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Tranças nagô ou mandraka: racismo e privilégio branco

“Uma mulher branca com tranças é descolada, estilosa, enquanto que uma mulher preta precisa retirar suas tranças e alisar seu cabelo se quiser trabalhar em determinados espaços”, ressalta artista visual

Imagem: Reprodução/Internet

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25 de abril de 2022

“Imagine encontrar algo que te faça sentir especial e conectado com sua identidade e de repente esse mesmo símbolo seja utilizado justamente por quem historicamente lhe fez sentir inferior? É como sobrepor camadas que nos distanciam daquilo que nascemos para ser”, pontua a artista visual Íldima Lima.

As tranças, penteados usados principalmente pelas mulheres há centenas de anos carregam a identificação – além da estética – de tribos, estados civis, religiões e posições sociais. No Egito Antigo, por exemplo, quem possuía muitas tranças passava mensagens de riqueza material e também de abundância. Dentre os penteados, o mais antigo registrado é a trança nagô, de origem africana, que consiste numa trança rasteira, rente ao couro cabeludo.

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Obra "Betsimisaraka", da artista visual Illi | Créditos: DivulgaçãoObra “Betsimisaraka”, da artista visual Illi | Créditos: Divulgação

Durante o período da escravidão no Brasil, as tranças eram utilizadas para identificar as tribos de origem dos escravizados, e até mesmo serviam como mapas e rotas para as fugas planejadas. É o que diz o artigo “Longa História de Penteados com Tranças”, do pesquisador e tricologista Evandro Carvalho.

No entanto, a trança nagô recebeu outro nome nos últimos tempos: a trança madraka. Para Íldima Lima, detentora da marca Illi (como também é conhecida) e idealizadora da exposição “Negras Cabeças”, essa ressignificação das tranças gera um certo apagamento da cultura e estética negra. Illi salienta que é contra qualquer tipo de linchamento, mas também ressalta que as pessoas têm lidado com a importância da trança nagô de maneira superficial.

“Está acontecendo o apagamento do termo Nagô em decorrência do uso da palavra Mandraka. Para além de toda polêmica que envolveu a origem do termo, o que mais importa é o resultado disso, ou seja, intencional ou não, criou-se esse novo termo para definir um estilo de trançado ancestral que sempre foi usado pela cultura negra – e, consequentemente, marginalizado –, de maneira a torná-lo aceitável”, enfatiza.

De acordo com a artista visual, que elaborou a exposição “Negras Cabeças” a partir de uma vasta pesquisa a respeito dos penteados e adornos de cabeça utilizados pelas mulheres negras da África, a trança mandraka simboliza uma violência da expressão cultural negra, “não apenas pela banalização do uso, mas principalmente pela reclassificação do termo, como se essa nova roupagem na grafia viesse acompanhada de uma validação social, naturalizando o uso como algo estiloso, moderno e jovial”, pondera Illi.

Apagamento cultural

“Ao usarmos essas tranças [nagô], devemos honrar e respeitar a sua origem, perpetuando o sentido. As associações e reformulações de nomenclatura são graves porque, historicamente, são formas de apagamento cultural e se posicionam como uma forma contemporânea de apropriação e transplantação cultural através da ressignificação e aceitação social do uso validado pela incorporação da branquitude”, avalia Illi.

Obra "Mbalantu", da artista visual Illi | Créditos: DivulgaçãoObra “Mbalantu”, da artista visual Illi | Créditos: Divulgação

Para a pesquisadora e trancista Amanda Coelho, conhecida como Diva Green, a modificação de “nagô” para “mandraka” é uma das facetas do racismo estrutural no Brasil. Ela pontua que a estética negra serve para além do visual, sendo uma ferramenta de demarcação de território em uma sociedade racista que mantém vivo o apagamento histórico negro.

“Por meio dos nossos cabelos, adornos e vestimentas, contamos histórias e ativamos memórias as quais se conectam com a autoestima de nossa população negra, nos trazendo pertencimento e fundamentos de nossas matrizes africanas. Mudar o nome significa nos afastar desses lugares que nos potencializam. É estratégia do racismo”, afirma.

Illi, por sua vez, pondera que esse apagamento, que começa com a discreta associação das tranças, é algo que já aconteceu repetidamente com outros signos e símbolos identitários esvaziados de significado após serem engolidos, remodelados e incorporados pela cultura branca dominante.

“Em toda minha vida, a primeira pergunta que me faziam ao me ver de trança era se e como eu lavava meu cabelo. Duvido fortemente que se faça esse ou outro questionamento similar a uma mulher branca de tranças, o que certamente é substituído por um elogio exaltando a personalidade e estilo dessa mulher, coisa que nunca nos foi destinada”, diz.

“Em resumo, a pergunta que sempre devemos fazer é: o que faz com que um tipo de trançado passe de algo sujo ou feio a estiloso e bonito? A resposta seguramente estará associada ao momento em que a cor da pele que ostenta o penteado passou de preta para branca, um reflexo inegável do nosso racismo estrutural”, completa a artista visual.

Branco pode usar tranças?

Diva Green salienta que além de se apropriar dos símbolos negros, o racismo estrutural faz a população negra adotar outras culturas, a fim de promover uma falsa aceitação que, na opinião dela, faz parte de um processo de dominação. Porém, quando o povo preto retoma o uso de sua estética, como os penteados de origem africana, ocorre o retorno à ancestralidade, que cria novos imaginários e entende a beleza como parte de outros olhares, vivências e histórias.

Tranças Mandraka | Créditos: Reprodução/InternetTranças Mandraka | Créditos: Reprodução/Internet

A trancista salienta ainda que todo esse processo traz em si a percepção que não é mais necessária a aprovação da branquitude para o povo preto ser inserido na sociedade, o que gera autoconfiança o bastante para que ela, particulamente, não compactue com a ideia de brancos utilizarem tranças.

