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Exclusivo: Partidos políticos podem ser culpados por burlar autodeclaração de candidatos

Frei Davi, integrante da Comissão de Igualdade Racial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), afirma que os partidos podem ter induzido a troca do quesito raça/cor de candidatos

A imagem é uma ilustração onde um homem vestido com terno, simulando um líder partidário, distribui para uma fila de homens brancos várias máscaras com rostos pretos e pardos para sinalizar a mudança na autoceclaração de candidatos

Foto: Imagem: Vinícius de Araújo/Alma Preta Jornalismo

17 de outubro de 2022

“Pode ser que os partidos políticos burlaram, sim, a autodeclaração junto ao TSE”, disse Frei Davi, membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial do Tribunal Superior Eleitoral. Líder da Educafro, ele afirmou que, após algumas reuniões, ficou evidente que alguns partidos permitiram que seus candidatos alterassem a autodeclaração para garantir a eleição. Segundo ele, isso foi percebido em partidos de direita, centro e também de esquerda. 

Vera Lúcia, advogada eleitoral que compõe a lista tríplice para vaga de ministra do TSE, acredita que a nova legislação de distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral seja um dos motivos, mas o principal é a manutenção do poder por uma “elite branca que quer, a todo custo, se apropriar das ações afirmativas para benefício próprio”. 

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As regras estipuladas pela Corte preveem uma ação afirmativa para os candidatos pretos e pardos. Os partidos passam a receber verbas proporcionais aos número de candidatos que apresentarem para o pleito. Também de acordo com a nova legislação, os votos a candidatas de pessoas negras serão contabilizados em dobro para o cálculo de distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral para essas eleições, até 2030.

Advogada e mestranda em direito pela FGV, Agatha Miranda entende a postura das legendas e de candidatos que alteraram a autodeclaração para benefício próprio como criminosa. “Ainda que não seja praticado por uma pessoa física, o ato de inserir em uma declaração falsa ou diversa da que deveria ser escrita no documento pode ser considerado como crime de falsidade ideológica”.

Para ela, a autodeclaração exige que os partidos questionem os candidatos para o preenchimento correto da informação. “É criminoso, lamentável e antiético. A gente acaba por pagar a conta do que os brancos e a branquitude fazem de maneira irresponsável com os direitos conquistados a partir da luta do movimento negro”.

Sheila Carvalho, advogada e integrante da Coalizão Negra por Direitos, acredita que as legendas e os candidatos devem ser responsabilizados. “A gente pode falar de anulação dos votos. A justiça eleitoral tem o dever de fazer investigação por fraude do que aconteceu. Na esfera eleitoral o dano já está feito, independentemente dos candidatos serem responsáveis ou não pela fraude, são candidaturas que fraudaram e tem que ser responsabilizadas e penalizadas pela justiça eleitoral”. 

A Comissão de Promoção da Igualdade Racial do Tribunal Superior Eleitoral tem encontrado casos fraudulentos dentro dos partidos, inclusive situações respaldadas pelas legendas. Para explicar a situação, Frei David deu um exemplo concreto dentro do PT do Paraná. De acordo com ele, um candidato socialmente visto como branco tinha recebido grande parcela do recurso destinado aos candidatos negros ao se declarar pardo. Houve então uma série de denúncias que levaram o candidato a devolter o recurso, que foi redistribuido igualitariamente entre os negros. 

Outro exemplo de possível fraude, segundo membros da Comissão, é o do atual candidato ao governo da Bahia, ACM Neto (União), que se autodeclara como pardo e já chegou a receber R$ 47 milhões do Fundo Eleitoral, parte desse recurso pode ter sido destinado ao investimento às pessoas negras. A Alma Preta Jornalismo foi o primeiro veículo midiático a denunciar esse caso. A Comissão de Promoção de Igualdade Racial do TSE espera que ACM Neto também devolva a verba destinada a candidaturas negras recebida por ele. 

A reportagem entrou em contato com a equipe de ACM Neto para saber se o candidato poderá devolver parte dos recursos que podem ter sido disponibilizados para pessoas negras, mas não obteve respostas. A equipe também não informou se foi contactada pelo partido União Brasil para falar sobre autodeclaração.   

