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Aquilombação literária

Diante de uma sociedade que nos desumaniza, “Cadernos Negros” tem sido afeto, importante arma contra essa história do “não ser” que nos foi contada. Foi assim 20 anos atrás quando tive contato com o livro e continua assim até hoje

Texto: Akins Kintê | Imagem: Acervo Pessoal

Imagem mostra o poeta Akins Kinte. Ele usa uma camisa listrada (branco e preta) e boné preto. Está com uma das mãos na boca.

3 de junho de 2021

Quando os Racionais MC’s lançaram o disco “Sobrevivendo no Inferno” (1997) eu estava com uns treze anos. Era vendaval e eu folha seca inútil sendo levado cada vez mais para fora de um mundo de possibilidades. Minha realidade enquanto moleque preto, da Zona Norte, filho de pai preso e de mãe limpando banheiro do zoto, era sem compreensão desse mundo racista e que me sufocava.

O final da década de 90 foi mil grau. O disco, com os quatro pretos mais perigosos do Brasil, colocou não apenas eu como a minha geração em contato com os nossos lances de negritude. Esse álbum e o “Cada vez mais preto” (1992), do grupo DMN, são marcos e me fizeram buscar ler livros, entre eles a “Biografia do Malcolm X” e “Negras Raízes”. Assim fui tecendo também uma rede de aconchego, desmanchando a força da incapacidade que silenciosamente nos obrigam a usar.

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Vinte e um anos atrás, lembro como se fosse ontem, colei no lançamento do “Cadernos Negros: Volume 23”, no Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. Roda de poema, Oubi Inaê Kibuko mandando ver na declamação, Cristiane Sobral chegando com sua escrita potente e a arte do Cuti já fazendo morada em mim.

Posso dizer que aquela noite foi mágica. Eu estava com 16 anos e ver aquelas pessoas pretas trocando ideia de progresso, sorrindo, dançando, lendo e lançando livro abriu leques de oportunidades. Não parei de ir no lançamento desta importante antologia. Toda segunda sexta-feira de dezembro as noites são sagradas e certeiras.

Coincidência ou não, dez anos depois, no “Cadernos Negros: Volume 33”, começo a publicar meus poemas e chegar na moral pra fazer parte da família. Eu me alimento dessa literatura, por isso o anseio por colecionar, e falta muito pouco para completar. Adoro reler para o meu pessoal os contos e os poemas.

Essa história de “Cadernos Negros” não começa no ano 2000, com o meu renascimento para a vida, mas em 1978, década importante para o povo preto dos lados de cá, os detentos pretos se agilizando no Carandiru, homens e mulheres pretas organizando o Festival Comunitário Negro Zumbi, militantes fundando o Movimento Negro Unificado (MNU), Cuti publicando seu primeiro livro “Poemas de Carapinha” de forma independente e a publicação do “Cadernos Negros: Volume Um”. Rolou muita água no rio histórico da década de 70.

Já se passaram quatro décadas, 2021, “Cadernos Negros” lança o volume 43 em um ano de muita dificuldade para os brasileiros: Covid-19, isolamento social, fome, chacinas, sumiço de crianças negras, terreiros de Candomblé invadidos, desgoverno, um ano pra ficar marcado na memória dos que sobrevivem. “Cadernos Negros” é esse respiro, oxigena o coração pra gente seguir firme.

Uma antologia que começou nos anos 70, atravessou os tenebrosos 80 e 90, tem aprendido nessa guerra e continua viva, respeitando quem veio antes e cedendo espaço aos que chegam agora. Esmeralda Ribeiro e Marcio Barbosa são os responsáveis por manter os “Cadernos Negros” vivos e sempre atuais.

O volume 43 traz autores e autoras de diversas regiões do Brasil, recheado de poemas que encantam leitores. Com quase 500 páginas, traz a diversidade de 65 escritores; 40 mulheres, marco importante não apenas para o recorte de literatura feminina ou negra, mas por trazer à tona a importância da escrevivência das mulheres pretas.

Manter por 43 anos uma antologia de forma independente não deve ser nada fácil, mas pelo que vemos se faz necessário quando pensamos em aquilombação literária. Diante de uma sociedade que nos desumaniza, “Cadernos Negros” tem sido afeto, importante arma contra essa história do “não ser” que nos foi contada. Foi assim 20 anos atrás quando tive contato com o livro e continua assim até hoje.

Naquele disco dos Racionais MC’s “Escolha o seu Caminho” (1992), de um lado da capa os caras aparecem armados com uma 12 e um 38. No outro, também estão fortemente armados com uns livros. Esse foi o caminho que também preferimos escolher. Se for do seu interesse acompanhar essa trajetória do “Cadernos Negros” e adquirir o novo volume, corra atrás do site do Quilombhoje ou entre em contato com os autores dos livros que trabalham na divulgação da obra de forma independente. Mas corra atrás mesmo porque a edição é limitada. Boa leitura.

Akins Kintê é um poeta, músico e escritor paulistano conhecido por seus versos marcados pela negritude. Em 2020, lançou seu terceiro livro “Muzimba, na Humildade sem Maldade” e também colocou nas ruas o EP “Abrakadabra”. A partir de junho, o multiartista assina mensalmente artigos na editoria de Literatura da Alma Preta Jornalismo. Esperamos que você goste.

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