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Elisa Lucinda: “ser omisso é como trair o povo”

Em sua primeira entrevista à Alma Preta Jornalismo, a multiartista apresenta sua décima nona obra literária, “Quem me leva para passear” e compartilha suas ideias sobre política, comunicação, carnaval e poesia 

Imagem mostra Elisa Lucinda, de blusa amarela e cabelos cacheados soltos, posando para a câmera olhando diretamente para quem vê

Foto: Imagem: Reprodução/Instagram

3 de maio de 2022

Atriz, cantora, escritora, poetisa e jornalista, a capixaba Elisa Lucinda Campos Gomes ou simplesmente Elisa Lucinda (64) é reconhecida no meio artístico por sua atuação em diversas frentes. Inquieta, com 35 anos de carreira, ela permanece ativa em múltiplas áreas criativas, sendo expoente da produção artística negra. Também tida como um dos maiores nomes na difusão da literatura no país, agora trabalha na divulgação da sua décima nona obra literária, intitulada “Quem me leva para passear”. Ao todo, 113 pensamentos são expostos pela personagem Edite, que narra a sua observação do mundo.

Com um trabalho consolidado no teatro e na televisão, sendo vencedora de um Kikito no Festival de Gramado por “Por que Você Não Chora?” e um Troféu Raça Negra na categoria Teatro, como escritora, Elisa se utiliza de múltiplas personagens para evidenciar a potência das mulheres negras na arte brasileira.

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No cinema, ela acaba de rodar filmes com diretoras expoentes do cenário nacional: “O Pai da Rita”, de Joel Zito e “Papai é Pop”, de Caíto Ortiz. No último ela contracena com Lázaro Ramos, com quem cultiva uma história de amizade e parcerias profissionais. O ator, que se apresentou este ano como diretor de cinema em “Medida Provisória”, tem construído junto à Elisa possibilidades de adaptação dramatúrgica das histórias de Edite. 

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Um dos maiores nomes da difusão da arte feita por pessoas negras do país, Elisa Lucinda lança ‘Quem me leva para passear’. A obra, que reúne cerca de 113 pensamentos da personagem principal, ‘Edite’, é a décima nona publicação literária da multiartista. (Imagem: Reprodução/Instagram)

De impacto social direto, a multiartista ainda dá continuidade ao projeto ”Sankofa”, da sua “Casa Poema”, que trabalha com poesia falada em quilombos; além disso, Elisa segue com “Catadoras de Poesia”, trabalho literário que desenvolve com mulheres catadoras de materiais recicláveis, junto à Flup – Festa Literária das Periferias. 

Com toda esta bagagem, Elisa Lucinda se consolida como um dos maiores nomes da difusão da arte feita por pessoas negras do país, além de agente político de sua classe. Em sua primeira conversa com a Alma Preta Jornalismo, ela apresenta sua nova obra e compartilha suas ideias em torno do cenário político atual, do poder da informação, do Carnaval 2022 e sua crença na poesia como ferramenta que perpassa gerações. Confira! 

Alma Preta Jornalismo (APJ): Elisa, vasta é a sua contribuição à literatura brasileira: “Euteamo e Suas Estréias”, “A Fúria da Beleza”, “Contos de Vista”, “Parem de Falar Mal da Rotina” e, agora, o décimo nono livro “Quem me leva para passear”. Em toda sua carreira dedicada à escrita, os mais variados sentimentos, assuntos e espelhos foram apresentados. Nesta nova obra, o que você quis retratar?

