Akins Kintê escreve toda semana para o Alma Preta um conto periférico. O poeta, autor do livro Muzimba na humildade sem maldade, conta narrativas com personagens e enrendos das bordas das grandes cidades brasileiras.
Era uma roda de partido-alto Zé Mixaria no cavaco, Tico Sem Nada no pandeiro, Chico da Madruga na timba, Maria das Dores improvisava arranhando gostosamente uma faca no prato, Pedrinho versava muito bem no partido alto, Pretinha, Rita e Cassandra de Jesus de Jesus Nada sapateavam ao som do partido alto e tudo isso acontecia na Viela Só Sorriso na Favela Do Recanto. Ali um paraíso e por isso o nome Viela Só Sorriso, mas para se chegar à boca desse beco era preciso atravessar a Ponte do Desespero, subir a Escada do Pecador, atravessar o Beco da Tristeza, passar pela Esquina da Maldade e, ainda por cima, aturar o disse me disse do Boteco do Portuga. E favela tem disso, sempre uma dificuldade peculiar pra se enfrentar e achar, não se sabe aonde pra pôr no peito, um coração resistente.
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Pedrinho, no verso saliente, já procurava graça com Rita, preta bonita de poucas palavras, há pouco comprou uma casa na Viela dos Desejos, frequentadora assídua da Escola de Samba Grêmio Recreativo Sem Mazelas e Avante, dona de um silêncio intrigado. Rita sapateava ao som do samba, mirava certeira o olhar bonito de Pedrinho. Menino vadio de buscar a vida na ponta do dedo, no bico dos lábios, na cara dos olhos e no suor do sexo. Rita, o que se sabe! Nada se sabe! Misteriosa aquela mulher. Na cara de teus olhos um marzão profundo que Pedrinho queria navegar com seu barquinho de fazer felicidade.
Rita sapateou; teu olhar mirava Pedrinho. Ele cantarolou um gracejo pra preta de improviso: Quero mais é morrer nesse beijo/Renascer no teu sonho/Pra brotar em tu alma/Me perder no carinho/Me achar no desejo/E me querer na sua calma.
Ela compreendeu o verso, deixou no ar gostosa dúvida e um sorriso malicioso. Pedrinho não era de se jogar fora. Uma memória de cantarolar samba a noite toda, a mesma que guardara na cachola o mapa da fuga para qualquer transgressão da lei. A roda de samba era uma singela homenagem que Pedrinho prestara para o pai, Seu Chico, o Veinho estava soprando as velas de, nada menos que, sessenta invernos podendo se dizer assim bem dolorido.
Rita mais próxima do malandro mostrava interesse. Ele, vaidoso, cantarolou um Candeia; todos cantaram o refrão. Na Viela tudo era prazer, mas favela não é conto de fadas, o de sempre é aguardar uma tensão. Pedrinho na casa dos trinta, Dona Carola sua mãe fazia par com Seu Chico convivendo juntos mais de 30 anos entre acertos e erros. O filho danou a vida pela investida da querência. Não conseguia, por mais que tentasse, esperar por um dia de pagamento para assanhar um sonho. Aí se deu para uma romântica vida bandida. Rita já era de Pedro e Pedro já era de Rita! Nunca o sorriso fora tão doce, sincero e frágil; coisa igual no coração Pedrinho só sentira na noite em que, cara-a-cara com a morte, na Escada do Pecador levara de um ex-amigo uma covardia, três tiros pelas costas, caiu prostrado no segundo degrau, teus olhos abertos choraram dolorido, nunca acreditara na trairagem, agora pego pelo inoportuno.
Samba vai, samba vem… O menino bebericou no copo da preta Rita uma caipirinha preparada pela sua mãe; as mãos dos dois se entrelaçaram firmes. Quando não, no radinho veio um anúncio de uma visita estreita da lei. A inquietude abafou o sincero som do samba, Pedrinho pensou: “liberdade, um bagulho foda! Toda hora nos escapando por entre as mãos e um pesadelo vem acobertando os sonhos”.
Rita segurou mais firme as mãos de fazer carinho do menino, deu um gole na caipirinha e bebericaram o dois da boca dela. Ele sentiu o coração batucando; era a hora dura da realidade; como o menino queria eternizar o beijo pediu a ela que aguardasse ali na Viela Só Sorriso e se foi. Sabia qual era da investida dos samangos e se picou por entre a mata onde tinha total proteção de seu Santo de cabeça.
Pedrinho caminhou por detrás do Grêmio Recreativo Sem Mazelas e Avante. As mãos de fazer carinho e batucar pandeiro portavam agora uma metade de noventa, pronta pra afugentar qualquer tentativa de furto à sua liberdade. Na boca do mato seu coração acelerou, um menino viera avisá-lo que a dona justa encarcara no seu coroinha. Sabia que seu pai não o cagüetaria nem a pau. Conhecedor de torturas disgramentas de delegacia, mas os cana-dura vieram na disposição e cuidadosos na manha de servir o Estado. Foram no ponto fraco; encabularam maldade com Dona Carola. Covardia grande! Bagunça com face de sua mãe; Rita observava tudo à distância; o coração também batucava um surdo triste, logo agora que o peito semeara um amor de fazer história.
Pedrinho não podia deixar sua mãe pagar sua pena! Assim pensou, e voltou. Vestia apenas uma bermuda, as mãos para o alto, teu olhar mirou Rita, viu se agigantar uma lágrima no rosto da menina e inundar a Viela Só Sorriso. Ele segurou o quanto pôde a emoção; o pai, durão, nada disse; um olhar comprometedor de amizade se eternizou enquanto dona Carola segurava uma tristeza visível, seu filho algemado posto no fundo do camburão ia pagar por um tempo à sociedade a qual fez um baita incômodo: furtos e arrombo nos cofres públicos e outros bucadinhos de homicídios. Ia Pedrinho descendo a Ladeira da Frustração morar no fundo de uma Cela.