados com uma retórica antiestablishment e antipartidária, em que o racismo é uma das principais ferramentas de construção política. O racismo, de fato, detém a autoria do mito fundador da argentinidade: a dicotomia civilização ou barbárie. Essa infame proclamação racista contra os negros aponta, na realidade, para a fenda intransponível, um projeto nacional descarado, profundamente elitista e racista, de um lado; e, de outro, um projeto nacional que se imagina popular, plural e democrático, mas que se ilude ao não reconhecer a enorme dívida que tem com suas maiorias não brancas. A bandeira da justiça social se torna um slogan vazio se a justiça racial não for levada em conta.

Duas Argentinas: qual delas alimentaremos?

O momento para transformações profundas e de raiz é agora. É urgente e necessário reformar, por exemplo, um sistema educacional que insiste em vender uma Argentina homogênea de descendentes de imigrantes europeus trabalhadores, uma Argentina bem-intencionada que acolhe “todo homem de bem” e onde crimes racistas como o de George Floyd não acontecem. É urgente e necessário que tenhamos uma discussão profunda dentro dos projetos progressistas, de esquerda e/ou nacionais e populares, para que isso não aconteça novamente, como em 1810 e 1816, quando negros e índios foram deixados de fora.

O intelectual afro-americano James Baldwin se perguntava quanto tempo mais seria necessário para desmantelar o racismo nos Estados Unidos: seu pai, sua mãe, seu tio, seus irmãos, suas irmãs, suas sobrinhas e seu sobrinho já haviam esperado demais. Quanto tempo mais seria necessário para que os brancos progredissem como seres humanos? Na Argentina, nós, negros, também estamos esperando a nossa hora. Há algumas semanas, pudemos comemorar a nomeação, pela primeira vez em duzentos e dez anos de história, de uma mulher e afro-argentina como embaixadora de nosso país, nada menos que no Estado da Cidade do Vaticano. A novíssima embaixadora María Fernanda Silva declarou em uma nota à Agência Nacional de Notícias Télam: “Minha nomeação ocorreu no final de janeiro, dias depois de o país ter vivido o assassinato de Fernando Báez Sosa, morto aos gritos de ‘negro de m…’, em um crime de ódio racial e de classe. Essas são as duas Argentinas que coexistem. E é muito importante ver qual das duas nós alimentamos.”

*’Criollo’ é um termo utilizado desde a época da colonização europeia da América, aplicado aos nascidos no continente americano, mas com origem europeia. Diferente do nativo, o criollo era no Império Espanhol um habitante nascido na América com pais europeus, ou descendente somente deles.

Este artigo foi publicado originalmente em espanhol no portal Negrx, parceiro da Alma Preta na Argentina, e parte do site do jornal Página 12.

  • Negrx

    Negrx é uma seção antirracista publicada no jornal Pagina/12, da Argentina, e reúne textos de pesquisadores e jornalistas negros comentando a questão racial argentina e o mundo. Negrx é um grupo parceiro da Alma Preta.

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