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‘Me vi desamparada e humilhada’, diz mãe negra e soropositiva vítima de preconceito em maternidade

Jessica Carolina de Oliveira relata que a medicação que impediria sua bebê de ser infectada pelo vírus só foi ministrada horas depois de sua chegada ao hospital; a mãe foi submetida à cesárea mesmo com condições para ter um parto natural

Texto: Caroline Nunes | Edição: Nadine Nascimento | Imagem: Acervo Pessoal

Ensaio de gestante de Jéssica

29 de julho de 2021

Uma mãe negra soropositiva acusa o Hospital Maternidade Estadual Leonor Mendes de Barros, da Zona Leste de São Paulo, de negligência. Jessica Carolina de Oliveira, 29, convive com o diagnóstico de HIV há 12 anos e está indetectável há seis. Segundo ela, os profissionais da maternidade não respeitaram seus pedidos de receber a medicação que impediria sua bebê de ser infectada e foi submetida à uma cesárea mesmo tendo condições de um parto natural.

Em virtude da denúncia, a deputada estadual Erica Malunguinho e a co-vereadora Carolina Iara, ambas dos PSOL, disponibilizaram apoio jurídico à mãe.

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Tudo começou no dia 28 de março, às 9h,  quando Jéssica chegou à maternidade com a bolsa rompida. A mãe conta que escolheu o hospital Leonor Mendes de Barros justamente pelos relatos de bom atendimento às mulheres HIV+ e seus bebês.

“Logo na triagem eu falei que eu sou soropositiva e que a minha medicação estava com meu companheiro. O antirretroviral AZT é essencial para que, mesmo em trabalho de parto, a bebê não seja exposta ao HIV. Eu precisava tomar esse remédio na veia desde que a bolsa rompeu, por um período de quatro horas, pelo menos. E na triagem mesmo foi ignorada a minha informação, tanto o que eu disse sobre o AZT quanto ao outro medicamento que interrompe a lactação”, relata Jéssica.

A mãe conta que aguardou por quatro horas por atendimento na recepção após a triagem, enquanto perdia líquido. O exame de toque, comumente feito em mulheres prestes a dar à luz, também não foi realizado até então, segundo ela.

Por volta das 13h, Jéssica foi atendida apenas com o exame de toque quando lhe disseram que teria um parto cesárea, fato que ela contestou, pois havia se preparado para ter a filha de forma natural. De acordo com ela, orientada a aguardar, o exame para verificar os batimentos cardíacos do bebê também não foi realizado. 

“Naquele momento não tive muitas opções, consenti pois tive medo, mas sabia que não era o certo e que meu pedido estava sendo ignorado”, desabafa.

Fragilizada com o medo da filha ser exposta ao HIV, a mãe reafirmou o fato de que precisava das medicações indicadas, mas a informação mais uma vez não surtiu efeito na equipe médica. Segundo Jéssica, chamaram uma enfermeira para realizar o teste rápido da doença antes da ida ao centro obstétrico. “Mesmo eu informando sobre minha sorologia, a enfermeira fez a marcação errada no formulário, marcando como ‘não reagente’ para HIV’. Quando vi o papel, informei que estava errado”, completa.

No centro cirúrgico

“Me colocaram sentada numa cadeira de plástico no corredor e ninguém veio me dizer o que seria feito, qual seria o próximo passo, ou verificar se estava tudo bem com a bebê, pois minha bolsa tinha rompido. Sequer perguntaram meu nome”, conta.

Depois de mais de 40 minutos nesta situação, Jéssica foi levada para uma sala de pré-parto, enquanto seu companheiro, André, que é sorodiscordante, estava na recepção sem qualquer tipo de informação sobre seu estado de saúde ou da bebê. Segundo ela, o marido ficou até às 16h sem saber o que estava acontecendo.

Além disso, Jéssica percebeu que as enfermeiras, que raramente passavam em seu quarto, não sabiam como proceder com uma mãe HIV+ e não faziam ideia da função das medicações que previnem a contaminação do bebê. Ela relembra que teve que ensinar às profissionais sobre o assunto, fato que a deixou bastante assustada.

“Viver com HIV e aceitar nossa condição não é fácil, a gente pensa com cuidado e medo sobre cada detalhe de um momento que deveria ser sublime. Ali eu me vi completamente desamparada, humilhada por ignorarem em absoluto tudo o que estava pedindo”, conta.

Após muito tempo, seu companheiro foi liberado para subir ao andar que ela estava internada. Ela conta ainda que os médicos entravam no quarto, olhavam sua caderneta de gestante – que consta informações sobre sua saúde – mas não se aproximavam dela. “Apenas olhares desconfiados, silenciosos. Depois de tudo isso, finalmente trouxeram o AZT e fizeram exame de toque”, relata Jéssica.

Parto

Mesmo antes de aguardar de três a quatro horas para garantir o sucesso da medicação contra a contaminação de sua filha, Jéssica entrou em trabalho de parto. Ela relata que sentia muitas dores e, mesmo com seis centímetros de dilatação, não recebeu nenhum tipo de analgesia. “Comecei a chorar, pedia ajuda. Eu estava completamente apavorada por tamanho desamparo logo neste momento”, lamenta.

Quando sua dilatação atingiu os 10 cm, Jéssica foi encaminhada para a cesárea. Ela diz que os anestesistas foram rudes com ela o tempo todo. Seu companheiro foi impedido de entrar na sala até então, sendo convidado apenas no último minuto, segundo ela.

