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“O humor sempre foi parte constituinte do racismo estrutural no Brasil”, diz pesquisadora

A figura do negro era o motivo de chacota nos programas de humor da TV aberta nos anos 1970 e 1980; neste período, o racismo recreativo se desenvolveu

Colagem com as fotos dos humoristas Mussum, Hélio de la Peña e do ator Ailton Graça interpretando o Mussum.

Foto: Imagem: Vinicius de Araujo/ Alma Preta

20 de maio de 2022

Por: Fernanda Rosário

Durante décadas, a TV aberta no Brasil, com seus programas de humor, pode ter contribuído com a desvalorização de pessoas negras. A carga de estereótipos negativos associados à negritude gerou reflexo na sociedade, incentivando o racismo recreativo e um projeto de desqualificação das pessoas negras, segundo os especialistas ouvidos pela Alma Preta Jornalismo.

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“Acho que o humor sempre foi um lugar extremamente estruturante no país pela nossa própria formação cultural, histórica e a relação que a gente tem com as culturas populares”. É o que destaca Marina Caminha, doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora sobre humor e audiovisual brasileiro há mais de 20 anos.

O racismo recreativo, termo cunhado pelo doutor em Direito Adilson Moreira, refere-se a um humor tido como inofensivo, mas que possui um cunho racial que associa características de pessoas negras e indígenas a algo negativo ou inferior.

“O Adilson Moreira achou uma palavra muito bem colocada para dar conta desse debate, porque é exatamente essa ideia do brincar como se nesse espaço eu pudesse fazer tudo. Eu acho até que a gente deve alargar essa categoria da recreação para outros campos, como xenofobia recreativa, machismo recreativo, LGBTfobia recreativa, que são grupos que sempre apanharam nos lugares dominantes e na mídia hegemônica”, explica Marina Caminha.

Mussum e o humor na TV

Antes de ser convidado para fazer parte dos Trapalhões, o sambista Antônio Carlos Bernardes já era famoso como integrante do grupo Os Originais do Samba, reconhecido pelo seu talento como ritmista, compositor, cantor e, em especial, o carisma para entreter a plateia, segundo conta o jornalista Juliano Barreto, autor do livro “Mussum Forévis: Samba, mé e Trapalhões”, lançado pela editora Leya.

O programa se tornou um grande sucesso nacional aos domingos, mas era marcante o conteúdo racista e os reforços de estereótipos degradantes que o roteiro vinculava ao personagem Mussum, que falava errado e sempre estava bebendo cachaça.

Na pesquisa para o livro, Juliano Barreto diz que o humorista Antônio Carlos fez frente ao conteúdo racista em diversas ocasiões e, nos cacos [intervenções fora do roteiro], retrucava os ataques raciais.

“Ele não aceitava mesmo o racismo. Ele ensinava para os filhos que era preciso reagir, bater em quem fosse racista com eles. Não era algo para se admitir”, comentou o biógrafo do Mussum.

O sambista era conhecido tanto como Antônio Carlos ou Carlinhos da Mangueira. O nome Mussum era um apelido com cunho racial, que ele não gostava, dado pelo ator Grande Otelo. Mussum é um peixe longilíneo de brejo de cor muito escura que era usado como isca para pesca.

A resistência do Mussum, personagem, em não aceitar que o racismo saísse com vantagem foi percebida por um humorista negro de uma geração mais recente.

“Ele era o cara sagaz, esperto, que sempre dava uma volta no Didi e no Dedé. O que me chamava atenção era quando ele saía por cima. E mesmo quando tinha uma piada racista, ele dava o troco no ato”, disse o humorista Helio de La Peña, que fez grande sucesso na TV e no cinema com o grupo Casseta e Planeta nos anos 90.

Os trapalhões

Os Trapalhões | Crédito: Reprodução/ Observatório da TV

O programa dos Trapalhões foi exibido durante 21 anos, entre 1974 e 1995, pela Rede Tupi e pela TV Globo para todas as regiões do Brasil. A história do Mussum será adaptada para o cinema, com previsão de estreia em 2022, com os atores Ailton Graça e Yuri Marçal interpretando o humorista em fases diferentes da vida.

