A Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) iniciou em maio, mês de comemoração do Dia das Mães, uma campanha voltada à proteção da maternidade para mulheres refugiadas. Com a percepção de que muitas mães dão à luz em situações de extrema vulnerabilidade, como guerras e conflitos, e enfrentam dificuldades na criação de seus filhos em terras estrangeiras, a agência busca auxiliar dignamente as mulheres e crianças que estão longe de suas respectivas pátrias com a campanha “Mãe deve ser refúgio, não refugiada”.
A iniciativa visa captar recursos para que mães refugiadas continuem apoiadas em suas jornadas, desde o momento em que chegam a um país, com ajuda humanitária imediata, até integração à comunidade local, com direitos assegurados, oportunidade de trabalho e educação para as crianças.
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Para a chefe do escritório da Acnur em São Paulo, Maria Beatriz Nogueira, doutora em Relações Internacionais, o primeiro aspecto da campanha é dar visibilidade às mães refugiadas. “Hoje no mundo mais de 40 milhões de mulheres são obrigadas a deixar suas casas, empregos, famílias e estabilidade para buscar proteção em outros países por diversos fatores”, destaca, em entrevista à Alma Preta Jornalismo.
A chefe de escritório da agência salienta que muitas vezes essas mães não recebem nenhum tipo de respaldo quanto à saúde, educação e estão sujeitas à violências, tanto nos trajetos de fuga quanto em exploração. “Precisamos apoiá-las para que elas possam dar aos seus filhos o colo e o refúgio que lhes foi negado em seu país de origem, seja por guerras ou violação grave dos Direitos Humanos”, completa.
Trajetória de uma mãe solo refugiada
Mulher, negra e mãe solo de cinco filhos e avó, a refugiada Prudence Kalambay, da República Democrática do Congo, é uma das mães atendidas pela Acnur. Resultado da violência e pressão política em sua terra natal, Prudence abandonou seu país em busca de paz e segurança para si e para sua família.
A refugiada foi criada até os 12 anos de idade pela tia paterna. Grávida aos 21 anos, Prudence foi expulsa de casa pela gravidez significar desonra para a família. Três anos depois foi eleita Miss da República Democrática do Congo, em 2004, enquanto trabalhava no escritório de um general opositor ao regime do ditador Kabila, ao passo que administrava a carreira de modelo. Durante o período, a mãe refugiada fundou um grupo de apoio à mães solo na cidade de Kinshasa, no Congo.
“Depois de ser eleita Miss, eu tive um projeto para ajudar jovens mulheres que, assim como eu, enfrentam preconceito, humilhação e dificuldades por terem se tornado mães, mas a vida em Kinshasa nem sempre foi tão boa O fato de eu ser mãe solo, Miss e trabalhar com política certamente não ajudava”, relata.
Prudence relembra que um dia foram atrás dela por conta de sua associação com o general Munene, pertencente à oposição de Kabila. A partir disso, seu pai acreditou que ela não estava mais segura no Congo e a aconselhou a deixar o país. “Eu acredito que enquanto temos vida e a esperança de viver, temos a oportunidade de fazer algo. Depois de tudo o que eu vi e passei, depois de ser perseguida, eu só quero paz”, relembra.
A refugiada relata que a jornada não foi fácil e custou uma travessia de rio e muitos quilômetros percorridos para chegar até a Angola. O Brasil não estava nos planos de Prudence, que pretendia ir para a Europa. No entanto, ao se lembrar das novelas brasileiras exibidas no Congo, a mãe solo decidiu ir para o Rio de Janeiro, em 2006.
“Sei que as coisas são mais difíceis por eu ser mulher, negra, africana, refugiada”
Prudence explica que chegou ao Rio de Janeiro grávida, na companhia de sua filha mais velha e de seu mais novo companheiro, que ela conheceu durante a fuga do Congo. Ela destaca que o apoio de campanhas como a da Acnur para mães refugiadas foi essencial para que ela pudesse se estabelecer no novo país.
