Subir degraus do ônibus, passar por catracas e sentar de maneira confortável são situações do cotidianas que parecem comuns, mas que são encaradas como obstáculos por pessoas gordas ao acessar o transporte público.
A ativista Adriana Santos é uma mulher gorda e já passou por situações constrangedoras ao entrar no ônibus. Ela conta que, aos 14 anos, chegou a ouvir de um motorista de ônibus que o transporte tinha ficado mais “leve” depois que ela desembarcou. Depois, adulta, ouviu que não podia entrar pela porta de desembarque mesmo com o filho no colo.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
“Já fiquei presa na catraca por meu corpo não poder passar em um lugar tão pequeno. Já senti todos os tipos de constrangimento dentro de um transporte público e também já foi negado a mim o direito de entrar pela porta de desembarque. Eu estava com meu bebê no colo e foi muito difícil. É muito doloroso você ter os seus direitos e os seus acessos negados, sendo que você é um cidadão que paga os seus impostos igual a qualquer outro cidadão”, lamenta
Fundadora do movimento ‘Vai Ter Gorda‘ – coletivo criado há seis anos para o combate à gordofobia -, Adriana diz que essa negação do direito de acesso está enraizado na gordofobia, que se revela mais agressiva conforme as interseccionalidades que atingem os corpos que não atendem aos padrões impostos socialmente.
“A gente vive no Brasil uma gordofobia estrutural que é demarcada na questão de gênero, na questão de raça e na questão da classe social. Ou seja, quanto mais negra, quanto mais pobre, quanto mais mulher, mais os estereótipos relacionados ao corpo gordo vão estar associados à questão da saúde, à questão de negligência e à culpabilidade do corpo da pessoa gorda”, diz Adriana.
No início do ano, o coletivo ‘Vai Ter Gorda’ realizou um protesto em uma estação de ônibus e metrô, em Salvador, para cobrar melhorias no transporte público que garantam o acesso e inclusão de pessoas gordas nos coletivos. Dentre as reivindicações também está o pedido de desarquivamento do projeto de lei 303/2019 na Câmara Municipal de Salvador, que garante o acesso de pessoas gordas pela porta de desembarque e suspende a obrigatoriedade de passar pela catraca.
“A gente recebe vários relatos de meninas e mulheres sobre a dificuldade de subir os degraus dos ônibus, sobre as catracas que são minúsculas, os assentos dos ônibus, além do corredor que é estreito. Muitas vezes as pessoas gordas não têm o seu direito de sentar nas cadeiras por ser muito pequena e acabam ficando em pé e isso também gera um certo constrangimento. A gente pede um olhar mais humano das autoridades, do poder público e de pensar formas de uma acessibilidade mais inclusiva para todos os corpos”, solicita Adriana Santos.
Com cartazes com frases ‘Diga não à gordofobia’ e ‘Acessibilidade, Humanização e Direitos Humanos’, as ativistas também cobraram pela aprovação de projetos de lei (PL) que promovem ações de conscientização contra a gordofobia, como o PL nº 23.507/2019, que determina a criação do Dia Estadual de Combate à Gordofobia na Bahia. O texto ainda aguarda a aprovação do governador Rui Costa (PT).
“A gente precisa ouvir esse público para entender o que eles precisam, as necessidades diárias desse corpo, a falta de dignidade humana que existe em ser gordo. Não existe uma política pública que dê acessos e direitos, principalmente, sem patologizar esse corpo”, completa Andreia.
‘Privilégio corporal trata os corpos de maneira diferente’
Para além do transporte público, a falta de acessibilidade e a gordofobia também são sentidas nos espaços que deveriam servir de acolhimento, como os de saúde. Quando estava grávida, Laina Crisóstomo chegou a ouvir da médica que precisava emagrecer porque estava com o colesterol alto. Segundo a co-vereadora da mandata ‘Pretas por Salvador’, ainda é comum que profissionais da área da saúde adotem práticas que reproduzem a lógica gordofóbica.
“Existe um processo de patologização das pessoas gordas, que é um entendimento de que tudo na pessoa gorda é doença: se eu tenho problema no coração é por conta de ser gorda, se meu açúcar está alto é porque eu sou gorda, se eu estou com câncer, eu preciso emagrecer para tratar. Eu estava grávida e estava com o colesterol alto e a médica disse que eu precisava emagrecer e eu falei: ‘gente, eu vou emagrecer na gravidez?’. Quando a gente fala de acesso, não é só transporte público que a gente quer cadeira, a catraca, o cinto de segurança, mas é garantir, por exemplo, que tenha um equipamento de saúde que nos caiba”, afirma Laina.