 

Thiago Paes

Thiago Paes, candidato a deputado federal por Pernambuco pelo Partido Liberal (PL), se autodeclarou branco em 2018 e no início da campanha de 2022, pardo. O partido alterou novamente para branco após questionamento da reportagem | Imagem: Divulgação

Candidatos desconhecem a própria autodeclaração 

Levantamento feito pela Alma Preta Jornalismo mostrou que 6.295 candidatos participaram das disputas de 2018 e 2020 e, desse total, 1.348 alteraram a autodeclaração de cor, ou seja, 1 em cada 5 candidatos. A maioria dos candidatos, em 551 dos casos, foi de branco para pardo. A equipe  entrou em contato com algumas dessas pessoas, que em alguns casos, quando questionadas, demonstram desconhecer a informação.

Thiago Paes, candidato a deputado federal por Pernambuco pelo Partido Liberal (PL), se autodeclarou branco em 2018 e no início da campanha de 2022 a identificação do candidato sinalizava como pardo. Ele questionou o partido, que alegou engano, e pediu a mudança junto ao TSE. Hoje, ele aparece novamente registrado como branco.

Candidata a deputada federal pelo Partido Social Cristão (PSC), Regininha Duarte, depois de interrogada pela reportagem dos motivos da mudança de autodeclaração entre as duas campanhas, demonstrou surpresa ao saber da descrição como parda. “Foi o partido. Eu não fiz nenhuma mudança não. Eu não sou parda não, minhas fotos são nítidas que não sou negra”.

Regina Duarte recebeu R$ 70 mil do partido. Ela diz acreditar que não tenha recebido recursos proporcionais por constar como uma candidata parda, mas, simm por ser uma mulher. Ela alega que as outras colegas da legenda receberam a mesma quantia. “Eu acho que se fosse como parda, eu deveria receber mais”. Entre os candidatos ouvidos, foi possível perceber falta de clareza sobre os recursos recebidos das legendas, com a falta de conhecimento, por parte da maioria, sobre o recebimento ou não de verba de candidaturas pretas e pardas.

Leia mais: Deputadas eleitas apostam no aquilombamento para enfrentar conservadorismo

Carlos Gomes

Antônio Carlos Gomes da Silva, o Carlos Gomes (Republicanos), alterou a identificação de cor de branco para pardo entre 2018 e 2022 por sua própria decisão | Imagem: ALRS

Partidos escolhem os candidatos que recebem recursos

Além da possibilidade das legendas terem burlado a autodeclaração dos candidatos, Frei David também aponta que os partidos políticos já haviam definido, antes da chegada da verba, quais os candidatos seriam agraciados com os recursos destinados para pretos e pardos. Pela regra, o modo como esses valores são distribuídos fica a critério das legendas. 

“Nós fizemos uma reunião com todos os partidos sobre essa questão [da autodeclaração de candidatos e distribuição de verbas]cerca de 30 dias antes do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, assumir o seu posto”, disse Frei David. 

O Presidente do Republicanos e eleito deputado federal pelo Rio Grande do Sul, Antonio Carlos da Silva, destaca a competitividade das candidaturas, quando questionado sobre a destinação de recursos para pretos e pardos. 

“Eu penso que os recursos deveriam ser direcionados por viabilidade, porque quando se é obrigado a investir em candidatos só pela cor da pele e às vezes esse candidato que recebeu um certo valor pela cor da pele não tem um desempenho tão grande, e às vezes pode conotar até que seja uma laranja porque recebeu um valor incompatível com a votação que ele possa ter nas urnas”. 

Antonio Carlos da Silva alterou a identificação de cor de branco para pardo entre 2018 e 2022. Ele diz que não havia sido questionado pela legenda no momento do registro nas demais campanhas e agora pediu a mudança. 

“Aí uma vez que foi determinado essas cotas, eu penso que cada um tem que assumir aquilo, não que eu me identifico, mas como realmente eu sou e aqui que está na minha certidão. Então eu falei, ‘corrige isso porque na verdade eu tenho que assumir aquilo que está na minha certidão de nascimento’. Mas não que eu quisesse ser branco, de maneira alguma, sempre fui pardo, que para preto não difere muito. É que das outras vezes que me registaram não me perguntaram sobre isso”.

Apesar de ele não concordar com a política, diz que é a ferramenta existente para o momento e que recebeu recursos destinados para candidatos pretos e pardos. Ao todo, recebeu R$1,7 milhão do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FECF), que pode incluir verbas para pessoas negras . “Eu não gostaria de ser visto apenas exclusivamente pela cor da minha pele e, sim, por aquilo que efetivamente eu posso render nas urnas e efetivamente levar de contribuição para o meu partido, para o meu estado e para o meu país. Mas enquanto isso não for visto, é o que nós temos para o momento”. 