Elisa Lucinda (EL): Bom, esse livro faz parte de uma coleção, sendo a segunda parte do “Pensamentos de Edite”. Quando eu fiz o primeiro, não sabia que ficaria tanto na minha cabeça. A personagem continuou na minha mente, sabe? No processo, descobri que se tratava de um exercício de liberdade, onde tem uma fluência coloquial, uma voz de pensamento em que a gente consegue acessar, por exemplo, o que se passa na mente dela quando encontra uma pessoa na rua. O mais interessante é que ela é uma personagem muito fácil de se identificar, principalmente, creio, por parte das mulheres pretas. Elas estão sendo vistas na escrita, mais agora do que cinquenta anos atrás. Antes, os homens escreviam pelas mulheres, depois as mulheres brancas escreviam por todas e, agora, somos nós. Tratando da Edite, uma mulher negra, sua narrativa segue seu movimento e nos leva para circular com liberdade. 

APJ: Enquanto narrativa, você utiliza da ferramenta de contar a história em primeira pessoa, muito com o intuito de convocar a uma narrativa mais intimista sobre a personagem Edite. Podemos saber o porquê da escolha nesta obra? 

EL: Eu gosto de usar a primeira pessoa, ela tira a observação e faz a gente esquecer do narrador, que é um sujeito oculto. Penso que se pusermos a história na primeira pessoa, nos tornamos a cena, por isso eu gosto mais. Acredito que a narrativa se torna mais direta sendo na primeira pessoa. Com isso, eu evito esse sujeito oculto e de questionamentos sobre como o observador sabe como e de onde se está vendo, analisando. A Edite sendo a Edite, eu até economizo uma voz (risos). 

APJ: Elisa, a obra é identificada como uma autoficção provocante, carregada de afirmação política e filosofia ubuntu, além de brindar a leitura com uma poética cortante e delicada. Com isso, gostaríamos de saber, como se deu o processo de reunir tudo isso e como você conseguiu externalizar na obra?  

EL: Então, a Edite são muitas mulheres que conheci, das histórias que vivi, ouvi e colecionei. Tenho muitas histórias das coisas que vi e muitas delas eu coloquei na Edite. Algo que identifiquei na construção dela é que a Edite tem uma certa inocência. Ela identifica o racismo e várias mazelas da desigualdade, mas não é política no sentido oficial, mas quase que sem querer, sabe? Uma frase que gosto muito que ela solta frente às mazelas da sociedade é no trecho que ela questiona “e a democracia, ninguém ficou vigiando?” É bem característico dela, propor essa reflexão de forma mais fluída. Por isso, a amo por ela acionar este exercício da liberdade. Ela também comenta sobre a beleza de um homem que viu na rua e achou atraente. Quem nunca, sabe? Isso gera identificação, principalmente nas mulheres que historicamente tem seus desejos reprimidos. Essa proximidade é tanta que uma amiga, que já chegou a ler o livro, dia desses me falou “e agora? O que será de mim sem a Edite?”. 

APJ: Jornalista formada, professora, poetisa e grande nome como multiartista negra. Em suas várias facetas, a informação sempre esteve presente. Para você, diante do cenário político que estamos vivendo nos últimos anos, qual é a importância de continuar sendo agente de informação e de arte?  

EL: Confesso que me sinto em uma posição privilegiada na luta, muito por ela ser no campo semântico e simbólico. É isso que produzo. Frente à isso, estou muito consciente do papel da arte, dos atrasos voltados à cultura e de todo processo sofrido pela onda conservadora e de direita que estamos vivendo. Inclusive, preciso pontuar, jovem que se considera de direita, para mim, é algo triste. Acredito que a evolução se dá pela juventude, fase em que a gente descobre que temos uma revolução para fazer, quando as utopias se apresentam. Dia desses recebi diversos comentários avisando que, ao postar um vídeo brincando com meu companheiro, ao sair do banho, sem querer mostrei em segundos uma parte do meio seio. Gente, se tratava de uma brincadeira, de algo do cotidiano. Mas, para a sociedade, que parece que se encaretou, se tratava de uma outra coisa. Vale lembrar que faço um espetáculo há anos que iniciou totalmente nua e não será por estes tipos de retaliações que deixarei de fazer. Enfim… O governo que estamos vivenciando não quer que a cultura se estabeleça, exatamente por ela compreender esse espaço de retrocessos e controle. Se a gente compreender de fato este cenário, vamos identificar que se trata de um jogo roubado. O que é a sociedade? Um jogo roubado pelo branco, trabalhado em cima da ganância. Por isso, acredito que o papel da arte é abrir essa caixa de pandora. Como agente disso, me sinto convocada, principalmente, para acionar as liberdades.  Agora, me sinto mais aqui lombada, principalmente por enxergar os pretos em posição que não via antes, como escrevendo ou mantendo portais de notícias por e para nós, como a Alma Preta Jornalismo. E mais agentes se fazem necessários. Como diz Pose do Rodo, “Nós não vai recuar”, e é isso que acredito. Tratando de episódios racistas que estamos vendo ganhando força, é preciso reforçarmos que os brancos estão longe de serem o que acreditam, como uma “raça superior”.

