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Movimento negro do Brasil tem histórico de solidariedade com a Palestina

Palestinos e negros brasileiros participaram juntos de lutas na esfera política; Movimento Negro Unificado (MNU) foi aliado da Organização pela Libertação da Palestina (OLP)
Imagem mostra Milton Barbosa, homem negro e idoso. Ele usa óculos e veste uma camisa amarela, do MNU e segura um lenço árabe.

Foto: Pedro Borges/Alma Preta

11 de outubro de 2023

Por: Pedro Borges e Solon Neto

No dia 7 de Outubro, o Hamas, grupo dominante na Faixa da Gaza, organizou uma ação surpresa contra Israel, com o disparo de foguetes, ataques terrestres e o sequestro de militares e civis. Imagens de uma festa na divisa com a Faixa de Gaza mostram a chegada dos militares, que executaram cerca de 260 pessoas no local.

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Como resposta, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, declarou guerra contra o Hamas e afirmou que os inimigos pagarão um “preço alto”. Até o momento, dados oficiais dos governos palestinos e israelenses apontam 2.255 mortes, com 1.055 palestinos e 1.200 israelenses.

As disputas no Oriente Médio têm mobilizado os setores progressistas no Brasil. Para a quarta-feira (11), atos em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília denunciam o “Apartheid em Israel”, como é descrito pelos manifestantes. A expectativa é de que os protestos tenham a presença de militantes do movimento negro.

As relações entre negros brasileiros e palestinos são antigas e remontam desde o período da ditadura civil-militar (1964-1985). No ano de 1980, a antiga Organização pela Libertação da Palestina (OLP) articulou na cidade de São Paulo a primeira manifestação pública da instituição, no Teatro Ruth Escobar, espaço acostumado a receber encontros de opositores da ditadura militar no Brasil.

A expectativa era a de ouvir a fala de Farid Sawan, representante da organização no Brasil. O encontro, contudo, não movimentou apenas os palestinos. Grupos pró-Israel participaram do encontro com o intuito de minar a discussão. A proposta era a de impedir o encontro, seja a partir de estratégias de tumultuar a palestra com gritarias ou por tentativa de agressões físicas.

Apesar disso, naquela noite os palestinos contaram com o apoio de militantes do Movimento Negro Unificado (MNU), organização fundada em 1978. Ativistas como Milton Barbosa e Rafael Pinto, assim como Abdias do Nascimento, Antonio Leite, Eduardo de Oliveira e Oliveira e outros militantes de organizações negras, mobilizaram-se para participar da reunião e, junto dos palestinos, garantir a fala da OLP. Apesar das brigas e tensões, o resultado foi assegurado, e uma união política foi estabelecida.

“Foi uma atividade importante e não foi mole, porque os grupos sionistas vieram para cima e atacaram. Os palestinos queriam garantir a fala da OLP no Brasil, foi um negócio difícil e complicado, difícil de realizar”, conta Milton Barbosa, atual presidente de honra do MNU, em entrevista à Alma Preta.

A solidariedade internacional, tanto da parte do MNU como da responsável pelo teatro, a atriz Ruth Escobar, são destacadas por Rafael Pinto, integrante da Coordenação de Entidades Negras (CONEN) e um dos fundadores do MNU. “A garantia do escritório da OLP foi estratégica para a luta contra todas formas de discriminação, para fazer esse debate no mundo e garantir o direito democrático de livre manifestação e expressão de um povo que procurou estabelecer diálogo”, pontua.

De acordo com o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, na época havia uma consciência internacional presente nos movimentos políticos, o que favoreceu as aproximações. “O movimento negro foi fundamental porque naquele momento nós nos entendíamos aliados na grande luta contra o racismo no mundo, o Apartheid e pela libertação nacional dos povos”, exemplifica.

As estratégias de pressão utilizadas pela África do Sul contra o Apartheid foram replicadas na Palestina, como os boicotes econômicos e a construção de redes internacionais.

Imagem mostra veículo de Israel em território palestino.
Veículo de Israel em território palestino. Foto: Thais Siqueira

Fortalecimento das relações

As relações entre os grupos se fortaleceram a ponto de Milton Barbosa participar de uma viagem ao sul do Líbano, em 1982, para um encontro com o então líder da Palestina, Yasser Arafat. Barbosa esteve com uma comitiva formada por políticos da época e militantes de movimentos sociais, entre eles Aldo Rebelo, então representante da União Nacional dos Estudantes (UNE), e Orlando Fernandes, representante do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). O objetivo do encontro era entender a situação vivida pelos dois países, em especial a situação dos palestinos.

Diante de Arafat, Barbosa demonstrou a solidariedade do movimento negro brasileiro com a causa palestina e ouviu de maneira atenta a liderança. “O Yasser Arafat era a figura principal. Durante anos ele foi a principal liderança da luta do povo palestino. Ele falou sobre o racismo no mundo, a questão da África do Sul, e a questão da região deles, os interesses em jogo na região, o capitalismo sempre por trás, os interesses de grandes grupos econômicos, e ele trouxe o significado da luta deles”, lembra o presidente de honra do MNU.

Os palestinos também participaram de campanhas de ativistas negros. Milton Barbosa e Reginaldo Bispo foram em 1986 candidatos à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), respectivamente. Em ambas as campanhas, tiveram apoio de militantes palestinos para a ampliação da votação.

