Por: Fernanda Rosário
“Ficamos pensando sobre privilégio branco, porque, na mesma semana em que um catador de material reciclável morreu no Rio de Janeiro com um pedaço de madeira confundido com um fuzil, diversos bolsonaristas entraram até com bombas nos espaços dos Três Poderes, em Brasília, sem que fossem imediatamente impedidos”. É o que comenta Simone Nascimento, coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) e co-deputada estadual de São Paulo (PSOL).
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Diversas imagens circulam nas mídias sobre o ataque de extremistas apoiadores de Jair Bolsonaro e geraram indignação nacional, além de críticas sobre o tratamento diferenciado observado pelas forças de segurança pública do Distrito Federal quando comparado ao tratamento policial que é dado em outras situações no país.
Alguns dos vídeos publicados mostram carros da Polícia Militar do Distrito Federal escoltando centenas de extremistas bolsonaristas até os prédios públicos da Praça dos Três Poderes, além de vídeos de ataques a policiais e seus cavalos e destruição ao invadirem os prédios públicos do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto. Enquanto isso, há vídeos de PMs do DF tirando foto e conversando com os invasores. Veja abaixo:
“Nas imagens de transmissões ao vivo, diversas lideranças do movimento golpista e figuras públicas do movimento golpista brancas tiveram um tratamento brando da polícia enquanto caminhavam até os Três Poderes. Enquanto depredavam tudo, não foram coibidas imediatamente pelo efetivo policial que estava presente”, destaca a coordenadora nacional do MNU Simone Nascimento.
Maria José Menezes, integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, explica que o que aconteceu no último domingo (8) em Brasília é uma demonstração da presença do privilégio branco com toda a sua força, considerando que o “bolsonarismo é praticado, principalmente, por homens e mulheres que na sua quase totalidade são pessoas brancas”.
A integrante da Marcha das Mulheres Negras pontua que a situação é injusta porque, de um lado, a impunidade beneficia aqueles que causam mal à sociedade, ao patrimônio público e que estão sempre livres da lei e, do outro lado, está a classe trabalhadora majoritariamente preta, sempre reprimida de uma forma muito violenta.
“A impunidade é histórica neste país desde os tempos do Brasil Império com todas as perversidades de um regime escravista, mas também está na atualidade. No século passado, vivenciamos duas ditaduras, sendo a última uma ditadura civil militar em que aconteceu todas as atrocidades. Não houve punição para isso assim como não há punição para os agentes públicos que cometem assassinatos sistematicamente nas periferias e que matam milhares de jovens negros e negras no país inteiro”, ressalta Maria José Menezes.
A co-deputada Simone Nascimento acrescenta que falar de privilégio branco é falar de um país em que a polícia entra para matar em operações em territórios negros. “Afinal, esse é o mesmo país que vê cotidianamente operações policiais em territórios negros e promovem chacinas: é o caso de Jacarezinho, Gamboa e Paraisópolis”.
Em 2019, em Paraisópolis (zona sul da capital paulista), nove adolescentes foram mortos durante uma operação da Polícia Militar que encurralou participantes de um baile funk com bombas e tiros. Em 2021, uma operação da Polícia Civil do RJ contra o tráfico de drogas no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, deixou 28 pessoas mortas. Em 2022, três jovens negros morreram após serem baleadas em uma ação da Polícia Militar, na comunidade Solar do Unhão, que fica na região da Gamboa, em Salvador.
“Foi um tratamento desumano que não desejamos a nenhum território, mas nos impressiona a diferença de tratamento por parte da mesma instituição quando o patrimônio público foi destruído nos Três Poderes. Não nos resta dúvidas de que esse tratamento foi dado aos adolescentes de Paraisópolis porque eram negros e periféricos, porque nossa cultura e atos são marginalizados”, comenta Simone Nascimento.
