“Em Brasília, a militância negra atua na resistência”, diz
Texto / Juca Guimarães | Edição / Simone Freire | Imagem / Rafael Berezinki / Divulgação
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Aos 55 anos de idade, Genival Oliveira Gonçalves, o rapper GOG está a pleno vapor para sacudir a cena do hip-hop e celebrar sua negritude. Celebrando 30 anos de carreira, ele se configurou como um dos primeiros artistas a quebrar a bolha do rap brasileiro no início dos anos 1990.
Para comemorar as três décadas de carreira, o rapper brasiliense acaba de lançar o videoclipe do single “Anfitriã”e prepara um combo de cinco vinis que reúnem os clássicos compostos por ele.
O poder de transformação da consciência e a luta antirracista são o foco da produção artística de Gog e fazem parte do legado que ele quer passar para as gerações futuras. Confira a entrevista exclusiva do rapper para o Alma Preta.
Como você compara a cena da música de hoje e a de 30 anos atrás?
Me lembro como hoje que a arte era colocada como o último patamar do ser humano. O artista era um tipo de semi-deus. Só aos deuses caberia a arte, os intocáveis. E chegar com um movimento que vem da comunidade, da rua e que nasce do protesto fazia com que as pessoas acreditassem que aquilo não era arte. Era conversa de gente revoltada. Isso, na época, nos limitou porque acreditávamos que não éramos artistas. Quando dei o meu primeiro autógrafo foi um misto de emoção e de não acreditar que aquilo não estava acontecendo. Em 30 anos de carreira coube a mim perceber que a arte é toda a manifestação humana. Todos nós somos artistas. Todo ser humano é provedor de arte.
E as relações com a política naquela época e atualmente?
No começo, a nossa relação política era com a rua. Com os discos, com os amigos, com o soul e com o funk. A relação com partidos era distante porque a dificuldade geral para entender o hip-hop como arte era imensa. Tanto que a esquerda não nos percebeu. Só depois de dez anos de presença e atividade do hip-hop nas comunidades e trabalhando que os movimentos sociais passam a dialogar com a gente. Foi um reconhecimento duro.
Como era a visão política daquela primeira geração do rap?
A gente abria a boca para falar da esquerda e da direita porque nenhuma das duas nos atendia. Se bem que a direita era quem estava na cabeça do poder e a esquerda lutando para sobreviver. Mas era evidente que a periferia e a negritude não eram pautas primeiras de nenhuma dessas correntes e no hip-hop era tudo. Isso se deu desde aquele tempo e hoje ainda é assim, Os governos de esquerda não conseguiu reduzir a mortalidade da juventude negra. A juventude de pele clara se beneficiou mais das políticas públicas. O Brasil é um país racista estruturalmente e isso passa pelas estruturas políticas e partidárias, independentemente de ser esquerda ou direita, isso dói muito.
Quais os maiores desafios que você enfrentou na sua carreira?
Os desafios da carreira de um rapper no Brasil estão ligados ao fato de ser um homem negro fazendo arte. Uma arte que não é reconhecida que está à margem. Até hoje a Ordem dos Músicos do Brasil não reconhece o canto do rapper e o trabalho do DJ como uma atividade regularizada como música.
Mais de 35 anos de hip-hop no Brasil e mais de 40 anos de hip-hop no planeta e mesmo sendo a música mais tocada no mundo, pelo menos no Brasil, não se rompe essa barreira do reconhecimento. E é um papel determinante no nosso posicionamento. Qualquer coisa que precise de uma documentação, uma certificação profissional como um festival ou uma apresentação de TV não tem [a regulamentação como rapper]. Isso é preconceito. Para mim o grande desafio que já superamos é a percepção de que a realidade é algo a se transformar.
Você escreveu um livro com seus versos. Qual a importância da literatura no rap?
“A rima denuncia” é um livro que eu considero muito importante porque tem letras minhas que se tornaram clássicos. Elas transformaram a minha comunidade, transformaram gente do Brasil todo. As pessoas, através dessas letras, começaram a gestar um sistema de conexão. A frase “periferia é periferia em qualquer lugar” que eu escrevi em 1994 para a música “Brasília Periferia” foi muito bem recebida pelas periferias do Brasil e trouxe muitos diálogos.