A co-vereadora, que sofreu com transtorno alimentar e bulimia na adolescência, é responsável, junto com a mandata ‘Pretas por Salvador’, pela criação de um projeto de lei que estabelece a Semana Municipal de Combate à Gordofobia, que tem como objetivo levantar discussões e debates sobre o tema nos espaços públicos de Salvador. Aprovado em dezembro do ano passado, o projeto entra em vigor na segunda semana de setembro, ainda este ano.
“É um debate que é cotidiano e a gente precisa cada vez mais incluir as pessoas gordas para falarem das suas dores nos vários espaços. Uma pessoa gorda na educação sofre diferente, uma pessoa gorda na saúde sofre diferente, uma pessoa gorda na política sofre o debate de forma diferente. A gente precisa cada vez mais combater a gordofobia em todos os espaços, essa é uma tarefa diária”, ressalta a co-vereadora.
Para a psicóloga clínica e especialista em transtornos alimentares, Vanessa Tomasini, a gordofobia está relacionada com o que chamamos de ‘privilégio corporal’, que se caracteriza como uma maior passibilidade que alguns corpos vão ter em relação a outros. Quanto mais o corpo se distanciar do padrão imposto pela sociedade, maior serão os obstáculos e menor serão os direitos de consumo e acesso aos espaços.
“Quando a gente fala de privilégio corporal estamos dizendo que a sociedade trata os corpos de maneira diferente, se eles são totalmente aceitos ou não. O corpo magro é socialmente aceito, é elogiado e tem muito mais acesso para usar o transporte público, para comprar uma roupa, para andar de ônibus ou de avião. Esse privilégio corporal não ocorre com pessoas gordas a partir do momento em que elas têm muito mais obstáculos para conseguir coisas básicas, como sentar na cadeira de médico, conseguir passar na catraca do ônibus, conseguir andar de avião ou de ônibus de uma forma mais confortável ou até mesmo o fato de como as pessoas olham e julgam pessoas gordas”, explica a especialista.
Segundo a psicóloga, a falta de acessibilidade para pessoas gordas também geram impactos na saúde mental, desencadeando em quadros de depressão, ansiedade e fobia social.
“A partir do momento em que a catraca não consegue contemplar todos os tamanhos de corpos, eu estou dizendo que esse transporte não serve para essa pessoa. A partir do momento em que eu não consigo comprar uma roupa que me sirva de forma confortável, eu estou dizendo que essa pessoa não precisa sair na rua, que ela não precisa estar no espaço social. Do ponto de vista psicológico, é um impacto muito grande porque são pessoas que acabam diminuindo o seu acesso à vivência social, a estar nos lugares, a ser cidadão e andar livremente pela rua. São pessoas que acabam desenvolvendo quadros depressivos, ansiosos e quadros fóbicos, de ter pavor de entrar em um ônibus e ser apontada, de passar por situações vexatórias e ser alvo de piadas”, pontua.
Para além de políticas públicas, a fundadora do movimento ‘Vai Ter Gorda’, Adriana Santos, acredita que a educação pode ser um dos pilares fundamentais no combate à gordofobia em práticas diárias.
“Dificilmente, você vai ver uma mulher preta e gorda num livrinho infantil e que esse significado seja algo positivo para uma criança. A gente precisa desconstruir esses ensinamentos principalmente desde a nossa infância. É trazer uma literatura mais inclusiva, com todos os corpos, todos os gêneros, todas as raças, todas as classes sociais. É desconstruir toda essa estrutura gordofóbica machista, racista, sexista e genocida que existe na nossa sociedade”, pontua.
Para Laina Crisóstomo, o primeiro passo é despadronizar o que foi constituído como beleza padrão, enraizada na colonização. “Eu acho que tem a ver com o processo de despadronizar o que é belo e isso tem a ver com a colonização, com os padrões que são extremamente colonizados: ‘O que é bonito? É uma pessoa magra, branca, loira?’, ‘Qual é o corpo de praia?’. É qualquer corpo, os nossos corpos são lindos. É um processo que na verdade é muito mais amplo. Precisa ter política pública, precisa fazer o debate na política, mas a gente precisa mudar a sociedade como um todo”, acrescenta a co-vereadora.
Leia também: Recife se torna primeira capital do país a ter leis antigordofobia