Regina Lúcia dos Santos, coordenadora estadual do MNU-SP, ainda acrescenta que se não fossem brancos os extremistas bolsonaristas, “teriam sido recebidos a bala, bomba de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, gás de pimenta e não teriam conseguido adentrar em nenhum dos espaços”.
Ataques aos Três Poderes foi terrorismo
A Lei Nº 13.260, de março de 2016, classifica o terrorismo como a prática provocada por um ou mais indivíduos “com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Entre os atos de terrorismo previstos na lei, está “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”, além de “atentar contra a vida ou a integridade física de uma pessoa”.
Segundo a norma, “o disposto não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”.
Informações apuradas pelo Uol, também revelam opiniões de advogados que consideram que o conceito sociológico e político de terrorismo poderia ser aplicado aos atos em Brasília, mas que a legislação nacional não poderia ser adotada para enquadrar os atos golpistas.
Para Simone Nascimento, os ataques aos Três Poderes em Brasília no último domingo (8) pode ser chamado de um ataque terrorista, porque “estão fazendo uma ação de violência política, golpista, pois não respeitaram o resultado das últimas eleições”. “Estão tentando impor sua vontade através do terror, destruindo o espaço físico dos Três Poderes da República”, destaca.
A coordenadora estadual do MNU-SP Regina Lúcia dos Santos vai no mesmo sentido à medida em “que são atos terroristas, porque estão atacando as estruturas do Estado tentando pôr fim à ‘democracia brasileira’”.
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Enfrentamento ao privilégio branco
Para a coordenadora nacional do MNU Simone Nascimento, para se fazer um enfrentamento ao privilégio branco que se encontra nas forças de segurança pública brasileira, em primeiro lugar, é necessário reconhecer que o sistema de justiça no Brasil perpetua assimetrias e desigualdades raciais.
“É essa estrutura racista que faz com o cerceamento do ir e vir da população negra seja carregado de enquadros policiais, repressão e morte. Foi por esse cotidiano que a população negra vive é que assistimos aos atos golpistas indignados com o tratamento dado aos golpistas, pois sabemos que transitar livremente por esses espaços de poder é sempre difícil, imagine depredá-los? Fazer isso custaria aos negros brasileiros mais que a responsabilidade criminal, pagaríamos com nossas próprias vidas”, comenta.
Ver essa foto no InstagramUma publicação compartilhada por Alma Preta Jornalismo (@almapretajornalismo)
Maria José Menezes acrescenta que é necessário mudar a cara e a lógica da justiça. “O nosso sistema de justiça é também composto por aqueles que são privilegiados. A estrutura do estado brasileiro está nas mãos deles e delas, então é uma justiça branca, racista, elitista, misógina, LGBTQIA+fóbica. Tudo isso atendendo objetivamente a um sistema que é o capitalismo”.
A integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo ressalta que é impossível sobreviver em um mundo em que a concentração de renda seja o que rege todas as relações, “Então mudar essa lógica é de fato o grande desafio da sociedade brasileira. E o nosso sonho e a nossa luta é também para que não sejamos regidos por um sistema de acumulação de privilégio para alguns e de morte e de privações para tantos. Enfim, mudar a cara e a agenda dos governos para que estes atuem no combate às desigualdades geradas pelo racismo já é um começo”, ressalta.
Simone Nascimento finaliza que, diante do ocorrido em Brasília, não se pode permitir anistia a nenhum golpista. “É urgente que todos os que são responsáveis pelos atos de golpismo e destruição dos espaços físicos dos Três Poderes sejam responsabilizados e punidos”.
Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública garante que “não haverá conivência com o crime e que todos os responsáveis responderão na forma da Lei”. Cerca de 1500 pessoas envolvidas no ataque foram foram detidas após os ataques terroristas, segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino.
“Logo, podemos dizer que golpistas, terroristas e criminosos em geral não obtiveram êxito nos seus intentos de ruptura da lei, da legalidade”, afirmou o ministro em coletiva na última segunda-feira (9).
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