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Conto | Coaching antirracista

24 de julho de 2020

Anete jamais imaginaria que a onda antirracista pudesse abrir novos rumos profissionais para ela. Uma enxurrada de mensagens aterriza em seu WhatsApp e sua caixa de e-mails. Os textos eram das pessoas brancas do seu círculo com dúvidas da seguinte natureza: “É correto usar o termo preto ou negro?”

Texto: Marilea de Almeida | Imagem: Mayara Almeida do Nascimento

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Anete faz parte da geração de pessoas pretas que durante sua formação acessou programas de ações afirmativas. Colheu frutos das lutas coletivas do Movimento Negro recebendo bolsas para estudar línguas estrangeiras e realizando intercâmbios internacionais. A estudante, oriunda de família pobre, aprendeu alemão, francês e inglês. Na língua germânica, Anete exibe fluência com desenvoltura. Ao mesmo tempo, o treinamento acadêmico permitiu que ela adquirisse um manejo confiante da linguagem e da postura exigida nos embranquecidos círculos universitários.

Desde a iniciação científica até a realização do pós-doutorado na Alemanha, Anete dedicou-se, exclusivamente, a estudar o pensamento do filósofo Wittgenstein. Mas nesse caminhar nem tudo foram flores. Devido à Filosofia ser um espaço branco e masculino, Anete aprendeu que, para sobreviver naquele ambiente, precisava manter-se em silêncio sobre as práticas racistas e sexistas realizadas, de forma recorrente, pelos seus pares. Sem alardes, a fim de mostrar o seu valor, a jovem pesquisadora tornou-se uma máquina de publicar, orgulhando-se da resiliência adquirida. Nesse esforço hercúleo, batalhou um lugar, ainda que à sombra, dentro do seleto círculo de eventos e publicações da filosofia analítica. Fato que a deixava cada vez mais segura sobre o futuro de sua carreira.

O que Anete não contava é que o atual ataque às universidades públicas e ao conhecimento no Brasil, materializado nos cortes de bolsas de pesquisa, provocaria mudanças em sua rota profissional. Melancolicamente, foi obrigada a interromper o pós doutoramento na Universidade Humbold de Berlim. E assim, aos 34 anos, apesar da elevada qualificação acadêmica, desembarca no Galeão trazendo na mala o desemprego.

Se há uma certeza na vida é que ela é repleta de rotas desviantes. Anete jamais imaginaria que a onda antirracista pudesse abrir novos rumos profissionais para ela. Tudo começa mais ou menos assim. Mal tinha desfeito as malas e uma enxurrada de mensagens aterriza em seu WhatsApp e sua caixa de e-mails. Os textos eram das pessoas brancas do seu círculo com dúvidas da seguinte natureza:

– É correto usar o termo preto ou negro?

– Qual a diferença entre racismo, discriminação e preconceito?

– Você teria uma indicação de leitura bem didática sobre feminismo negro?

– Quem criou o conceito de necropolítica? Foi o Silvio Almeida ou Sueli Carneiro?

– Como pessoa branca eu tenho lugar de fala no debate racial?

– Se as raças humanas não existem por que insistir no termo racismo?

– Você poderia dar uma palestra sobre o assassinato do George Floyd?

– É correto derrubar as estátuas dos escravocratas?

Os pedidos se sucedem…

Anete, desejosa de corresponder às expectativas, foi respondendo a avalanche de solicitações. Com efeito, uma vez que seu conhecimento sobre a temática racial não era amplo, passava dias estudando para oferecer devolutivas apropriadas. Tal esforço favoreceu que a inicial fragilidade teórica se transformasse num saber instrumental sobre racismo e seus correlatos.

Como o conhecimento não pagava os boletos que se acumulavam, a pesquisadora desempregada resolveu capitalizar a competência recém adquirida. Sem mais delongas, abriu uma empresa de consultoria para oferecer serviços e produtos às pessoas brancas, que no contexto atual, andam receosas de serem canceladas no debate público pela falta de letramento racial. “As etiquetas raciais mudaram e é preciso atualizar-se”, pensou Anete. Angulada por essa epifania, detalha a missão e os objetivos da empresa:

Ubuntu é uma empresa cujo DNA está alinhado aos valores do antirracismo. Nossa missão consiste em oferecer atendimento personalizado às pessoas brancas que desejam projetar uma imagem de aliadas no combate às desigualdades raciais. Para esse propósito, oferecemos os seguintes serviços: intervenção nas redes sociais — Instagram, Facebook, Linkedin e Twitter; escrita e revisão de textos; treinamento para realização de falas públicas.

Nossa empresa prima pela pluralidade de abordagens. Por isso, entregamos conteúdos antirracistas de acordo com o viés teórico com o qual o cliente deseja ser publicamente reconhecido. Seja ele marxista, pós estruturalista, liberal, feminista, et cetera.

Desde a criação da Ubuntu, Anete tem trabalhado diuturnamente. As demandas não param de chegar. Por conta disso, o empreendimento precisou crescer. Daí, ela convidou dois especialistas na temática racial para dividir a sociedade na empresa com ela.

Apesar da prosperidade, Anete lamenta a falta de tempo. Não se pode ter tudo nessa vida, não é? Agora, nos raros momentos que consegue fazer Hangout com a turma da filosofia analítica, ela é solicitada a falar do assunto que, por força da necessidade, tornou-se especialista. Parece que, enfim, a estudiosa de Wittgenstein encontrou um lugar ao sol.

Em recente entrevista concedida à CNN Brasil, ela detalhou os segredos de um sucesso que emerge em plena crise econômica. “A proximidade com pessoas brancas permitiu que eu percebesse uma demanda de mercado reprimida”, descreve a empreendedora. No close final para câmera, Anete filosofa: “Eu sou porque nós somos.”

Esse texto é fruto de conversas partilhadas, sugestões e revisões de Aaron Jaekel, Anderson de Souza, Camila Matheus da Silva, César Augusto Mendes Cruz, Daniela Vieira, Márcia Cristina Rogério de Almeida, Kleber Valadares, Mayara Almeida do Nascimento, Silvane Silva, Thales Ray, Terra Johari, Vanessa Oliveira e Walquíria Tibúrcio.

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