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Empreendedor negro familiar: desafios, insegurança e afeto em meio à pandemia

A dificuldade em conseguir empréstimo nos bancos, alta do desemprego e falta de auxílio de terceiros são obstáculos para o empreendedor negro investir em um negócio com seus familiares

Texto: Caroline Nunes | Edição: Nadine Nascimento | Imagem: Reprodução/Acervo Pessoal

A imagem mostra as irmãs Júlia e Anna Laura Moura sentadas na cama, cercadas por diversas caixas de papelão

10 de junho de 2021

“O empreendedor negro muitas vezes opta por começar o próprio negócio em família justamente por não conseguir vaga de emprego formal”, salienta a empreendedora Ana Cláudia Silva. Devido à pandemia de Covid-19, a taxa de desemprego aumentou e a opção mais viável foi empreender com a própria família para garantir o sustento dentro de casa.

A pesquisa “O impacto da pandemia de coronavírus nos pequenos negócios”, elaborada pelo Sebrae, juntamente com a FGV (Fundação Getúlio Vargas), mostrou que os negros são os mais prejudicados no período, seja pelo desemprego ou até mesmo por conseguir manter seu empreendimento funcionando.

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O levantamento aponta também que é maior a proporção de negros com empréstimos (69%). Entre os negros que têm dívidas, dois em cada três estão em atraso. Além disso, empeendedores negros e brancos pediram empréstimo em bancos em proporção semelhante, mas os negros tiveram maior recusa, cerca de 61%, enquanto para os brancos foi de 55%. O valor solicitado pelos negros (R$ 28 mil) é 26% mais baixo do que o solicitado pelos brancos (R$ 37 mil).

Para Ana Cláudia, que também é especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e criou a primeira papelaria étnica do Brasil, a busca de crédito para afroempreendedores demonstra a falta de confiança das instituições bancárias formais nos negócios tocados em família. Ela destaca que os bancos digitais dispõem de facilidades no quesito abertura de contas, mas os empréstimos ainda são fornecidos apenas com uma quantia em que o empreendedor negro não consegue investir para crescer. “São valores que não nos possibilitam alavancar os nossos negócios”, pontua.

A mestra em economia Regiane Wochler também explica que, no sistema bancário convencional, fatores como a defesa de crédito feita por gerentes de conta são decisivas no processo de concessão e, como isso depende de atuação subjetiva, o racismo estrutural acaba impondo barreiras que resultam nessa disparidade de concessão entre brancos e negros. “Desta forma, é de suma importância que o poder público forneça alternativas de crédito subsidiadas que viabilizem a expansão desses negócios”, avalia.

A busca por expansão do capital através da procura por sócios e/ou empréstimos e financiamentos externos também são dificultados pelo racismo estrutural, que tende a desacreditar iniciativas dos empreendedores negros, destaca a economista.

Contudo, a empreendedora Ana Cláudia salienta que investir em um negócio em família é um valor ancestral, que deve ser lembrado quando surge a ideia. “O crescimento entre os nossos também traz esse perfil de ancestralidade e afroempreendedorismo”, acredita.

Empreendedorismo feito com afeto

Para as irmãs Anna Laura Moura e Júlia Moura, proprietárias da marca de bordados Batú, o tempo da quarentena e isolamento social serviu para que elas pudessem investir em um negócio familiar. Com a produção de camisetas, ecobags e bastidores bordados, que enaltecem a cultura negra, as irmãs contam que o projeto não era um sonho, mas se tornou com o tempo. Júlia diz que o bordado foi a alternativa encontrada para passar a mensagem de empoderamento negro, familiar, feminino e LGBTQIA+ para os clientes.

Leia também: ‘Amor preto: é preciso ampliar o diálogo sobre bifobia e racismo’

“O investimento que a gente tinha era o restante do auxílio emergencial que eu recebi. No começo foi muito difícil, pois aprendemos o ofício do zero, até mesmo na organização de materiais necessários para a produção. Considero que se tivéssemos contato com educação financeira tudo seria mais simples”, diz a empreendedora Júlia.

O local de trabalho das irmãs está localizado na antiga casa dos avós, que ficou vazia após o falecimento deles. Anna explica que antes de partir para essa casa, toda a produção era feita no quarto delas. “Os pedidos começaram a surgir e a gente não dava conta de organizar tudo no espaço”, lembra.

Anna ainda complementa dizendo que para elas é simbólico trabalhar em um local familiar hoje em dia, e que isso significa um legado e um lembrete da ancestralidade e da família. “Uma memória afetiva”, completa a empreendedora. Júlia ainda explica que, por meio do retorno recebido dos clientes, elas puderam perceber que o fato de o negócio ser tocado por duas irmãs contribui para que as pessoas enxerguem a marca como algo relacionado ao aconchego familiar.

As irmãs Júlia Moura (em pé) e Anna Laura Moura trabalhando na antiga casa de seus avós | Crédito: Acervo PessoalAs irmãs Júlia Moura (em pé) e Anna Laura Moura trabalhando na antiga casa de seus avós | Crédito: Acervo Pessoal

As empreendedoras contam que o trabalho é dividido: Júlia atua na direção de arte da marca, por já estar familiarizada com atividades artísticas e criativas, e também é responsável pela parte financeira. Já Anna Laura é jornalista, tem o olhar mais crítico, portanto, atua na divulgação, posts para redes sociais e textos pertinentes à marca. Novas coleções são criadas em conjunto entre as irmãs.