“Minha bebê já estava nascendo pelo canal vaginal, parto normal, mas ainda assim prosseguiram com a cesárea. As médicas não estavam conseguindo tirá-la pelo corte, então o médico chefe do plantão, de forma muito irritada, entrou na sala, mandou paramentá-lo e foi dando bronca em toda a equipe”, relembra. “Ele se debruçou no meu peito para tirar a bebê e, neste momento falou palavrão, brigou com as médicas, completamente constrangedor”, completa.

Quase 12h após a bolsa ter rompido, às 19h23, sua filha Agnes nasceu. Jéssica conta que não deixaram que ela visse a própria filha, encaminhada à UTI logo após o parto.

“Ficamos 20 minutos naquela sala, ignorados pelas médicas que me costuravam, e eu perguntando constantemente sobre ela [Agnes]. Fui informada que esse era o procedimento, mas eu sei que não era, não é! A decisão da equipe foi por puro preconceito, ignorância e despreparo”, diz a mãe indignada.

Jéssica ainda conta a situação a fez reviver um sentimento de não aceitação do diagnóstico que já havia superado. “Depois de anos sem conseguir aceitar meu diagnóstico, justamente por situações vexatórias, de exposição e preconceito, consegui lidar bem com tudo isso, entender que o HIV não me define, que é apenas um vírus e não um rótulo. Constantemente durante a internação eu explicava para enfermeiras e residentes o que deveria ser óbvio para eles”, conta.

Providências

Pela Constituição Brasileira, as pessoas que convivem com HIV têm obrigações e direitos garantidos; entre eles, estão a dignidade humana e o acesso à saúde pública. Em 2014, foi publicada a Lei nº 12.984, de 2 de junho de 2014, que define o crime de discriminação aos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Jéssica denunciou os profissionais da maternidade à ouvidoria do Hospital Leonor Mendes de Barros um mês após o ocorrido e pretende seguir em frente com o processo jurídico por toda a situação que passou durante os dias em que ficou internada. 

“Depois de anos estando bem em relação a isso, odiei ter HIV, especialmente por uma criança que não merecia nada disso ter recebido respingos desse preconceito. Chorei de cansaço, de tristeza, de ódio, de dor, meu corpo estava cortado, nunca quis uma cesárea, queria ter minha recuperação rápida para viver cada segundo da melhor forma possível com minha pequena”, desabafa.

Ela conta ainda que sua filha está muito assustada e estressada por tudo que passou na maternidade. Hoje em dia, Jéssica e André mantêm uma rotina restrita para não piorar o estado da bebê.

“Em relação à saúde, estamos aguardando para fazer um ultrassom da cabeça, pedido por prevenção pela pediatra dela devido a todo trauma, e seguimos cuidando e tentando reparar em todos nós, eu, minha bebê, esposo e família extensa, todo dano causado por este momento”, acrescenta.

A mãe Jéssica, junto de seu companheiro André e sua bebê Agnes | Créditos: Acervo PessoalA mãe Jéssica, junto de seu companheiro André e sua bebê Agnes | Créditos: Acervo Pessoal

Os exames de Agnes deram como não reagente para o vírus do HIV. Porém, segundo a mãe da menina, só daqui a um ano será possível saber se ela não foi infectada. “O pior é pensar que ela pode ter contraído por negligência médica”, finaliza.

A Deputada Erica Malunguinho foi acionada pela Co-Vereadora Carolina Iara sobre o caso, diante da competência estadual, e irá enviar um ofício à Secretaria Estadual de Saúde e ao Hospital Maternidade Estadual Leonor Mendes de Barros para apuração do caso.

“O movimento de mulheres negras vem há décadas denunciando como as mulheres negras são as principais vítimas de violência obstétrica e não podemos esquecer que o Estado Brasileiro já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Allyne Pimentel vs Brasil, que também envolveu racismo e violência obstétrica”, afirma a nota oficial da parlamentar.

Posicionamento

A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com o Hospital Maternidade Estadual Leonor Mendes de Barros para repercutir as informações, bem como com a Secretaria Estadual de Saúde (SES) do Estado de São Paulo.

Por meio de nota, a SES afirma que “não procedem as informações pontuadas pela reportagem” e que o Hospital Leonor Mendes de Barros “é referência para gestações de alto risco, incluindo gestantes e parturientes portadoras do vírus HIV e segue todos os protocolos de humanização e de atendimento pré-parto, parto e pós-parto estabelecidos pelo SUS”.

Segundo a Secretaria, o hospital acolheu Jéssica no dia 28 de março e seguiu todos os protocolos, com registro de informação sorológica e novos testes de sífilis e HIV e administração dos medicamentos indicados pelo Ministério da Saúde no prazo previsto. Após o parto, a recém-nascida também teria sido submetida ao exame de hemograma completo e exame para carga viral para HIV, além de receber os medicamentos adequados para seu caso.

“Todo o processo de parto foi rigorosamente acompanhado pela equipe médica, inclusive com a opção por cesárea para evitar complicações, considerando também que o procedimento não configura maior risco para filhos de mães com HIV. O acompanhante da paciente também estava presente no momento do parto, e a família foi orientada sobre as restrições de circulação na unidade como medida preventiva contra COVID-19”, finaliza a nota.

Leia também: ‘Com atendimento humanizado, parteiras e doulas negras combatem racismo obstétrico’

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