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Qual o caminho da titulação de terras quilombolas no Brasil?

A regularização fundiária é marcada por um rito longo, burocrático e que depende muito da vontade política; Governo Bolsonaro teve a menor  quantidade de movimentações nos processos de titulação desde início da série histórica em 2005

Foto de mulher quilombola na janela de uma casa.

Foto: Imagem: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

31 de maio de 2022

A titulação e o reconhecimento de territórios quilombolas é fundamental para o processo de garantia de direitos às comunidades tradicionais. Segundo o antropólogo e quilombola pernambucano Antônio Crioulo, a comunidade não existe sem o seu território.

“O quilombola precisa do território para garantir a sua vivência, a sua produção de alimento e para sua reprodução física e espiritual. O território para a gente é nossa vida”, afirma Crioulo, também coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

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A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68, assegura o direito aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras, à propriedade definitiva de seus territórios. Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras. Entretanto, o processo pela garantia desse direito no Brasil não é simples e ainda depende muito de uma movimentação e luta das próprias comunidades.

“Quanto mais demora o processo de regularização fundiária de uma comunidade quilombola, os conflitos aumentam, como as ameaças aos nossos territórios, os assassinatos de lideranças e os conflitos nas comunidades”, explica o antropólogo Antônio.

Quais são as etapas de regularização fundiária para quilombolas?

O processo de posse definitiva das terras para as comunidades quilombolas passa por diferentes fases: autorreconhecimento, certificação e processo de titulação. A primeira etapa, de acordo com Antônio Crioulo, é a comunidade quilombola fazer um processo interno de fortalecimento de seu autoreconhecimento como remanescente de quilombo.

“Após esse processo de fortalecimento da identidade, da construção coletiva e do resgate histórico, a próxima etapa é entrar com um processo de formalização, que é solicitar à Fundação Cultural Palmares (FCP) um certificado. O papel da certificação é apenas de reconhecer que há todo um processo histórico de vivência e de construção de um povo que é ancestral naquele local”, explica o antropólogo.

De acordo com o site da Palmares, três documentos são exigidos para a emissão do certificado de autorreconhecimento emitido pelo órgão. São eles: ata de reunião específica para tratar do tema de autodeclaração ou ata de assembleia, se a associação já estiver formalizada, seguida da assinatura da maioria de seus membros; breve relato histórico da comunidade (formação, troncos familiares, manifestações culturais); e um requerimento de certificação endereçado à presidência do órgão.

Além disso, outros documentos podem ser agregados, a critério da comunidade solicitante, como fotos, registros de nascimento e óbito, títulos de propriedade ou posse, pesquisas e reportagens.

Leia mais: Sérgio Camargo não atendeu nenhuma liderança quilombola em dois anos de gestão

Titulação garante futuro

A regularização do território garante a retirada de não-quilombolas e intrusos | Crédito: Carlos Penteado/ Comissão Pró-Índio

É função também da FCP dar suporte para que a comunidade siga para a próxima etapa do processo de titulação, que é adquirir o documento definitivo de posse da terra, titulação emitida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O Incra é o órgão responsável pelo levantamento territorial e estudos antropológicos e históricos, para a demarcação da área a ser titulada.

De acordo com informações disponibilizadas no site da Palmares, para que o processo de titulação tenha início, as comunidades interessadas devem entrar em contato com a Superintendência Regional do Incra do seu estado. Assim, o órgão pode iniciar o estudo destinado à produção do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território.

O RTID aborda informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas, para identificar e delimitar o território quilombola reivindicado pela comunidade.

Após os estudos técnicos, é publicado edital no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado contendo informações gerais do processo. A partir disso, abre-se um prazo de 90 dias para apresentação de contestação ao RTID. Após fase de julgamento de contestações, recursos e conciliação de interesses públicos, é publicada a portaria de reconhecimento, encerrando a etapa de identificação dos limites do território.

“Há todo um rito até que se chegue ao final do processo, que é a desintrusão, onde há pagamento aos intrusos do território para que a área seja finalmente titulada e os quilombolas tenham direitos aos seus territórios”, explica Crioulo.

De acordo com infográfico disponibilizado pelo Incra, o decreto de desapropriação ocorre nos casos em que há imóveis privados no território delimitado, fase importante para retirada dos não-quilombolas da área. Por fim e após o extenso rito para a regularização, é concedido o título de propriedade, que é coletivo, inalienável e em nome da associação dos moradores da área.

O Incra não é o único órgão responsável pela titulação 

“Nós temos diversos estados que têm legislação própria para a titulação de território quilombola”, explica o quilombola capixaba Arilson Ventura, também coordenador nacional do Conaq.

Quilombolas dançam em seu território

Além do Incra, existem estados com legislações para titulação de quilombos | Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil

De acordo com informações disponibilizadas pelo Incra, cabe à autarquia titular os territórios quilombolas localizados em terras públicas federais ou em áreas particulares, com a presença de não-quilombolas. Entretanto, além do INCRA, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) também é responsável por expedir título ou Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) às comunidades quilombolas.

Também há estados que possuem leis específicas para regularizar os territórios quilombolas, que se localizam em terras de domínio estaduais. Conforme identificou a Comissão Pró-Índio de São Paulo, cinco Estados – Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso e Pará – têm em suas constituições a propriedade dos quilombolas sobre suas terras como direito.