Como acontece a autodeclaração

O TSE passou a coletar informações de raça dos candidatos em 2014. A coleta se dá pelo preenchimento da autodeclaração racial do Formulário de Registro de Candidatura. Muitas vezes, porém, o preenchimento dos documentos fica a cargo do próprio partido.

Neste ano, pela primeira vez em uma eleição geral, pedidos de registro de candidatura de pessoas que se autodeclaram negras superaram a de brancos. Conforme dados do TSE, 48,19% dos candidatos se declaram brancos, enquanto os negros (soma de pardos e pretos) são 50,23%. Esta mesma taxa foi de 46,56% em 2018. Já em 2014, quando o dado foi aferido pela primeira vez, 44,26%.

Em 2020, o TSE decidiu que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar ao pleito. O entendimento foi firmado após questionamento da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ). Ela também pedia o estabelecimento de cotas para candidaturas de pessoas pretas, como ocorre com mulheres, mas o Plenário respondeu negativamente.

O TSE segue a definição do IBGE e considera os candidatos negros como a soma de todos pretos e pardos. Parte dos políticos, contudo, têm uma percepção diferente dos órgãos oficiais. Felipe de Oliveira, candidato a deputado federal pelo União Brasil, alterou a autodeclaração de branco para pardo. Ele se descreve como um homem pardo, e não se considera como negro.  Ele entende a política como importante, mas reforça que apenas alguns candidatos das legendas são beneficiados pela política. “Eu acho importante, mas ela não é feita, né? Ela é escolhida a dedo. Isso aí deixa um buraco lá na legislação. Eu, por exemplo, não sou beneficiado”. 

Ministro Benedito Gonçalvez

Ministro Benedito Gonçalvez, responsável por criar a Comissão de Igualdade Racial do TSE. Imagem: Adbias Pineiro/TSE

Entendimento da Comissão

Criada no dia 8 de março por meio da Portaria do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nº 230/2022, a Comissão de Promoção de Igualdade Racial da Corte é conduzida pelo ministro Benedito Gonçalves, coordenador institucional da equipe. 

Marlon Reis, advogado e relator da Comissão de Promoção da Igualdade Racial do TSE, ressaltou que existe uma urgência de bancas de heteroidentificação nos partidos políticos. Para ele, as legendas precisam ter essa responsabilidade e é importante que se trabalhe tais questões no âmbito da Justiça Eleitoral, para que essas candidaturas passem por um duplo crivo e se comprove a origem negra e de matriz africana dos futuros parlamentares. 

“É preciso ter clareza que o critério expresso pela norma é o critério fenotípico, mas não qualquer critério. O objetivo é fortalecer a candidatura de pessoas descendentes de pessoas escravizadas cujos ancestrais tem origem na África. Não é apenas a cor da pele que vale, pois existem etnias que têm uma tonalidade de pele escura sem ter nenhuma origem africana”, comentou Marlon.

Reis explicou que o objetivo dessas politicas públicas afirmativas, como o financiamento especial, seriam reduzir, ainda que tardiamente, os fortes impactos da escravidão no Brasil. “Qualquer pessoa que não tem traços fenotípicos de matriz africana não está contemplada pela norma”, concluiu. 

De acordo com membros do grupo, o debate sobre a implantação de bancas de heteroidentificação é traçado em diversas reuniões e acredita-se que uma legislação pode ser definida de agora em diante. Para Marlon, nas próximas eleições isso já pode estar normatizado. 

Punições e fiscalização de fraudes

A advogada Vera Lúcia disse à reportagem que ainda não existe punição do ponto de vista da Justiça Eleitoral para casos de pessoas socialmente não-negras se autodeclararem como negras. Vera, que é baiana, considerou que o caso de ACM Neto é uma evidência de que as políticas afirmativas para a população negra “estão sendo usurpadas pela branquitude”. 

Para o a Comissão de Igualdade Racial caberia a cada partido a fiscalização dos seus concorrentes, e a Justiça Eleitoral seria responsável por estabelecer as normativas para que não haja fraudes. No entanto, qualquer lei eleitoral deve ser votada e aprovada não apenas pelo Judiciário, como também pelo Plenário do Congresso Nacional. 

“O TSE tem muito respeito e segue os protocolos estipulados pelo Congresso Nacional. Nós chegamos a participar de várias Comissões e audiências públicas que debateram esse assunto [da divisão do Fundo Eleitoral e a autodeclaração dos candidatos], mas a pauta infelizmente não seguia adiante no Congresso. Tivemos pouca incidência política nesse sentido”, expôs Frei David. 

