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Editoras independentes aceleram o crescimento de publicações de pessoas negras

Expansão no número de escritores e escritoras negros e negras publicadas nos últimos anos é resultado de fatores como o barateamento no custo de produção de livros e a maior pressão por diversidade no mercado editorial

Texto: Fernanda Rosário | Edição: Nadine Nascimento I Imagem: Arquivo pessoal/ Kitembo

Imagem ilustra uma feira literária de editoras independentes.

10 de novembro de 2021

Nos últimos anos, o crescimento considerável no número de publicações de livros de autores negros no Brasil se deu, sobretudo, pelo surgimento de editoras independentes e antirracistas que alavacaram a presença de obras com maior diversidade nas prateleiras.

De acordo com Vagner Amaro, um dos fundadores da Malê, editora e produtora cultural, essa mudança no mercado é motivado por um movimento literário que sempre questionou o bloqueio editorial imposto pelas empresas aos autores negros. É também causado pelo reflexo de políticas públicas e sociais que formaram um público universitário pobre e/ou negro interessado em consumir livros de autoria negra. O barateamento no custo de produção de livros é também um dos fatores apontados por Vagner. 

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“O barateamento levou ao surgimento de pequenas editoras e outras iniciativas editoriais voltadas para a publicação da autoria negra, como também a uma percepção do mercado de que as pautas identitárias ganharam força do debate público e formaram um público consumidor interessado em uma literatura produzida por negros, por mulheres, por indígenas e por integrantes da comunidade LGBTQI+”, destaca Amaro.

Juciane Reis, escritora e doutoranda em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pontua que, com projetos intervencionistas e políticos, editoras independentes conseguem causar também impacto social. “O grande potencial dessas editoras é justamente o fato de que elas podem trazer material para um público específico, que não foi tão atendido”, explica.

Já o editor de diversidade da Companhia das Letras, Fernando Baldraia, destaca que, para além dos desdobramentos políticos, a questão financeira também está envolvida. “Em alguma medida, é uma mudança, digamos, natural. O mundo editorial mainstream apenas passou a acompanhar um movimento mais geral, que já ganhou tração há tempos em várias outras esferas da indústria cultural”, pontua.

Iniciativas

Uma pesquisa realizada por Regina Dalcastagné, da Universidade de Brasília (UnB), analisou 692 romances de 383 escritores brasileiros e aponta que 93% dos autores publicados eram brancos de 1965 a 1979. Entre 1990 e 2004, o índice era de 93,9% e, entre 2005 e 2014, o número era de 97,5%.

Mudar esse cenário de publicações tem sido o papel das editoras independentes, como também de experiências como a FlinkSampa, a ‘Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra’, programada para acontecer dos dias 18 a 22 de novembro. Criada em 2013, a festa surgiu como uma reação a baixa ou nenhuma presença de autores negros brasileiros em eventos literários como a Feira de Frankfurt, na Alemanha.

“A Flink veio para cobrir uma lacuna nas festas literárias de todo o Brasil, as mais importantes, que não atendiam a demanda de autores negros. Literatura negra de autoria masculina e feminina não tinham abrangência nessas atividades. Veio a ideia de criar a FlinkSampa para dar uma resposta, talvez, ou para mostrar o quanto os autores negros tem força como pensadores, como escritores, poetas, dramaturgos e tudo mais”, explica Tom Farias, curador e idealizador da Flink, além de escritor finalista do Prêmio Jabuti 2009.

Farias também fala que a Flink, ao mesmo tempo que denuncia o racismo na literatura, promove a divulgação desses autores e estimula que eles continuem produzindo. “Hoje a consciência racial no campo da literatura é bem maior, a autoestima também melhorou bastante e isso tem provocado o surgimento de muitos escritores que estavam engavetados”, conclui.

Vozes negras na literatura

Juciane Reis e seu livro amortalhamento.

O silenciamento provocado pelo racismo também interfere no processo criativo de autores negros | Crédito: Arquivo pessoal de Juciane Reis

A escritora e cantora Karina Limsi, com quatro publicações entre antologias e livros viabilizadas por meio de editais, como o ‘Contos dos que plantam árvores’ (Patuá), diz que, quando entendeu que tinha um material interessante e que valia publicar, pesquisou na internet algumas editoras que costumavam receber originais e procurou ver a que tinha mais a ver com ela.

“A editora em questão, a Patuá, é um lugar de acolhimento de novos autores e que tem conquistado muito espaço no mercado editorial, espaço esse aberto a custa de muito empenho e resistência. No mais, busquei participar de festivais, concursos e editais para continuar publicando”, explica.

Segundo ela, uma das ambiguidades que existe ainda no mercado editorial é em relação ao que colocam como temática que pessoas negras deveriam ou não falar.

“Te chamam pra falar sobre o que aflige a população preta, querem saber o que você pensa, reservam novembro inteiro pra ler você, mas se você tomar pra si o desafio de escrever sobre tudo que diz respeito a ser preto, aí não pode. Eu não me lembro de ter sido convidada a falar sobre os livros que publiquei e sobre os textos que escrevi, por exemplo. Mas todo ano, vai chegando final do segundo semestre, querem saber ‘como é ser uma escritora preta, uma compositora preta, uma artista preta, uma mulher preta’”, ressalta.

Juciane Reis, escritora de três livros publicados este ano, entre eles ‘(Amor)Talhamento’ (Kitembo), viabilizado por um edital e produzido por uma editora independente, também pontua que uma outra complicação é os escritores encontrarem a própria voz literária e se autoautorizarem a escrever.

