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Terreiro mais antigo em funcionamento no Pará completa 133 anos

No estado, o culto afrorreligioso tem forte influência das tradições indígenas e de organização matriarcal

Texto e foto: Fernando Assunção | Edição: Nataly Simões

Imagem mostra a ialorixá mãe Eloísa de Badé, zeladora do terreiro. Ela está com vestimentas brancas e na entrada do espaço.

Foto: Foto: Fernando Assunção

22 de agosto de 2023

O Terreiro de Mina Dois Irmãos, localizado no bairro do Guamá, periferia mais populosa de Belém (PA), comemora 133 anos de história nesta quarta-feira (23). O templo afrorreligioso é considerado o mais antigo em funcionamento no Pará e um dos precursores no culto de matriz africana na Amazônia. A trajetória da casa é diretamente ligada à chegada do tambor de mina na região, crença que teve origem no Maranhão e fincou raízes no Pará, tornando-se uma das mais populares religiões da Amazônia, sob forte influência de tradições indígenas e de organização matriarcal. 

De acordo com o historiador, pesquisador e mestrando em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (Uepa), Danilo Barbosa, o tambor de mina foi criado no Maranhão por africanos escravizados trazidos da região da Fortaleza de São Jorge da Mina, em Gana, na África Ocidental. Foi a partir do Maranhão, que a religião se estabeleceu e se espalhou para outros estados. No Pará, o início do culto remonta à década de 1890, por iniciativa de duas religiosas: mãe Josina de Averequete e mãe Doca.

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“A mãe Josina de Averequete, que funda, em 1890, o Tambor de Santa Bárbara, que mais tarde mudou de nome para Terreiro de Mina Dois Irmãos, no mesmo local onde até hoje segue em funcionamento; e a mãe Docca, que cria o Terreiro Nagô Cacheu, em 1891, no bairro da Pedreira. Então, as casas são contemporâneas e carregam em comum a liderança de mulheres. Essa é a história da chegada do tambor de mina no Pará, ele veio trazido por mulheres do Maranhão e começa a ter influência em toda a região amazônia”, destaca.

Na região, o tambor de mina coexiste com a umbanda e o candomblé – e, inclusive, se cruza com eles em muitos terreiros. Segundo Danilo, o tambor de mina carrega influências das tradições indígenas e do culto aos orixás, tendo como característica a louvação aos voduns – também conhecidos como “senhores de toalhas” ou “nobres gentis”, entidades espirituais que representam reis que viveram em terra. “É uma religião africana, que chega aqui no Pará e começa a ter características peculiares, como a relação entre orixás, voduns e caboclos; peculiaridades que também se manifestam nos ritos praticados, com a incorporação da pajelança da região do Arquipélago do Marajó e conhecimentos ancestrais”, explica.

‘Dois Irmãos’

Na quarta geração de mulheres à frente do pioneiro Terreiro de Mina Dois Irmãos, a ialorixá e zeladora de santo, mãe Eloísa de Badé, carrega o legado iniciado por mãe Josina no dia 23 de agosto de 1890. Ela conta que o templo reivindica uma vertente do tambor de mina chamada de “Mina de Vodunço Senhores de Toalha”. Os “dois irmãos”, a quem o nome do terreiro se refere, são os dois voduns Toy Averequete e Dom José Rei Floriano, entidades ligadas ao orixá Xangô, que eram chefes espirituais – “pais de coroa” – das duas primeiras zeladoras dos santos do terreiro: mãe Josina de Averequete e mãe Amelinha de Dom José Rei Floriano.

“A bisavó Josina era uma africana escravizada no Maranhão, que, após a libertação, veio para o Pará de ‘pau de arara’. Quando chegou em Belém, ela veio parar aqui no bairro do Guamá, onde tudo era só mata. Eles vieram abrindo caminho, os homens com terçados e as mulheres com lamparinas. Ao chegar nesse ponto, ela construiu o terreiro, primeiramente chamado de ‘Tambor de Santa Bárbara’”, diz. “A minha avó, Amelinha, não era filha biológica de mãe Josina, mas frequentava a casa desde criança porque o pai dela tocava tambor aqui. Em 1929, com o falecimento da bisa Josina, a avó Amelinha assumiu a liderança da casa”, acrescenta.

Depois de 75 anos à frente do Terreiro de Mina Dois Irmãos, a mãe Amelinha foi diagnosticada com Alzheimer e o mesmo rito de passagem foi realizado, em 1980, com sua filha biológica, a mãe Lulu de Averequete, sendo escolhida pelas lideranças espirituais da casa para ser a zeladora de santo, posição assumida por ela até 2013. Nesse ano, em decorrência da mesma doença, a mãe Lulu precisou se afastar dos trabalhos espirituais, e a mãe Eloísa de Badé assumiu os trabalhos desde então.

Memorial em homenagem às três primeiras gerações do terreiroMemorial em homenagem às três primeiras gerações do terreiro. | Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

“Eu jamais pensava em um dia tomar conta dessa casa. É muito interessante porque não somos nós que pedimos pra ficar, não somos nós que pedimos para tomar conta do terreiro. Até porque, antes de mim, já tinham outras filhas feitas para isso, mas a escolhida fui eu, assim como, antes de mim, foi minha mãe Lulu e, anterior a ela, minha avó Amelinha”, recorda.