O ativista aponta que o momento de reagir às candidaturas por conveniência é agora, antes da posse do novo governo, porque “se formos deixar passar o ano dificilmente a gente vai conseguir pautar esse assunto novamente”. E conclui: “A sociedade branca também precisa se envolver e votar em candidatos verdadeiramente negros, como uma forma de reparação histórica, já que as pessoas negras sempre votaram em políticos brancos”. 

Em visita ao Tribunal em agosto deste ano, Henrique Neves, advogado e ex-ministro da Corte disse à Alma Preta Jornalismo que, em casos de possíveis fraudes nas declarações raciais, o Tribunal Superior Eleitoral só pode se manifestar quando há um grande número de denúncias por parte da sociedade e de filiados aos partidos políticos. A Comissão de Igualdade Racial faz um apelo junto à sociedade e aos membros da política institucional que se denuncie casos de oportunismo perante o quesito raça/cor de candidatos e parlamentares. 

A reportagem identificou a existência de um canal do próprio TSE onde pode-se fazer denúncias, tanto anonimamente, como não. Este canal está vinculado à Corregedoria-geral e pode ser acessado por qualquer pessoa. De acordo com o site, a depender da natureza da irregularidade que pretende comunicar, pode-se adotar procedimentos diversos para o registro das denúncias. As denúncias podem ser feitas pelo site

Gabriela Cruz

Gabriela Cruz, presidente do Tucanafro Nacional (núcleo negro do PSDB), repudia as candidaturas afroconvenientes | Imagem: Reprodução/Youtube

Posição dos partidos

A reportagem pediu um posicionamento para todos os partidos políticos para checar se houve alguma orientação para a mudança de autodeclaração e para entender os critérios das legendas para definir quais os candidatos pretos e pardos receberiam recursos. 

Em resposta à reportagem, o PSTU sinalizou ter “orgulho de ser referência na luta do povo negro e ser sempre um dos partidos com mais candidaturas negras e femininas, mesmo antes da lei de cotas e do tema racial ser critério de divisão dos recursos do fundo eleitoral”. O partido ainda diz repudiar “quem se utiliza de maneira oportunista das pautas e das lutas dos setores oprimidos.

O PCB afirmou que não houve qualquer orientação por parte da legenda e que não se identificou “ações fraudulentas nesse sentido dentro do partido”.

O Podemos declarou que “a especificação das autodeclarações é uma questão legal e o partido deve respeitar as declarações feitas individualmente”. Já o Progressistas disse que não identifica esse comportamento [de mudança no quesito raça/cor] nos seus candidatos. 

O PTB informou que todas as lideranças do partido foram instruídas a respeitarem a autodeclaração de pretos e pardos, mas que esta é uma questão pessoal.  

O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, ressaltou que “não pode instalar um tribunal racial” para garantir que as pessoas autodeclaradas sejam negras ou não.

Em nota, o PSOL apontou que “Não existe qualquer orientação partidária sobre autodeclaração e, em alguns estados, foram organizadas comissões de acompanhamento, quando se julgou necessário”. A legenda também apontou que há um incentivo para a participação de pessoas negras nas eleições e nos processos internos dos partidos.

O MDB enfatizou não ter orientado os candidatos sobre o preenchimento de informações sobre autodeclaração, disse que a distribuição de recursos atendeu às demandas dos diretórios estaduais e afirmou não fazer qualquer fiscalização. “O órgão fiscalizador das eleições é o Ministério Público Eleitoral, e quem julga os casos é a Justiça Eleitoral. O MDB respeita as decisões judiciais, e o devido processo legal de acordo com as regras da Constituição de 1988”.

A assessoria do PSD informou que as candidaturas são definidas nas instâncias partidárias estaduais (e distrital). As informações sobre as candidaturas são prestadas pelos(as) candidatos(as) à Justiça Eleitoral.

Gabriela Cruz, presidente do Tucanafro, núcleo negro do PSDB, repudiou as candidaturas afroconvenientes que, segundo ela, cresceram exponencialmente com a criação do Fundo Eleitoral. No entanto, ela disse que, hoje, os partidos ficam impossibilitados de impedir a autodeclaração de alguém. 

“O TSE precisa fazer uma campanha nacional e instaurar bancas de heteroidentificação. Precisa existir comissões dentro de todos os partidos e uma ampla discussão para aprimorar as regras de autodeclaração”, disse Gabriela.

As demais legendas foram procuradas e não se posicionaram até a conclusão desta reportagem.

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