A mãe refugiada, que até então tinha dificuldade com a Língua Portuguesa, cita o exemplo de personagens das novelas que deixam o Rio de Janeiro em busca de oportunidades em São Paulo. Sete anos depois de sua chegada ao Brasil, Prudence migrou para a terra da garoa.
“Com a ajuda da Missão Paz em São Paulo, consegui o meu primeiro emprego. Minha carteira foi assinada e eu pude comprovar renda. Finalmente consegui uma casa para a minha família. Achei que a partir de então tudo ficaria bem, mas comecei a enfrentar problemas no meu relacionamento. Foi graças ao projeto Empoderando Refugiadas, que aprendi sobre empoderamento feminino”, relata a mãe solo.
Depois de se estabelecer em São Paulo e se livrar do relacionamento abusivo, a mãe refugiada começou a participar de eventos como palestrante, abordando o tema dos direitos humanos. Como foi impossível trazer seus diplomas da República Federativa do Congo, Prudence decidiu ingressar à faculdade novamente.
“Sei que as coisas são mais difíceis por eu ser mulher, negra, africana, refugiada e não ter diploma acadêmico. Uma qualificação formal pode abrir muitas portas para mim e para outras pessoas também”, destaca Prudence.
Ela relata a dificuldade em quitar as dívidas, como aluguel, mas afirma que sempre orienta aos filhos que a situação irá melhorar em breve. Contudo, Prudence lamenta o fato de se sentir julgada pela sociedade por ter se separado dos pais de seus filhos, e diz que para as mães solo é muito mais difícil ter um relacionamento duradouro. “Agora até para namorar é difícil porque você é mãe, as pessoas podem te achar linda, mas ninguém te quer de verdade”, desabafa.
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Perspectiva de futuro
Para Prudence, os sonhos para o futuro consistem em criar um projeto para ajudar mães e crianças refugiadas em situação de vulnerabilidade, independentemente da nacionalidade. “Só quem viveu na pele situações de guerra, perseguição e conflitos sabe como é difícil. Um monte de gente está precisando da nossa ajuda agora. E nós que já percorremos esse caminho sabemos como é importante”, salienta.
Já para a Acnur, o objetivo de médio-longo prazo é sensibilizar os brasileiros sobre a causa do refúgio e contribuir para a redução da xenofobia e outros tipos de preconceito em relação a pessoas refugiadas no Brasil e no mundo.
A importância do acolhimento às mães
No primeiro semestre de 2020, o Centro de Referência para Refugiados da Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP) atendeu 3.882 pessoas de 73 nacionalidades. Entre as nacionalidades mais atendidas, 52% são pessoas da Venezuela, 7% da República Democrática do Congo, 6% da Síria e 6% da Colômbia. As mulheres refugiadas representam cerca de 48% dos atendimentos.
De acordo com informações da Acnur, 40% da população deslocada de sua terra natal é composta por crianças, muitas desacompanhadas. As crises econômicas têm impacto particularmente adverso nas mulheres e mães, que são as principais cuidadoras e chefes de família.
A chefe do escritório da Acnur em SP pondera que é imprescindível criar um ambiente protetivo para essas mães, que já passaram por diversas dificuldades no trajeto, como a perda de seus filhos. “Nosso trabalho também está em criar oportunidades de trabalho, com o auxílio da iniciativa pública e privada. Queremos dar acesso efetivo aos direitos que estão garantidos na lei”, reforça Maria Beatriz.
Apesar das restrições de movimento para evitar contágio da Covid-19, os riscos de violência doméstica e violência baseada em gênero de parceiros íntimos aumentou, de acordo com a agência. Em média, uma a cada cinco mulheres refugiadas é vítima de estupro.
Outro dado alarmante que a Acnur busca salientar é que um dos maiores fatores de mortalidade materna e infantil é causado pela falta de acesso a cuidados de saúde antes, durante e após a gravidez de mães que estão em deslocamento em busca de segurança.
“Sobreviventes de violência, seja de gênero, sexualidade ou até mesmo idade precisam de amparo imediato e a ajuda provém de uma inserção socioeconômica. Por isso é tão necessário poder contar com as contribuições destinadas a essas mulheres”, finaliza a doutora.