“Se fosse pra usar, no mínimo teriam que repassar a história que estamos trazendo, porém não é isso que acontece. Usam e se apropriam ao ponto de mudar o nome e de querer se passar por negros por conveniência. Como trançadeira, hoje eu opto por não fazer em brancos”, enfatiza Diva Green.

A artista visual Illi pondera, no entanto, que a questão da apropriação cultural foi muito banalizada e resumida em “poder” ou “não poder” fazer algo relativo à outra cultura. Mais grave do que isso, para ela, a questão se enraíza no esvaziamento e apagamento cultural que este uso indiscriminado faz com signos e símbolos ancestrais carregados de valor histórico.

“Outro ponto é a conhecida mercantilização da estética negra, ou seja, os estigmas que as pessoas negras carregam ao fazer uso de símbolos de sua cultura e que não são experimentados quando pessoas brancas se apropriam desse mesmo símbolo, ressignificando a experiência em função do tom de pele”, acrescenta.

A artista ainda pontua que mais importante do que focar na proibição é refletir sobre a forma como os elementos simbólicos da cultura negra são deslocados e remodelados em diferentes segmentos como a moda, música, artes e outros.

“O impacto não se mede em curto prazo, ao contrário. É sobre como a história vai narrar tais eventos. A questão da apropriação cultural é sobre uma estrutura de poder, ou seja, não são questões sobre indivíduos, mas sobre estruturas sociais. E na sociedade racista que estamos inseridos, pessoas pretas não tem poder para dizer aos brancos o que eles podem ou não podem fazer”, comenta.

Além de um penteado

“Uma mulher branca com tranças é descolada, estilosa, enquanto que uma mulher preta precisa retirar suas tranças e alisar seu cabelo se quiser trabalhar em determinados espaços e obter reconhecimento pela sua competência para além do que a ótica racista é capaz de alcançar”, salienta Illi.

Para ela, tomar conhecimento sobre esses aspectos e questões é de responsabilidade das pessoas brancas, de maneira a refletir até que ponto estão perpetuando a relação usurpadora e exploratória entre dominante e dominado.

“Cultura não pode ser tendência, pois não é descartável. Ao inverter esses valores, reforça-se a máquina do racismo, estruturando a objetificação de signos culturais tradicionais e perpetuando a relação colonizadora, causa matriz dos fenômenos que vivenciamos na contemporaneidade”, explica.

Diva Green ainda pontua a importância das tranças para a construção da autoestima de mulheres negras, em especial, as que estão passando pela transição capilar. Ela destaca que é necessário dar o nome correto às coisas para que desta forma seja possível reafirmar o valor da estética negra.

A pesquisadora e trançadeira Amanda Coelho, conhecida como Diva Green | Créditos: Acervo PessoalA pesquisadora e trançadeira Amanda Coelho, conhecida como Diva Green | Créditos: Acervo Pessoal

“Como dizer para nossas crianças [negras] que elas fazem parte de uma cultura mandraka em vez de trazer culturas e estéticas de nagôs, jejes e iorubás, que têm total influência na nossa construção enquanto Brasil? Esse ressignificar traz um distanciamento da nossa história, que só fortalece e favorece o pacto branco desse país e as dificuldades dos nossos avanços para um novo marco civilizatório que está em curso”, avalia Diva Green.

Reafirmação da identidade

“Assumir e incorporar esses símbolos implica numa atitude política e de resistência, pois é a forma como as mulheres negras enviam a mensagem à sociedade de que se reconhecem e afirmam enquanto mulheres negras. Porém os efeitos não são só positivos. Somos estigmatizadas ao fazer uso desses símbolos de uma forma que as mulheres brancas que se apropriam dos mesmos elementos jamais seriam. Logo, para nós mulheres negras passa a ser uma luta dentro de um espaço que deveria ser de fortalecimento e aquilombamento”, aponta Illi.

A trançadeira Diva Green acredita que para evitar a apropriação e o afastamento da cultura negra é necessário que a população preta se orgulhe e insira elementos negros em seu cotidiano. Para ela, os trabalhos de formação estética ajudam muito nesse sentido, para que os negros adquiram amor por cada detalhe ancestral.

“O auto-amor é poderoso. Para que ele aconteça e permaneça, é necessário alimentar nosso imaginário e retomar nossos costumes e práticas de um período que antecede a colonização. Temos histórias, tecnologias e capacidade o suficiente para ampliar nossa existência a partir de uma conexão ancestral, que nos traz caminhos de emancipação e bem viver. Nossa estética é um dos caminhos de retorno”, avalia.

“As tranças falam sobre alimento para alternância de poder. Um penteado para nós, comunidade preta, é sempre uma conexão que vai além, mesmo que inconscientemente”, completa.

A artista visual Íldima Lima pondera que é utópico acreditar que é possível refrear o processo de apropriação estética, como no caso das tranças nagô e mandraka, quando a estrutura racista é consolidada no capitalismo. No entanto, ela assegura que é possível levantar esse debate em espaços de poder, a fim de fortalecer as falas do povo negro.

A artista visual Íldima Lima, conhecida como Illi | Créditos: Divulgação A artista visual Íldima Lima, conhecida como Illi | Créditos: Divulgação

“As conquistas vem regradas, e às vezes acompanhadas de retrocessos, mas é contínua e crescente. Talvez pensarmos mais sobre como podemos nos fortalecer de tal maneira que qualquer tentativa de violação ao nosso povo e ao que nos concerne seja anulada antes que seja capaz de nos atingir”, finaliza.

Leia também: ‘Como as laces mudaram a forma das mulheres negras se relacionarem com seus cabelos?’

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