Quatro dos 11 envolvidos na morte de Bruno e Yan Barros, tio e sobrinho acusados de furto de carne em uma unidade do Atakarejo, respondem ao crime em liberdade provisória e outros cinco são considerados foragidos. Apenas dois acusados estão presos.
O caso completa um ano nesta terça-feira (26) e chamou atenção nacional e internacional diante da brutalidade contra o jovens, negros e da periferia, e pela suposta relação dos funcionários do mercado com integrantes do tráfico de drogas do Nordeste de Amaralina, em Salvador.
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A Alma Preta Jornalismo teve acesso às decisões da Justiça da Bahia. Foram soltos, após parecer favorável do Ministério Público da Bahia (MP-BA): Cristiano Rebouças Simões, funcionário do Atakarejo; Victor Juan Caetano Almeida, apontado como um dos responsáveis por entregar as vítima para traficantes; Agnaldo Santos de Assis, gerente-geral do supermercado; e Cláudio Reis Novais, encarregado de prevenção de perdas do mercado.
Cinco foram apontados como foragidos: Alex de Oliveira Santos (vulgo “Arraia”), João Paulo Souza Santos (vulgo “JP”), Janderson Luis Silva de Oliveira (vulgo “Feijão”), Lucas dos Santos (vulgo “Amoeba”) e Rafael Assis Amaro Nascimento (vulgo “Fadiga”). Todos são suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas e acusados pela justiça pelas mortes de Bruno e Yan.
Já os dois acusados presos são: David de Oliveira Santos e Francisco Santos Menezes, apontados como responsáveis por entregar as vítimas ao tráfico.
Entenda o caso
O caso aconteceu no dia 26 de abril de 2021, quando Bruno Barros da Silva, 29 anos, e Yan Barros da Silva, de 19 anos, foram flagrados por seguranças do Atakarejo, no bairro do Nordeste de Amaralina, em Salvador, numa tentativa de furto de carne.
Os dois foram levados para uma área restrita aos funcionários do mercado, conhecida como “P2”, onde foram agredidos. Conforme aponta a investigação do Ministério Público, os funcionários pediram R$ 700 às vítimas referente ao valor dos quatro pacotes de carne ou então eles seriam entregues a traficantes do Nordeste de Amaralina.
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Com isso, Bruno chegou a ligar para uma amiga para pedir a quantia. Conforme o inquérito, a última frase dita por Bruno ao telefone foi: “Não me deixa morrer”. Por não terem o dinheiro, tio e sobrinho foram entregues ao tráfico. Os corpos deles foram encontrados com sinais de tortura e tiros dentro do porta-malas de um carro.
Ao todo, 13 pessoas foram denunciadas pelo MP-BA pelas mortes de Bruno e Yan, incluindo Michel da Silva Lins e Ellyjorge Santos Lima, denunciados por ocultação de cadáver. No entanto, a Justiça da Bahia, por meio da juíza Gelzi Almeida Souza, determinou a aplicação de medidas cautelares, que incluem: comparecimento mensal na justiça, proibição de qualquer contato com familiares das vítimas e testemunhas do processo e a proibição de sair de Salvador sem autorização judicial. Eles não tiveram prisão preventiva decretada.
Na decisão, a magistrada apontou que as medidas são aplicáveis já que o crime de ocultação de cadáver tem pena inferior a quatro anos.
Ainda segundo denúncia do MP-BA, Agnaldo Santos de Assis, gerente-geral do supermercado; Cláudio Reis Novais, encarregado de prevenção de perdas do mercado; e Cristiano Rebouças Simões, funcionário do mercado, foram denunciados por homicídio qualificado por motivo torpe, meio cruel e sem possibilitar a defesa das vítimas, constrangimento ilegal e extorsão.
Victor Juan Caetano Almeida, David de Oliveira Santos e Francisco Santos Menezes, apontados como os responsáveis por entregar as vítimas a traficantes, foram denunciados por crimes de homicídio qualificado e cárcere privado.
Já Lucas dos Santos, João Paulo Souza Santos, Alex de Oliveira Santos, Janderson Luís Silva de Oliveira e Rafael Assis Amaro Nascimento foram identificados como responsáveis pela execução de tio e sobrinho e denunciados por homicídio qualificado.
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Brutalidade
Apesar da mercadoria nunca ter saído do estabelecimento, Bruno e Yan foram entregues à morte. Conforme autos do processo, ao qual a reportagem teve acesso, tio e sobrinho foram pegos no supermercado e levados até a localidade “Pescador”, no Nordeste de Amaralina, onde um outro grupo envolvido com o tráfico já os aguardava.
Em seguida, as vítimas foram conduzidas para a região do “Boqueirão”, onde Bruno teria sido identificado como integrante da facção Bonde do Maluco (BDM), rival da facção CP/CV (Comando da Paz/Comando Vermelho), apontado como responsável pelo tráfico de drogas no Nordeste de Amaralina.
O inquérito cita que Bruno e Yan foram tratados como “alemães” (inimigos) e foram executados a mando de Rafael Assis Amaro Nascimento, apontado pelo MP-BA como o “gerente” do tráfico na região. Ainda segundo a denúncia, os disparos fatais foram efetuados por Janderson Luis e Alex de Oliveira.
Segundo laudo necroscópico, o corpo de Bruno apresentava tórax aberto com exposição de órgãos internos, abdomen com lesões com exposição de alças do intestino, afundamento total do crânio e maxilar. O corpo de Yan Barros apresentava afundamento total do crânio e maxilar, cavidade craniana desprovida de massa encefálica decorrente de total lesão.