Segundo diz Júlia, o coletivismo é importante para a Batú, desde a união para tocar o negócio até mesmo na hora de realizar os ensaios fotográficos das coleções. Amigos, namorados e família contribuíram e apoiaram o projeto desde o início.

Dificuldades do empreendedor negro

“Empreender na periferia, com um produto diferenciado não é fácil. Sendo negra é mais difícil ainda. As pessoas não entendiam a ideia principal do meu produto. Eu queria que não fosse só um artigo de higiene. Queria que fosse útil, bonito e cheiroso. Que fosse um presente para todas as ocasiões. Tive que provar a qualidade oferecendo muitas vezes de forma gratuita para que ele fosse testado, e deu certo”, conta a empreendedora Rose Menezes, proprietária de uma marca de sabonetes artesanais.

O negócio surgiu em meados de 2018, quando a filha de Rose adoeceu e não podia mais trabalhar para complementar a renda familiar. Atualmente, a equipe de trabalho conta com Rose, os dois filhos e a nora.

Moradores da periferia de Taboão da Serra (SP), Rose destaca que todas as funções da Menezes Sabonetes Artesanais são divididas e que impor esses limites é necessário. Ela é responsável pela produção das peças, compra de material, embalagem e vendas. Aline Menezes, sua filha, é a pintora oficial dos produtos e responsável pela organização do ambiente de trabalho. A nora de Rose, Eli Leite, cuida das redes sociais e da divulgação e o filho Jonas faz as entregas e cuida da parte administrativa.

Sabonetes confeccionados pela artesã Rose Menezes | Crédito: Acervo PessoalSabonetes confeccionados pela artesã Rose Menezes | Crédito: Acervo Pessoal

A especialista Ana Cláudia acredita que uma das dificuldades encontradas pelo empreendedor negro familiar é justamente a informalidade que o ofício acarreta. Ela explica que como não há delimitações e regras, o negócio familiar se torna pessoal, o que pode ocasionar falência.

“Por mais que se saiba que o outro ali é um familiar, é necessário impor os limites e regras, acordos firmados entre as partes, que seja por um contrato mínimo que imponha tanto os direitos quanto os deveres. A ideia é não prejudicar nem a empresa e nem a família”, avalia.

Outro detalhe que Ana destaca é a romantização da situação econômica como oportunidade de empreender. Ela explica que o empreendedor negro têm sido romantizado desde a Reforma Trabalhista, sancionada em 13 de julho de 2017, pelo então Presidente Michel Temer (MDB), sob a Lei Nº 13.467, que coloca o trabalhador como independente. Para a especialista, isso demonstra precarização do trabalho e aumenta a busca por alternativas de subsistência do afroempreendedor, por meio de incentivos que, às vezes, fogem da realidade.

“O empreendedor negro pensa ‘o que vou fazer para transformar R$ 10 em R$ 100?’ É um padrão de cases de sucesso que é muito contagioso. Empreender é muito particular e não há fórmula mágica. São várias análises a fazer do modelo de negócios sem correr risco e se inspirar de acordo com a própria realidade”, afirma Ana Cláudia.

A economista Regiane Wochler avalia que, para a população periférica, empreender significa sobrevivência e muitas vezes a única possibilidade de colocar comida no prato com seu trabalho. “Romantizar pobreza e desespero é cruel e injusto com famílias em luta pela sobrevivência diante de uma crise sanitária sem precedentes, que evidencia o quanto a ausência de políticas públicas adequadas mata milhares de pessoas por fome, doença e violência”, diz.

Planejamento e futuro

A especialista em empreendedorismo e também psicóloga Priscilla de Sá ressalta que por mais que o empreendedorismo negro comece, em um primeiro momento, como ferramenta de existência, com o tempo, de acordo com ela, esse objetivo tem que se reciclar. Conforme o negócio cresce, o empreendedor negro deve reavaliar as razões do negócio existir.

“A curto prazo é necessário garantir a existência da empresa, ou seja, fluxo de caixa: as contas têm que fechar. A médio prazo é necessário entender por quanto tempo a família, que trabalha junto, vai continuar contribuindo com o negócio, ou seja, estruturar cargos e salários”, pondera.

Já a longo prazo, Priscilla sugere ao empreendedor negro prepare o coração para a entrada de pessoas que não são da família no empreendimento. “É importante estar apto e aberto para profissionalizar essa gestão, portanto, é necessário desapegar”, complementa.

A mestra em economia Regiane Wochler destaca ainda que a organização da empresa familiar também deve ser uma prioridade para o empreendedor negro. Estabelecer preferências em detrimento de outros gastos, negociação de dívidas ativas e redução de custos, de acordo com ela, fazem parte do planejamento.

“É necessário pensar em estratégias para melhorar seus ganhos, ampliar mercados de atuação e usar a internet e redes sociais como plataforma de venda. Também é válido conhecer a concorrência, promover inovações que destaquem seus produtos, corrigir posicionamentos de imagem, reduzir custos e buscar parcerias”, avalia a economista.

As detentoras da marca Batú acreditam que a educação financeira e o planejamento podem, sim, contribuir para o futuro do negócio. Júlia Moura afirma que a ideia inicial, que já está em fase de elaboração, é levar os bordados para outros produtos além de camisetas, ecobags e bastidores.

“Queremos também chegar a outras plataformas além do Instagram e do site, que é algo novo. Além disso, nosso sonho é obter uma renda fixa com base na Batú e ser uma referência no nicho com a mensagem de empoderamento, que é a nossa essência”, finaliza.

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