Leia também: Nas panelas do Pânico, cozinha o humor racista

Não existe inocência no riso

A pesquisadora Marina Caminha destaca que é preciso entender que o humor é um lugar de potência, é parte constituinte de um projeto de poder, já que ele se apresenta em todos os lugares, atravessa o cotidiano das pessoas, inclusive as mídias e a política. Segundo ela, essa explicação tem uma importância sobretudo quando se pensa que na pós-abolição da escravatura, a ideia de se criar uma distinção entre as pessoas negras e brancas foi muito forte.

“Quantos políticos usam a performance do humor para criar um certo lugar de carisma em relação ao público e assim sucessivamente?”, indaga a pesquisadora, também autora do artigo “O humor racista midiático: as políticas da dor e do ódio como desenho risível do corpo negro”.

Segundo Caminha, com a modernidade, a ideia da brincadeira e do humor vai sendo construída como algo desimportante, inocente, sem intenção ou seriedade, quando, na verdade, dentro das culturas populares, a brincadeira sempre teve um viés ideológico.

“Assim se dá o poder de tudo falar. Se o humor não é sério, não tem ação ofensiva ou ação ideológica, eu posso falar tudo. Criou-se um jeito de utilizar o humor muito favorável para a perversidade também. O humor sempre foi parte constituinte de um racismo estrutural no Brasil”, ressalta Caminha.

Além do racismo, a homofobia era muito comum nos programas de humor que fizeram sucesso na TV aberta a partir dos anos 1960, influenciando o modo como a sociedade brasileira refletia sobre as questões de diversidade.

Marina Caminha explica que atualmente percebe uma transformação nos programas humorísticos, principalmente depois da década de 1990, o que gera um certo tipo de constrangimento e obriga os humoristas brancos a revisarem também o tipo de humor que fazem.

A pesquisadora também pontua que, por outro lado, é nesse mesmo período que o termo politicamente incorreto começa a surgir com força, com várias pessoas defendendo essa ideia como a essência do humor.

“Querem dar o direito a que esse humor machista, homofóbico, racista, xenofóbico, permaneça. Aí vem um discurso avançando e se tornando senso comum de que é ‘mimimi’, de que é besteira, era uma brincadeira. Naturalizando a ideia de que o politicamente incorreto é a essência do humor, como se ele não fosse uma construção cultural”, explica.

Ainda de acordo com a pesquisadora, a normalização e universalização de pensar o humor como um campo inocente permite que o processo colonizador e racista incutido dentro dele atravesse as pessoas e perdure até os dias atuais.

“Não existe inocência no riso, porque não existe falta de um posicionamento político. O riso tem um claro lugar de ataque. A questão é onde você ataca, quem você ataca e por que você ataca”, explica a pesquisadora.

Volta por cima

O humor é um território em disputa onde há espaço para a luta antirracista. Já nos 1990 foi significativa a mudança na perspectiva de condenação do racismo, a partir do momento em que humoristas negros também participavam a criação das piadas e dos roteiros.

“Eu era um dos donos do programa em que atuava, além de ator, era autor também, tinha domínio sobre as piadas em que atuava. Os comediantes pretos das outras gerações não tinham esse poder. Revendo o programa, vai notar que não me restringia ao papel de bandido, de bêbado ou mendigo. Fui Pelé, Obama, Michael Jackson, encarnei paródia até de personagens da Malu Mader”, disse Helio de La Penã.

Mesmo com o sucesso na TV, e uma postura mais aguda contra o racismo, o humorista diz que naquela época ainda faltava representatividade.

“Creio ter vivido mais casos de racismo fora do ar e quando não era ainda uma pessoa pública conhecida em todo o país. O racismo se mostrava mais pela ausência de outros artistas negros no cenário da TV e do cinema. A melhor forma de acuar o racismo na cultura e nas artes é dando voz e visibilidade aos artistas negros”, comentou.

O cineasta negro Joel Zito Araújo, diretor do longa “O Pai da Rita” em cartaz nos cinemas, escreveu o livro “A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira”, que é o resultado de uma profunda pesquisa nas novelas exibidas no país entre 1963 e 1997. A obra faz uma análise de como os personagens negros eram retratados e como as suas vidas e subjetividades foram invisibilizados nessas telenovelas, muito populares em sua época.

“No Brasil, a ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial foram desejos e metas sociais construídos historicamente para apagar a herança negra africana, ‘a mancha da escravidão’, sendo responsáveis pela dificuldade de grande parcela dos afro-brasileiros em cultivar a sua auto-estima”, diz o cineasta Joel Zito em um trecho da obra.

Leia mais: O nariz e o pregador: “quem te ensinou a se odiar?”

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