Os corpos foram colocados em um carro marca Hyundai, modelo L30, que havia sido roubado no dia 21 de abril, por volta das 20h no bairro do Itaigara. O veículo com os corpos foi abandonado na Rua Guiomar Florence, no bairro Parque Bela Vista, em Salvador, a cerca de 4,2 km da região do crime.
A Alma Preta Jornalismo não conseguiu confirmar o envolvimento de Bruno Barros com o tráfico de drogas, no entanto, tivemos acesso a um histórico de ocorrências criminais, expedido pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), que aponta o envolvimento de Bruno com crimes de furtos. Na Justiça da Bahia, há dois processos no nome de Bruno por furtos em supermercados.
Não foi um caso isolado
Seis meses antes do assassinato de Bruno e Yan, um caso semelhante ocorreu dentro da mesma unidade do Atakarejo. Em outubro de 2020, uma adolescente de 15 anos foi acusada de furto no mesmo supermercado e foi entregue pelos seguranças ao tráfico local.
A jovem alega que já havia furtado produtos no estabelecimento e resolveu voltar com duas amigas. Dessa vez, ela teria sido reconhecida por um dos seguranças e foi levada para um grupo de traficantes.
A adolescente foi conduzida à área do Boqueirão, onde foi torturada e ameaçada de morte por traficantes. Ela teve o braço cortado e machucado com uma barra de ferro e ainda foi fotografada pelos criminosos.
Ela foi solta, mas ficou internada no Hospital Geral do Estado diante da gravidade das lesões.
“Me cortaram, abriram meu braço aqui com ferro. Isso ainda me afeta muito, me dói muito, porque aconteceu comigo e eu ainda fiquei com o trauma, sabe? Fiquei um tempo com trauma, escutando vozes, achando que as pessoas iam atrás de mim”, disse a jovem ao G1 Bahia, em maio do ano passado.
‘Atakarejo não reconhece caso como racismo’
Diante das mortes de Bruno e Yan, no ano passado, entidades que atuam em defesa ao antirracismo e aos Direitos Humanos entraram com ações na Justiça em que pedem a erradicação do racismo estrutural no ambiente de trabalho e uma indenização por danos morais coletivos de R$ 200 milhões do Atakarejo. Os processos foram protocolados na Justiça da Bahia e na Justiça do Trabalho federal.
Na ação, as entidades Educafro, Centro Santo Dias de Direitos Humanos e o Instituto Odara Mulheres Negras alegam que “o ambiente de trabalho da empresa supermercadista está contaminado pela violência racial, permitindo que funcionários recebam ordens que provocam agressões a pessoas negras por motivo fútil, constituindo-se um caso de racismo estrutural”.
Além da indenização, as entidades também solicitam uma lista de medidas estruturantes como a presença de negros em todas as instâncias da empresa, na mesma proporção com que se dá sua presença na sociedade, e a realização de um programa permanente de treinamento em direitos humanos e igualdade.
Um ano após o caso, o processo ainda segue na justiça e o Atakarejo não reconhece o caso como racismo, segundo aponta o advogado da Educafro, Marlon Jacinto.
“Assim como existe um ambiente de trabalho que pode ser nocivo, periculoso e insalubre, o que nós estamos afirmando é que o ambiente de trabalho instituído no Atakarejo é um ambiente de trabalho racista, em que o racismo preside as relações de trabalho”, comenta o advogado.
Como argumento, o advogado aponta a reiteração da prática no Atakarejo e o fato de que o caso aconteceu pelas forças de funcionários integrantes da estrutura do supermercado. Ele também pontua a existência de mais um caso envolvendo a entrega de duas jovens ao tráfico por funcionários do supermercado.
“A prova disso é que não foi um fato isolado o que ocorreu com o Bruno e o Yan, mas fazia parte de uma série de episódios envolvendo violência brutal e física contra pessoas a quem se atribuia a prática de furtos”, afirma Marlon Jacinto.
“O que nos faz acreditar que há uma orientação da própria gestão do supermercado, já que não houve nenhum ato de impedimento nas vezes anteriores”, explica.
Hildete Emanuele, coordenadora do projeto “Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar”, projeto do Odara – Instituto da Mulher Negra, confirma que o processo tem encontrado entraves pela falta de reconhecimento do caso como racismo.
Segundo a coordenadora, as entidades esperam reverter a quantia da indenização para a comunidade negra, que será destinada para organizações e instituições que desenvolvem projetos sociais nas comunidades. “A gente acha que é mais justo que outras entidades, inclusive que tenham ações mais firmes no bairro, na comunidade, tenham esse recurso”, argumenta a coordenadora.
A última audiência aconteceu em março deste ano e, até o momento, não há previsão de acordo com o Atakarejo.
“O supermercado deve uma resposta à sociedade brasileira que foi atingida, alcançada e atravessada por esse caso. Vai fazer um ano agora e nada foi resolvido, nada foi feito… Nenhuma justiça nem às famílias tampouco à socidade”, conclui Hildete Emanuele.
Posicionamento
A reportagem pediu um posicionamento do Atakarejo em relação à ação indenizatória movida pelas entidades e questionou quais têm sido as ações adotadas para combater o racismo estrutural, qual a política em casos de furto, quais sanções foram aplicadas aos funcionários envolvidos na morte de Bruno e Yan e qual tem sido a alegação da empresa diante do processo que a acusa de racismo dentro da estrutura empresarial. No entanto, o supermercado não deu retorno até o fechamento da reportagem. A matéria será atualizada caso haja uma resposta.
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