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Saída dos médicos cubanos deixa saúde da população negra mais vulnerável

13 de dezembro de 2018

Fim do programa Mais Médicos, com a chegada de Jair Bolsonaro ao cargo de presidente, deixa a comunidade negra mais vulnerável no campo da saúde, segundo especialistas

Texto / Thalyta Martins
Imagem / A médica Vallentina Cuello Vargas usa um cadáver para explicar o sistema vascular a alunos de anatomia do primeiro ano, na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM). Allison Shelley

No dia 14 de novembro, o governo de Cuba informou o fim do programa social “Mais Médicos” no Brasil. As declarações “ameaçadoras e depreciativas” do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), que anunciou mudanças consideradas “inaceitáveis” ao projeto governamental, foram apontadas como os motivos para o desfecho da parceria.

A saída deixa 28 milhões de pessoas desassistidas de atendimento médico, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Os profissionais cubanos ocupavam 8.332 postos, das 18.240 vagas do Programa Mais Médicos no Brasil, o que deixa 285 municípios no país sem médico algum, de acordo com o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. No dia 20 de novembro, o governo abriu novas inscrições para médicos que desejem atuar no programa.

Maria José Menezes, bióloga formada pela USP e com mestrado na área da saúde pela UFBA, afirma que o SUS é utilizado por uma grande parcela da população que sente os efeitos da falta de infraestrutura na área. Segundo ela, a saída dos médicos cubanos intensifica este cenário. 

“Já sentimos o reflexo com o aumento da mortalidade infantil, redução drástica da cobertura vacinal, cortes na assistência a pacientes com doenças graves como câncer, risco de ressurgimento da poliomielite, erradicada do Brasil no século passado. Em síntese, tivemos um retrocesso na saúde pública de três décadas. A saída dos médicos cubanos agravou ainda mais a nossa situação. Foi criminoso o que este futuro presidente fez”. 

O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu em 1988 e atende hoje uma maioria negra: quase 80% dos usuários. Para Maria José Menezes, é esse grupo que mais vai sentir a saída dos médicos cubanos.

“Os médicos cubanos atuavam nas regiões periféricas, junto a uma população com alta vulnerabilidade social. Sem assistência médica, certamente esta situação será ainda mais grave”, explicou Maria José.

Cleber da Costa Firmino é formado em medicina pela ELAM (Escola Latino Americana de Medicina) e ressalta o impacto positivo da presença dos médicos negros cubanos no atendimento cotidiano, algo diferente do habitual no Brasil. Segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), apenas 2,66% dos estudantes que concluíram o curso de medicina em 2010 eram pretos ou pardos.

“Nunca no Brasil nós tivemos tantos médicos negros para atender uma população negra e pobre. Isso traz uma questão subjetiva em quem está sendo atendido. É muito diferente para uma criança negra ir em uma unidade de saúde e encontrar um médico negro, seja ele cubano ou brasileiro”, afirmou.

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(Foto: Araquém Alcântara)

“Maus médicos”

No dia 22 de agosto, durante discurso em Presidente Prudente, Bolsonaro afirmou que iria expulsar os médicos cubanos com o Revalida, exame realizado anualmente para validar diplomas de medicina expedidos por universidades de fora do Brasil.

O presidente eleito tinha também o projeto de admitir os médicos por meio da contratação individual. A ideia era permitir a vinda dos familiares cubanos e dar salário integral aos profissionais estrangeiros, que atualmente ganham um quarto da remuneração total, que é repassada do governo brasileiro para a Opas (Organização Panamericana de Saúde) e só depois para os médicos.

O país tem uma parceria com a Opas, que estabeleceu o acordo com o Ministério da Saúde brasileiro com regras específicas, entre elas a dispensa de validação do diploma dos profissionais cubanos. O Mais Médicos foi criado em 2013, no governo de Dilma Rousseff, e tinha o objetivo de levar profissionais de saúde para regiões distantes dos grandes centros urbanos e periferias do país.