O Movimento Negro Unificado mantém relações com organizações palestinas até os dias atuais. Ualid Rabah esteve presente no 19º Congresso do MNU em 2022, em Recife, na abertura do encontro, como forma de reforçar a aliança histórica. A abertura também homenageou Milton Barbosa, que havia completado 74 anos de idade, e é uma referência para os grupos palestinos.

Integrantes do MNU em visita a Palestina posam para foto.
Representantes do MNU em visita a Palestina. Foto: Thais Siqueira

Conexão com movimentos de favelas brasileiros

Em 2016, a campanha Stop the Wall — organização de direitos humanos de mais de 15 anos, formada na Palestina para pressionar Israel — entrou em contato com movimentos de favelas do Rio de Janeiro e de mães que lutam contra a violência policial no Brasil. Eles estavam juntos do BDS (sigla para Movimento de Boicote a Israel, em tradução livre), movimento espelhado, em termos econômicos e políticos, no grupo de boicote da África do Sul.

“Essas conexões abriram a possibilidade de enxergarmos a luta ao nível internacional, de explicar para a gente que o Caveirão vinha de empresas de Israel, que o boicote econômico era uma possibilidade. O BDS e o Stop The Wall nos ajudaram a internacionalizar a luta contra o racismo e a conectar isso com a Palestina”, conta a pesquisadora Gizele Martins, pesquisadora e comunicadora da Favela da Maré e apoiadora do Stop The Wall e do BDS.

Em 2017, a partir de um convite das organizações a grupos do movimento de favelas, Gizelle visitou a Palestina. Segundo a ativista, apesar de morar em uma região violenta como o Complexo da Maré, ela se chocou com o que viu no país árabe. “Eu já vi tanque de guerra, mas eu nunca vi nada parecido com a Palestina, que funciona como uma prisão a céu aberto”, descreve.

A partir dessas trocas, movimentos das favelas do Rio de Janeiro e de mães cujos filhos foram vitimados organizaram o “Julho Negro contra o Racismo, Militarização e o Apartheid no Mundo”. Em 2018, mais de 20 países foram convidados para o Rio, na Maré, para reafirmar a parceria entre os movimentos, o que deu fôlego para que campanhas fossem feitas contra as violações de direitos humanos em ambos os territórios.

A campanha Stop the Wall organizou uma 3ª Delegação para a Palestina com militantes convidados de organizações de todo o planeta e também do Brasil. Em julho de 2023, a ativista Aline Costa, da Coalizão Negra por Direitos no Distrito Federal, esteve na Faixa de Gaza e presenciou as situações de violência.

“Nós visitamos uma associação de produtores em uma cidade e saímos para visitar poços de água que foram cercados, limitando o acesso da população local. Quando retornamos, o Exército havia fechado a entrada da cidade. Acompanhamos um diálogo tenso entre eles e dois moradores que haviam recebido ordem de despejo da sua casa que ficava na entrada da cidade. Situações como essas são comuns e não existe processo legal que lhes permita que seu direito de moradia seja assegurado”, afirma.

Acusação de Apartheid

Em 2023, o MNU e a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direitos, duas organizações que compõem a Coalizão Negra por Direitos, participaram de articulações junto à delegação brasileira na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo é pressionar o governo brasileiro a tomar posições em prol da Palestina.

“No último período, organizações da África do Sul, juntamente com o Movimento BDS, têm se mobilizado para que a ONU reative o Comitê Especial sobre Apartheid a fim de abordar o Apartheid de Israel sobre o povo palestino. Inclusive, em 2020, vários líderes brasileiros assinaram a carta de apoio, dentre eles Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Celso Amorim”, salienta Aline.

A recomendação de restabelecer o comitê também foi feita, em agosto de 2022, pelo relator especial da ONU para Direitos Humanos na Palestina, Michal Lynk. Em relatório, Lynk também apontou que as ações de Israel na região podem ser chamadas de Apartheid. O texto foi apresentado à 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.

“O relator especial recomenda que a ONU restabeleça o Comitê Especial contra o Apartheid para investigar toda e qualquer prática de discriminação sistemática e opressão supostamente equivalente ao Apartheid em qualquer lugar no mundo, incluindo no território da Palestina ocupada”, diz Lynk no documento.

Organizações internacionais de direitos humanos como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional estão entre os grupos que classificam como Apartheid as ações do Estado de Israel em relação à Palestina. Em fevereiro de 2022, a Anistia Internacional publicou o relatório “O Apartheid de Israel contra Palestinos: Sistema Cruel de Dominação e Crime contra a Humanidade”.

À época, a secretária-geral da organização, Agnès Callamard, apontou que o documento mostra que os palestinos são “tratados como um grupo racial inferior” por Israel e são “privados sistematicamente de seus direitos”.

Essa é também a visão de Aline Costa, militante do MNU. “A política israelense é pautada em um projeto colonial de controle e exploração do povo palestino, baseado em suas origens étnicas. A sua origem e a sua cultura definem os direitos que você vai poder acessar e a vida que você vai poder viver. Ou seja, uma política baseada no pertencimento étnico-racial — judeus ou árabes — em que há a subjugação de um povo a outro, não pode ser caracterizada por outra coisa senão racismo”.

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