“Nós também, pessoas negras, precisamos nos autoautorizar a determinadas coisas, autorizar as nossas próprias vozes. A gente tem um silenciamento e um apagamento muito grande externo e, em uma contracorrente a isso, fazemos esses movimentos de nós mesmos sermos aqueles que irão ditar os nossos caminhos e iremos traçar as nossas metas. Então, é muito uma construção de si”, pontua.

A também escritora Juliana Borges recebeu convites que viabilizaram a publicação de seus dois livros. Um deles se chama ‘Encarceramento em massa’ (Jandaíra) e faz parte da coleção Feminismos Plurais, projeto idealizado pela filósofa Djamila Ribeiro e focado em livros com temática antirracista.

“Depois de entrar no mercado editorial como escritora, você começa a ter a percepção de fato das dificuldades para ser publicado e de outras dificuldades que existem também, como de distribuição, de divulgação e até mesmo para se fazer um material de qualidade. A coleção Feminismos Plurais tem toda uma perspectiva de divulgação e de trabalho coletivo, de atuação coletiva, construída pelos autores. Tem também todo um suporte tanto da própria Djamila como da equipe para esses processos de divulgação”, complementa. 

Juliana Borges pontua que a coleção provou para o mercado uma demanda que existe em torno das publicações negras. “Não é verdade que não há interesse nos livros e em uma produção antirracista. Muito pelo contrário. Essa era justamente uma das tecnologias do racismo e dos privilégios da branquitude, que era a principal barreira pra gente ser traduzido e lido”, destaca.

Surgimento de editoras independentes

Rapaz segura livro publicado pela editora Kitembo.

Outra preocupação no momento de publicar uma obra é torná-la acessível ao público-alvo | Crédito: Arquivo pessoal Kitembo

A Editora Malê foi fundada em 2015 por Vagner Amaro e Francisco Jorge, no Rio de Janeiro, para suprir a pouca publicação de autores negros no mercado. “Publicamos cerca de 100 títulos, e mais de 150 autores. Já recebemos o prêmio APCA, fomos finalistas do Prêmio Oceanos e do Jabuti. Por ser uma editora negra, encontramos resistências em diversos setores, mas encontramos também ótimos parceiros que possibilitaram o crescimento da editora”, pontua Vagner Amaro.

A Kitembo Edições Literárias do Futuro é uma editora fundada em 2018 por Israel Neto, Anderson Lima e Aisameque Nguenge, moradores da Brasilândia, Zona Norte de São Paulo. Ela também surge com a proposta de difundir literatura negra, mas especializada nos gêneros de fantasia, afrofuturismo, ficção científica e horror. É a única editora brasileira focada nesse público.

“Nós temos hoje no catálogo 10 livros. Publicamos praticamente 80% na pandemia. A ideia era ser um espaço onde pudéssemos identificar escritores e fomentar também que eles escrevessem esse outro tipo de literatura”, pontua Israel Neto.

Outra preocupação em torno da publicação desses livros, está em possibilitar acessos à leitura deles pelas pessoas negras. “O livro, às vezes, tem um monte de escritor preto publicando, mas o povo preto não lê, porque o livro é caro e não chega. Nós temos esse horizonte de sempre deixar o livro acessível, tanto no valor, quanto em acessos”, comenta Neto.

Fernando Baldraia, da Companhia das Letras, pontua que diversidade também passa por áreas com menor visibilidade, mas fundamentais para uma mudança consistente e susbstantiva no mercado editorial.

“A Companhia tem investido em uma política de contratação de negros em vários de seus departamentos. Mas uma empresa com 35 anos de existência é uma criatura que carrega o peso desses anos. Além disso, algumas atividades editoriais demandam um grau de expertise que a faz fechar-se em casulos e mover-se em círculos bem estreitos. O mundo da tradução é um exemplo. Esse é um esforço editorial que é fundamental, tanto do ponto de vista político, como estético: trazer mais gente negra pro mundo da tradução”, explica.

Avanços são necessários

Ainda são necessários avanços para que haja maior diversidade no mercado literário. A escritora Karina Limsi pontua que é preciso que o processo feito pelas editoras também tenha pessoas negras trabalhando, produzindo e pensando.

“Muitas dessas editoras mais bem intencionadas criam projetos temáticos de valorização da cultura, da linguagem e promovem antologias ou mesmo publicam livros de pretos, enquanto quem senta na cadeira dos grandes editais e concursos literários para julgar sobre o que se lança luz é gente branca, que não vai selecionar textos que falam de ser preto, de ser periférico ou da ascensão, dos recortes de gênero e classe, das relações de violência com o Estado, da interracialidade”, destaca.

Juciane Reis pontua que é “urgente e muito necessário” vitrines também para as obras. “Elas não se vendem sozinhas, a não ser quando você já está consolidado. As obras precisam de veiculação, de mobilidade e exposição. Então, isso também tem que ser feito com muita sensibilidade e muito respeito”, explica.

“As editoras pequenas que estão aí, a maioria na mão de pessoas negras, tem sido importantes nesse sentido, mas não é a única coisa. Nós ainda precisamos de distribuição, nós ainda precisamos de espaço na imprensa”, também pontua Tom Farias.

A escritora Juciane conclui que os avanços observados ainda não cobrem a alta demanda de publicações e as necessidades das pessoas negras . “A gente espera que com essa inserção de autores e autoras negros e negras nesse mercado editorial, tenhamos mais oportunidades”, finaliza. 

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