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APJ: E nesses anos todos dedicados à poesia, escrita e a declamação, você ainda conseguiu trazer para sua trajetória feitos de impacto social muito necessários no que se diz respeito às problemáticas envolvendo raça e gênero. Com isso, nós perguntamos, a palavra tem poder de mudança, principalmente no contexto racial e político em que estamos inseridos? 

ELClaro. A palavra é o elemento mais próximo da ação. Palavra mata, constrange, exalta, humilha, expõe, reconhece, corta. Ela faz muita coisa. Sem palavra, é muito difícil ter cidadania, por exemplo. Historicamente, quando ela vem para a civilização, ela deixa de ser historinha. No caso de homens tóxicos e abusadores, por exemplo, é comum proferirem frases como “você não vai arranjar outro ou uma pessoa melhor” – frase que, até então, era “normal”e que esse tipo de comportamento não era caracterizado como uma violência. Isso muda quando tomamos conhecimento de termos como “abuso psicológico” e “violência mental”- sendo termos que sugerem uma materialidade. Até então, a senhorinha do interior, que não sabia que poderia denunciar o que sofre e o terror que passa, pode entender melhor através da palavra. A palavra pode ancorar isso e, quando ela na vida de uma pessoa, é como se acessasse o poder. Ela permite acessos à discursos, além da identificação. No trabalho que realizo no “Casa Poema”, projeto que faço juntos a quilombolas, propus uma reflexão. Estava com as mulheres que fazem parte do processo de extração do dendê e, com palavras, propus uma reflexão sobre disparidade de gênero. Questionei quem ia até o dendezeiro e elas responderam que os homens. Questionei quem catava e tratava dos espinhos para a extração do azeite e elas disseram “nós”. Por fim, falei “por qual motivo vocês ganham menos?” e elas ficaram reflexivas. Ali, eu usei da palavra para falar, em discurso familiarizado por elas, sobre desigualdade de gênero. É sobre isso. 

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Elisa Lucinda após seu discurso no ‘Ato pela Terra’, ação que aconteceu em Brasília e reuniu 230 organizações sociais e representantes da classe artística, que saíram contrários ao ‘Pacote da Distruição’, no último dia 9 de março (Imagem: Reprodução/Instagram)

APJ: Tratando de política, é evidente a sua participação ativa na luta pelos direitos dos cidadãos brasileiros. Na eleição presidencial de 2014, você apoiou a reeleição da Dilma Rousseff (PT). Em 2016, posicionou-se de maneira contrária ao seu impeachment. Em 2018, declarou seu apoio ao petista Fernando Haddad. Recentemente, você fez um discurso potente no Ato pela Terra. No entanto, sabemos que estar no espaço da mídia, por vezes, pode ser um campo minado, que pode até tirar trabalhos e prejudicar a visibilidade das atuações artísticas, principalmente você enquanto mulher negra. Com isso, em algum momento você teve medo? E como enxerga parte da classe artística que não se posiciona? 

