Mais de 500 organizações do movimento negro e da sociedade civil organizada assinaram uma carta em apoio à aprovação urgente do Projeto de Lei 1.958/2021, que visa garantir e ampliar a política de cotas raciais no serviço público. A proposta, já aprovada no Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados, busca elevar o percentual de vagas reservadas para pessoas negras de 20% para 30% e incluir indígenas e quilombolas no sistema.
O projeto é aguardado para votação ainda este mês, com expectativa de sanção pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em novembro, o mês da Consciência Negra.
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Em entrevista à Alma Preta, Beatriz Lourenço, diretora de Incidência Política e Litigância Estratégica do Instituto de Referência Negra Peregum, enfatiza que a ampliação das cotas e sua continuidade são essenciais para combater a desigualdade racial no funcionalismo público.
“É importante dizer que a avaliação que a gente tem hoje sobre as cotas é que elas dão certo, elas são uma política eficiente. Mas a desproporção racial de negros e brancos em cargos públicos é tão grande, que na quantidade que foi determinada, de 20%, ela é incapaz de resolver esse problema a curto prazo”, argumenta Lourenço.
Dados apresentados no documento indicam que, entre 2013 e 2019, o percentual de servidores negros no setor público aumentou de 28% para apenas 30%, avanço considerado insuficiente. Além disso, o projeto busca corrigir distorções, como o fracionamento de vagas em concursos, que limitam a efetividade da política de cotas.
A proposta também incorpora medidas para garantir a implementação e fiscalização da lei, um ponto apontado por Lourenço: “Nós precisamos reafirmar os nossos mecanismos de fiscalização de cotas raciais no Brasil. A gente precisa reafirmar a necessidade das bancas de heteroidentificação, a necessidade de que os órgãos públicos prestem contas em relação à aplicação da política”, declara a advogada, ressaltando que sem esses mecanismos, a efetividade da lei pode ser enfraquecida.
Representatividade negra no funcionalismo público
Outro aspecto levantado é a importância da representatividade para a legitimidade do serviço público. Pesquisa do Datafolha revelou que 71% dos brasileiros acreditam que uma representação mais diversa contribuiria para aumentar a confiança no funcionalismo público.
Lourenço reforça essa visão ao observar que a política de cotas permite que o quadro de servidores represente melhor a população. “Esse avanço é importante para garantir um serviço público com mais cara do que é o povo brasileiro”, comenta.
Para as organizações, a aprovação do projeto sem alterações é urgente, já que a política de cotas atualmente se apoia em uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), emitida em resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7654, apresentada pelo PSOL e Rede Sustentabilidade. A decisão permite a validade da reserva de vagas até que uma nova lei seja aprovada.
Lourenço alerta sobre os riscos de uma sustentação judicial provisória: “O que sustenta uma política pública não é uma determinação judicial, é uma lei. Hoje, a lei está sustentada apenas por uma determinação judicial, que é uma vitória importante dos movimentos sociais, mas também é arriscada”.
A ampliação de 30% proposta no projeto é apontada como fundamental para acelerar a equidade racial no funcionalismo. Segundo projeções, a atual reserva de 20% levaria até 2060 para garantir ao menos 48% de servidores negros.
“Garantir a ampliação quer dizer a diminuição desse tempo para que a gente finalmente alcance a equidade racial nos cargos públicos no Brasil, e isso é uma coisa muito importante”, afirma Lourenço, reforçando a importância da inclusão de indígenas e quilombolas, grupos que historicamente não foram contemplados por políticas de ação afirmativa no serviço público.
Cotas raciais enfrentam barreiras políticas
No entanto, o projeto enfrenta resistência de parlamentares e grupos contrários à política de cotas raciais, alguns dos quais defendem cotas sociais em substituição. As organizações lembram a herança de Abdias Nascimento, ativista e intelectual pioneiro da luta antirracista, ao defenderem que as ações afirmativas são fundamentais para a promoção da igualdade de oportunidades no Brasil.
“A política de cotas é baseada na produção de dados que mostram que negros e brancos não acessam educação, saúde ou nenhuma política pública da mesma forma, e isso se dá também nas universidades e nas carreiras públicas”, destaca Lourenço, enfatizando a importância de se manter a política de cotas raciais no contexto de um país de maioria negra e profundamente desigual.
Para Beatriz e os movimentos sociais, garantir a aprovação do PL 1.958/2021 é uma questão de justiça histórica e de fortalecimento da democracia. “Enquanto o Brasil for um país desigual, que submete a maioria de sua população a condições terríveis de vida, estamos longe de alcançar o desenvolvimento real”, observa.
Futuro das cotas raciais no serviço público
Ela ainda destaca a necessidade de investimento na capacitação e preparação da população negra para o serviço público, como é o caso do programa Esperança Garcia, coordenado pelo Instituto Peregum em parceria com a Advocacia-Geral da União (AGU), que oferece bolsas e apoio psicológico para candidatos negros que desejam ingressar na advocacia pública.
O futuro das cotas raciais no serviço público dependerá, portanto, da articulação política e da mobilização da sociedade civil para sensibilizar o Congresso. “Temos certeza absoluta que a única coisa que pode nos garantir é a mobilização, o compromisso dos parlamentares a partir de uma mobilização pública e coletiva dos setores que entendem que as cotas raciais devem ser defendidas”, conclui a diretora do Peregum, confiante de que a continuidade da política afirmativa fortalecerá um Brasil mais inclusivo e representativo.