Grande parte dos problemas do país é porque os livros não contam os fatos verdadeiramente. Os livros de História narram a ótica de quem “venceu” e ele não fala como venceu, não fala das falcatruas que ele utilizou para vencer. Daí a importância de escrever livros e registrar a história do rap. Falar sobre os nossos territórios e as nossas comunidades. Nas favelas e nas periferias nascem escritores também. Temos que romper as gerações e gerações de “eiros”, dos pedreiros, sapateiros, confeiteiros, marmiteiros e etc. queremos ser psicólogos, cineastas e todo o resto. O livro é um ponto de partida para acreditarmos em nós mesmo e mudarmos a realidade.
Qual é o futuro do rap?
O passado não existe mais e o futuro não existe ainda. Ao mesmo tempo a gente tem que perceber no presente que os erros do passado são aprendizados. Temos que trabalhar bem o presente para colher uma cena melhor no futuro.
Eu percebo que o hip-hop hoje segue um caminho para o centro, um caminho para o holofote, para a vaidade. O caminho da vaidade tem um contraponto. É “vai idade” porque o mercado te quer só por um tempo. Tem um prazo de validade. Esse moleque que fica aí vivendo só o momento não está fazendo rap. Tem que fazer a história, tem que fazer parte da história.
Precisa escrever coisas que a próxima geração vai ouvir e que vai fazer com que eles sigam a estrada que começou lá atrás. Eu vejo o hip-hop como uma consanguinidade não vejo como “nova escola” ou “velha escola” . Parece que uma precisa ser derrubada para a outra crescer. Eu acredito em gerações: a primeira, a segunda, a terceira geração do rap. Cada geração carrega a genealogia de todas as anteriores. As minhas vitórias foram possíveis pelo legado do Gerson King Combo, Tim Maia, Lady Zu, Michael Jackson, Jorge Ben, Cassiano. Eles foram a minha maturidade musical, que agrega o som, o texto e a transformação.
Em Brasília, como é o processo de conscientização racial por lá?
Brasília está com 60 anos. Ela precisa de um divã. Ela precisa se situar na terceira idade e sentar no banco da frente e ver quem é que tá passando na roleta e está construindo esse país de verdade. A minha cidade foi criada. Com ela foram criadas as cidades-satélites que seriam as cidades dormitórios. Lá tem Ceilândia que, cujo nome vem da sigla CEI que é Campanha de Erradicação das Invasões. O nome já tá errado. O povo nunca invade o povo sempre ocupa. Não é só uma expressão política. Isso é constitucional o primeiro direito da terra é o de moradia. Nesses 60 anos de Brasília, é muito pesado discutir a questão da moradia. Nesses cidades dormitórios foram colocados os candangos, os que construíram tudo. Os chamados pioneiros são aqueles que chegaram com tudo pronto e montado, Mas antes tiveram os candangos, em sua maioria negros. Eles foram afastados e isolados. Brasília tem a sua negritude muito embasada, que foi escondida. Temos aqui o bairro do Cruzeiro onde foram colocados os cariocas, onde tinha samba. Eu tenho um sotaque que é meio carioca por isso.
O Rio tem essa tradição negra que veio para Brasília, mas foi afastada a cidade não se reconhece negra. Hoje não tem terreiro em Brasília. Para ir no terreiro tem que ir na mãe Railda, no Valparaíso, no entorno. A militância negra atua dentro da resistência. Temos a universidade (UNB) que foi pioneira nas cotas. A luta negra existe, embora a cidade tenha sido planejada para não ter tensão social. As cidades-satélites são longe. Quando se pega as bordas, o entorno, que eu prefiro chamar de Grande Brasília, não tem espaço para manifestações, mas a militância está atuando e se articulando. A luta é diária para não ser apagado. Me recuso a admitir essa ideia que Brasília é a capital do rock. Para mim ela é a cidade do rap, do samba e do funk. A periferia está em transformação para mudar a sua realidade.