EL: Nossa! Tenho medo, eu sofro, recebo retaliações, sou xingada e, por vezes, chego até a não saber. No entanto, eu tenho mais medo de viver uma vida de quem não se importa, uma vida que não considera o coletivo, o Ubuntu, algo que é meu fundamento, sabe? Na real, eu não quero uma vida com medo. Recentemente, fiz uma postagem na minha rede social que eu sabia que não ia agradar a todo mundo. O resultado foi que setecentas contas deixaram de me seguir, mas, em seguida, outras mil e quinhentas novas chegaram. Entendi ali que não estou para ganhar números ou robôs. A rede social, onde ecoo o que acredito e me posiciono, é uma tribuna para mim, para mostrar meu trabalho e o que represento. Sobre parte da classe artística que não se posiciona, digo que não concordo, entendo, respeito, porém, creio que quem não se posiciona, se posiciona, sim. A mesma situação é quando, teoricamente, se isenta do voto, destinando à branco ou nulo, mas, na verdade, está interferindo no resultado das eleições, em um quadro que, no geral, com estes tipos de voto, quem ganha com isso é a direita. Essa omissão, para mim, é como trair o povo, pessoas que seguem seus trabalhos. Você, enquanto artista, vê um crápula no poder, acabando com toda a política social e não faz nada? Antes dos meus espetáculos, eu me sento nas cadeiras da plateia e, se não foram confortáveis o suficiente, eu reduzo o tempo, entende? Por isso, para mim, o silêncio dos “bons” é muito mais nocivo do que se pode imaginar. Enquanto isso, sigo como voz e bode expiatório dos colegas ao me posicionar e isso é puxado, mas eu sigo. Por isso parabenizo artistas de visibilidade e que chegam em defesa do povo brasileiro. Estou adorando as posturas da Anitta sobre isso, por exemplo. Viva a Anitta! 

AP: Em contrapartida, como você tem visto essa militância artística-racial sendo valorizada em vários espaços, como no carnaval, que acabou de acontecer? As escolas reacenderam um reconhecimento da importância das nossas vivências e contribuições culturais, sociais e identitárias? 

EL: Achei importantíssimos os temas abordados pela maioria das escolas, essas que colocaram a contribuição negra no reconhecimento e visibilizam nossas contribuições, nossos feitos. Isso foi bem bonito, mas tenho minha crítica. Fiquei chateada como se deu a transmissão pela mídia tradicional. Estava na avenida uma constelação negra e a televisão nos invisibilizou, cara. Isso é muito sério. Em um dos desfiles, estávamos eu e nomes como Paulo Lins, Renato Nogueira, Flávia Oliveira e mais. Nós formamos uma ala e sequer fomos citados. Nossos nomes e o que estávamos representando estavam no roteiro que a escola envia para a TV, mas não rolou. Quase que ninguém fala da Conceição Evaristo, sabe? Babu Santana e até Seu Jorge, que eu quem chamei para Beija-Flor, quase ninguém viu eles. Entendi que ainda há uma grande luta por visibilidade. Entendi também que a gente só estava na avenida pelo carnaval está indo para mãos pretas, na comissão de frente, no roteiro, e nos espaços que formam a manifestação. Temos mais pretos em posições de poder e queremos mais. Só assim para sermos vistos como queremos e devemos. 

AP: E para finalizar, voltando às artes, Elisa, você é considerada a artista da sua geração que mais populariza poesia, principalmente pelo modo coloquial de se expressar, o que faz com que pensamentos mais complexos ganhem fácil compreensão. Com isso, o que você espera da poesia? Acredita que vai se reformular, ser espelho de gerações e continuar viva? 

EL: Sim. Acredito. Ao meu ver, poesia é igual ao samba: agoniza, mas não morre. A política precisa da poesia, da palavra que transforma, inquieta e produz evoluções e revoluções, por exemplo, sabe? E as gerações vão precisar dela, principalmente por sempre restabelecerem a necessidade de democracia, de liberdade. E a poesia é liberdade, que se assemelha à água por sua fluidez. Ela caminha entre as pedras e, mesmo quando há paredes, ela mina. 

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