“Tudo que eu tenho, tudo que eu conquistei, é pela fé. E eu sou eternamente grata à minha bisa Josina, à minha avó Amelinha e à minha mãe Lulu, que, com a graça de Deus e dos vodunços e caboclos, está viva, ela dança e canta comigo no salão, só não incorpora, porque já não tem mais condições físicas nem mentais para receber entidades. 133 anos de história não é para qualquer um. Tudo que elas já passaram, humilhações, privações, foi para manter essa casa de pé, então o que eu posso fazer hoje, eu faço, com amor, dedicação e respeito. Nesse chão tem muita luta, resistência, amor e fé”, acrescenta mãe Eloísa.

Para a ialorixá, o enraizamento do tambor de mina no Pará, iniciado a partir do trabalho da casa, tem a ver com as semelhanças entre as linhas de trabalho das entidades e as peculiaridades da ancestralidade amazônica: “No Pará, a presença dos quilombos, dos indígenas, dos saberes tradicionais são muito fortes. E as nossas entidades, a maioria delas, são povos indígenas, são curandeiros. Então, para mim, foi no Pará onde eles se identificaram melhor, se viram e se retrataram”, avalia.

Intolerância religiosa

Um outro traço marcante que atravessa as quatro gerações de lideranças do Terreiro de Mina Dois Irmãos é a intolerância religiosa. A mãe Eloísa de Badé denuncia que todas as eras enfrentaram preconceito religioso, desde repressão policial à interferências de denominações de outras religiões. “A avó Amelinha contava que a bisa Josina só podia tocar tambor de dia, mas, certa vez, ela estendeu o trabalho até umas 17h e a polícia apareceu para fechar o terreiro alegando que aquilo era ‘bruxaria’ e ‘coisa do demônio’. Mas ela, como mulher empoderada já àquela época, resistiu e conseguiu manter o terreiro aberto”, diz.

Para enfrentar a repressão policial, o terreiro já contou até com ajuda espiritual, segundo a ialorixá. “Isso foi já durante a liderança da avó Amelinha. A polícia parou em frente ao terreiro, durante um festejo do caboclo Mineiro, e ele convidou os agentes para entrarem, se servirem e assistirem ao trabalho. A minha avó contava que eles não aceitaram o convite, mas, sem perceberem, foram colocados para dentro da casa. Quando retomaram a consciência, já de madrugada, eles estavam sentados no terreiro, descalços, sem entender nada. Desde essa época, a polícia nunca mais interferiu nos nossos cultos”, completa.

“Já com a minha mãe e também comigo a intolerância foi mais diretamente das pessoas, mais especificamente de igrejas. Eles faziam cruz com sal aqui na porta do terreiro e jogavam óleo ungido na porta de casa. Certa vez, eles invadiram e tentaram dispersar uma das procissões que realizamos pelo bairro, durante o festejo a Dom José. Uma viatura passava ali, naquele momento, e a polícia nos escoltou para concluirmos o trajeto em segurança”, relembra. “Isso, em pleno século 21, não deveria mais acontecer. Até porque, para nós, Deus é único: não existe o Deus da afrorreligiosidade, o Deus da igreja católica, o Deus do judaísmo; Deus é um só em todas as religiões”, conclui.

Terreiro foi tombado, mas está há mais de uma década sem manutenção

Em 2010, por ocasião dos 120 anos de história, a pedido da mãe Lulu, o Terreiro de Mina Dois Irmãos foi tombado pelo Departamento de Patrimônio Histórico Artístico e Cultural do Estado do Pará (DPHAC), da Secretaria de Estado de Cultura (Secult), como território simbólico, de valor histórico e cultural para o Pará, o que garantiu a reforma do espaço.

Há 13 anos, porém, o templo não recebe nenhum tipo de manutenção. Conforme constatado pela reportagem, o espaço acumula problemas estruturais, como rachaduras no chão e parede, infiltrações que aumentam durante o período chuvoso e danos à estrutura, como janelas quebradas. De acordo com a mãe Eloísa de Badé, um ofício já foi encaminhado ao atual governador do Pará, Helder Barbalho, solicitando uma nova reforma para o patrimônio, mas o documento não obteve resposta. Um pedido de esclarecimento foi feito ao governo do estado.

Mãe Eloísa se emociona ao relembrar trajetória do terreiro.Mãe Eloísa se emociona ao relembrar trajetória do terreiro. | Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

Programação

Em alusão aos 133 anos, o Terreiro de Mina Dois Irmãos realiza uma extensa programação nesta semana. A festividade começa nesta quarta-feira (23), dia do aniversário do terreiro, com o toque de mina em homenagem à Toy Averequete, às 20h. No dia 24, o festejo continua com toque em homenagens aos Exus e aos caboclos Juremeiro e Sete Flechas, a partir das 11h. Os rituais encerram no dia 26, com homenagem à cabocla Herondina, às 20h. O Terreiro de Mina Dois Irmãos está localizado na Passagem Pedreirinha, nº 282, no bairro do Guamá, em Belém.

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