“Feito nas coxas”. A expressão popular remete ao período escravocrata, quando pessoas negras escravizadas produziam telhas de argilas em suas coxas. O tamanho e formato variavam de pessoa para pessoa, o que fazia com que as peças nem sempre se encaixassem e fossem consideradas “mal feitas”. Em Pernambuco, o termo racista ganhou outro sentido por meio do olhar do artista e arte educador Ômega Ribeiro, que lança, neste sábado (29), a série “7 Mucambos”. A obra integra o projeto “Nas Coxas” e é baseada nos fazeres e saberes constituídos pela ciência de homens e mulheres negras do passado e presente.
É a partir do conhecimento desenvolvido por seus ancestrais, outrora desligitimados pela arrogância colonizadora da “Casa Grande e Senzala”, que Ômega iniciou a produção da obra desenvolvido na “Residência Cultural Moldar o Existir: Vivências mediadas pelo Barro”, organizada pela Oficina Brennand. O processo criativo, no entanto, já vinha se desenhando a partir de experiências anteriores, em territórios como Tracunhaém, na Zona da Mata de Pernambuco, mais precisamente no ateliê do mestre Val Andrade. Mas não só. O percurso até a modelagem no barro envolve trajetórias que perpassam memórias afetivas e ancestrais de um artista que reflete seu tempo revisitando fundamentos das práticas diaspóricas do povo preto e nordestino.
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“Com esse projeto, proponho circularidades em minha própria história de feirante das expressões em diálogo com as heranças de giros espiralados que Seu Zezinho, meu avô, me transmitiu através dos saberes canalizados no fazer de máscaras de modos de vida dos seres litorâneos da zona norte de Pernambuco. Este diálogo transborda em modos e significações fortalecedores de nossa existência como herdeiros de esbagaçamentos e fibroses que vibram em confluências, conflitos, colonizações e contracolonização”, explica Ômega.
A obra seriada tem base inicial no imaginário popular, nas potencialidades e possibilidades proporcionadas pelos encontros com comunidades populares localizadas na Várzea, Zona Oeste do Recife, onde se desenvolveu a residência. A partir da conexão com o território circuvizinho, o artista reflete sobre a construção e desconstrução de termos que seguem endossando práticas racistas como o dito “feito nas coxas”, que ascende a um novo significado de valoração e reconhecimento do legado negro na construção da identidade cultural do Nordeste.
A obra é composta por três peças em forma de telhas com referência a 3 dimensões e 4 peças com inspiração nos elementos das naturezas. Fundamentado em conceitos como Sankofa (um ideograma presente no adinkra, conjunto de símbolos ideográficos dos povos acã, grupo linguístico da África Ocidental), Ômega conecta mucambos que compõem o bairro da Várzea aos fluxos de expressões cosmológicas, o que possibilitou a construção de caminhos “dos barros, bairros, corpos e expressividades”.
Natural de Igarassu, na Região Metropolitana do Recife, ^Ômega tem formação em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e desenvolve práticas educativas sócio-culturais, valorizando saberes do povo e expressões de rua a partir da coletividade. Em 2017, fundou o coletivo Bagaço e o espaço “Fibrose Oficina de Artes” em Igarassu, território de vivências e experimentações artísticas culturais. Vivências que se entrecruzam no seu novo projeto.
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Residência e territorialidade
O projeto “Nas Coxas” integra a “Residência Cultural Moldar o Existir: Vivências mediadas pelo Barro”, organizada pela Oficina Brennand com curadoria de Renata Felinto, Ariana Nuala e Rita Vênus, tutorias de Ana Lira, Edson Barrus e Flávia Leme e artistas convidadas Maria de Ana e Déba Tacana. Além de Ômega, participam da residência os artistas Kulumym-Açu, AORUAURA, Antonio Pulquério, Anti Ribeiro e Dj Nanny.
Entre as ações delineadas a partir da produção da obra está o desdobramento e conexão com os territórios onde foi desenvolvida . Um desses territórios localiza-se na vizinhança do GRIS Espaço Solidário, local que proporciona apoio lúdico e psicopedagógico para as crianças do território da Vila Arraes. Outra parceria foi establecida com a Ocupação Kilombo Capibaribe, coordenado pelo Movimento Urbano dos Trabalhadores Sem Teto (MUST), que luta pelo direito à moradia. O projeto também se aproximou da comunidade 7 Mucambos, que inspirou o nome da série. No planejamento da ação nos territórios, cada uma das comunidades seria contemplada com fogão, forno e queimador. A primeira beneficiada foi o Kilombo Capibaribe, que já conta com o fogão instalado.
Para a artista visual Ana Lira, que orientou o processo de produção, o resultado demonstra a capacidade de articulação social de Ômega. “Foi muito interessante poder atuar nesse processo e perceber como ele conseguiu redestribuir as funções no processo artístico a partir de uma relação com a comunidade que também participou da construção dos equipamentos, o que vai possibilitar outros desdobramentos”, observa ela. Lira também destaca a capacidade do artista em se perceber como corpo de passagem e produzir um trabalho consciente da importância da sua própria autonomia e das comunidades onde os equipamentos foram instalados.
A partir das experimentações coletivas, que também contaram com a contribuição do Sítio Ágata, gerido por Nzinga e Luiza Cavalcante, o artista instalou três equipamentos que ficam de legado projeto, além de desempenharem uma função social na medida em que possilitam soberania alimentar para as comunidades. “Em cada etapa de construção foram estimuladas ações éticas, estéticas e poéticas de fortalecimento de identidades ancestrais na perspectiva de construção de um espaço artístico-funcional que servirá de equipamento fortalecedor para a permanência de modos, saberes e fazeres sovados no barro e queimados no fogo do fogão”, pontua.
Desdobramentos
Mesmo após a conclusão da residência, Ômega pretende seguir com outras ações que se desdobram a partir do processo iniciado no território concluindo as etapas de construção do forno e queimador nas comunidades Vila Arraes e 7Mucambos, respectivamente . “Eu chego no final dessa primeira etapa artística com um grande desafio dos desdobramentos dela através das diversas camadas do projeto “Nas Coxas”, que é um conceito guarda-chuva, onde dentro dele existem várias outras possibilidades de ações, reflexões e vivências. Nos meses de novembro e dezembro pretendo dar continuidade ao que já comecei e fazer a entrega de outros equipamentos nas outras duas comunidades”.
A inauguração de um dos fogões comunitários e o lançamento da série “7Mucambo”, que marca o fim da residência, será marcada por uma cuminância que acontece no Kilombo Capibaribe neste sábado (29), com acesso restrito aos moradores e convidados em respeito ao protocolo de controle da Covid-19. O artista comemora o encerramento do ciclo refletindo sobre seu lugar enquanto homem preto e indígena atuante na área da arte educação. “É um desafio lidar com as expresões dentro de um universo de lutas contra o racismo, desafios contra esse a desqualificação do nosso trabalho, mas acreditando muito na potencia do bagaço, da fibra e do nosso povo, que é um povo de muita sabedoria e ciência”.