Outros dez estados – Amapá, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo – reconhecem esse direito em legislação infraconstitucional. O coordenador executivo da Conaq Antônio Crioulo também lembra que Pernambuco tem uma legislação própria sobre o assunto.

De acordo com Vercilene Dias, coordenadora jurídica da Conaq, geralmente as legislações estaduais acabam agilizando mais o processo de regularização, o que depende também dos governos vigentes.

“Tanto a União como os estados têm competência na Constituição para fazer a regularização de territórios quilombolas. Se a União não faz, cabe aos estados fazerem. Mas isso depende da vontade política de cada estado e das comunidades que continuam sempre pressionando os órgãos”, destaca a coordenadora jurídica da Conaq.

Ainda segundo Vercilene, em muitos casos há a titulação parcial dos territórios, quando títulos vão sendo expedidos aos poucos e em partes específicas do território.

A assessora jurídica da Terra de Direitos Gabriele Gonçalves também explica que cada estado tem um órgão específico para a regularização fundiária. No Pará, por exemplo, há o Instituto de Terras do Pará (Iterpa).

“Cada órgão tem uma instrução normativa a ser seguida. E essa instrução normativa também possibilita a atuação em conjunto por meio de parceria com o Incra”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos.

Situação atual da regularização de territórios quilombolas

Disputas e conflitos territoriais, além da burocracia e vontade política, são alguns dos motivos apontados por especialistas para o excesso de lentidão nos processos de regularização de terras quilombolas, que se tornaram ainda mais lentos nos últimos anos.

“Os únicos títulos que foram emitidos no governo Bolsonaro foram por meio de decisões por meio de Ação Civil Pública. Não houve nenhuma titulação que o Incra fez nesse período que não foi por causa de determinação judicial”, afirma a coordenadora jurídica da Conaq Vercilene Dias.

De acordo com o estudo “Direito à terra quilombola em risco”, publicado em abril de 2021 pelo projeto Achados e Pedidos, o total de movimentações de ações de titulação no governo Bolsonaro, considerando todas as fases do processo de regularização, é o menor desde o início da série histórica, em 2005.

Segundo o relatório, os picos de titulações no período de 2004 a 2020 foram observados em 2014 e 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, com sete em cada ano, entre títulos integrais e parciais. Os menores números do período são observados nos anos de 2019 e 2020 – os primeiros do governo Jair Bolsonaro – com duas e uma titulação, respectivamente. A última referindo-se ao Quilombo Rio dos Macacos (BA), que encerrou uma disputa de mais de 40 anos com a Marinha pela posse das terras.

Gráfico sobre terras tituladas

Territórios quilombolas titulados por governo com dados de 22/02/2021 | Crédito: Reprodução/ Achados e Pedidos

“Considerando todas as fases de reconhecimento de um território quilombola, o total de movimentações em processos de titulação caiu 71% no primeiro ano do governo Bolsonaro na comparação com o ano anterior – foram 45 movimentações em 2018 contra apenas 13 em 2019. Em 2020, a queda foi de 69%, com apenas quatro movimentações. Desde o início da série histórica, em 2005, essa é a menor quantidade de movimentações nos processos de titulação”, explica o estudo.

“Nessa gestão que nós estamos no governo federal, não avançamos praticamente nada no quesito certificação e titulação de terras quilombolas. Existe o organismo no governo, mas não tem recurso nele para fazer o processo e poder trabalhar as questões”, destaca o quilombola e coordenador nacional da Conaq Arilson Ventura.

Segundo os profissionais e quilombolas entrevistados pela Alma Preta Jornalismo, a situação só tende a se agravar diante do recente ofício interno do Incra do dia 13 de maio que suspende, por falta de verbas, atividades técnicas como fiscalizações, vistorias e supervisões, além de atividades que envolvem deslocamentos e diários.

Em nota, o Incra destacou que a continuidade dos trabalhos referentes à regularização de territórios quilombolas não sofreu impacto em função do Ofício Circular nº 731, expedido pela presidência do Incra, uma vez que as suspensões tratadas no documento dizem respeito a outras atividades realizadas pela autarquia.

Entretanto, segundo a assessora jurídica Gabriele Gonçalves, há um impacto direto, porque inviabiliza a conclusão do processo de titulação. “Esse desmonte da política pública tem funcionado como um pacote de violação dos direitos humanos da comunidade e essa paralisação das atividades tem funcionado até como proteção para os crimes que acontecem em relação ao território”, pontua.

“O ofício também formalizou o que já não vinha acontecendo. A gente chegou em um momento que comunidades já tiveram que buscar antropólogos e os técnicos do Incra para fazer visita à comunidade, porque não tinha dinheiro nem para combustível”, ressalta Antônio Crioulo.

De 1995 até hoje, foram titulados totalmente 144 terras quilombolas e 54 territórios parcialmente, segundo o “Observatório Terras Quilombolas”, da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Segundo estimativa do IBGE, existem no Brasil 5.972 localidades quilombolas.

Leia mais: Pará: quilombolas denunciam devastação de igarapés da região

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