Para Bolsonaro, a parceria com Cuba não tinha interesses sociais, mas sim políticos. Em agosto de 2013, o na época deputado chegou a dizer que o plano de Dilma Roussef era trazer “agentes” cubanos para promover o socialismo no país e também chamou os profissionais cubanos de “maus médicos”.

“Prestem atenção! Está na medida provisória: cada médico cubano pode trazer todos os seus dependentes. E a gente sabe um pouquinho como funciona a ditadura castrista. Então, cada médico vai trazer 10, 20, 30 agentes para cá. Podemos ter, a exemplo da Venezuela, 70 mil cubanos aqui dentro! E um detalhe, Marquezelli: esses agentes podem adquirir emprego em qualquer lugar do Brasil com carteira assinada, inclusive cargos em comissão. Olhem o perigo para a nossa democracia!”, disse no dia 8 de agosto de 2013 na Câmara.

Em concordância com as ideias de Jair Bolsonaro, médicos e entidades se pronunciaram quando o programa foi lançado e ainda em 2013 hostilizaram médicos cubanos quando estes saíam de uma aula preparatória inaugural no Ceará. Cerca de 50 profissionais brasileiros que gritavam palavras de ordem e reivindicavam pela realização do Revalida.

A imagem que viralizou na internet na época foi de um médico negro passando entre médicos brancos que gritavam palavras de cunho preconceituoso e xenofóbico.

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(Foto: Jarbas Oliveira)

Em 2016, Bolsonaro e seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, apresentaram uma emenda para proibir dependentes dos médicos intercambistas de “exercer atividades remuneradas, com emissão de Carteira de Trabalho e Previdência Social pelo Ministério do Trabalho e Emprego”.

“O intuito da presente emenda é limitar o estabelecimento de vínculos permanentes, por parte dos dependentes dos médicos intercambistas estrangeiros, vez que esses exercerão suas atividades em caráter temporário, conforme prevê o Programa Mais Médicos, instituído pela Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, do qual discordo em sua totalidade”, conforme mostra o documento.

Cuba e Brasil na saúde

Cuba, um país da América Central que vive desde 1959 em regime comunista, tinha em 2014 expectativa de vida média de 79,39. Segundo o relatório do Estado Mundial da Infância do Unicef, em 2015, o país alcançou em 2015 uma taxa de mortalidade infantil abaixo de cinco por 1.000 nascidos, dado que coloca o país entre as primeiras 40 nações do mundo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) atestou em 2015 que o sistema de saúde cubano está acima da média mundial. Entre as conquistas da ilha estão: o desenvolvimento da primeira e única vacina contra a meningite B; novos tratamentos para combater a hepatite B, o vitiligo, o pé diabético e a psoríase; uma vacina contra o câncer de pulmão; e a eliminação da transmissão materno-infantil de HIV.

Os médicos cubanos já estiveram presentes durante a epidemia de ebola na Libéria, Serra Leoa e Guiné em 2014, no Paquistão após o terremoto de 2005 e na América Central depois da passagem dos furacões Mitch e George em 1998.

A ELAM, instituição onde Cleber da Costa Firmino se formou em Cuba, foi criada com o objetivo de formar pessoas pobres de toda América Latina em médicos. Segundo ele, a saúde do país caribenho tem seu pilar na atenção primária, ao contrário do Brasil, que favorece o mercado.

“Em Cuba, todos os conhecimentos obtidos durante os estudos devem ser usado na transformação da realidade e não somente para obtenção de lucro. Essa é uma questão fundamental em Cuba. Ser médico é uma missão revolucionária e acho que nós nunca vamos entender isso com clareza”, disse.

O Brasil, por outro lado, não é bem avaliado internacionalmente na área da saúde e ocupa, por exemplo, o 49° lugar na lista de 71 nações do mundo em uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) sobre a eficácia dos sistemas de saúde na região. O estudo aponta, no entanto, que o Brasil está entre os países que mais gastam com saúde na América Latina.

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