PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Cultura é clima: justiça climática e racial nas veias abertas das nossas casas de farinha

Cultura é clima porque é no corpo das celebrações, das danças, das comidas partilhadas e das memórias preservadas que se protege o território
Imagem mostra uma performance artística.

Imagem mostra uma performance artística.

— Barbara Vale/CBJC

Por: Noranathan (Norah Costa)

“Licença as que vieram antes de mim

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

As minhas atuais 

E as minhas futuras”

Sou educadora popular, artivista e cientista, uma mulher preta da Amazônia em uma cidade que está sendo tomada e devastada pela soja e pelo sertanejo. Santarém é atravessada pela BR-163 onde toda a soja da Cargill é escoada, assim como nossas histórias, alegrias e traumas. Filha do Nonato, professor, engenheiro e quilombola, e Rose Costa, artesã, ativista na cultura e cabocla, sempre carreguei comigo a importância da educação e da arte. Demarcar o meu lugar como o primeiro ato desse texto é reafirmar todo o DNA que circula nas minhas células e como quem veio antes de mim ainda tem o poder de reflorestar lugares onde a monocultura do capitalismo e as mãos invisíveis do colonizador nos assassinam todos os dias.

Cresci nos grandes festivais de interior. Minha mãe, uma das mais brilhantes artesãs das várzeas, era a estilista responsável pela roupa das rainhas. Tinha a roupa da rainha do jerimum com sementes coladas em um vestido enorme com a aba bem rodada. A Rainha da Laranja — que eu e meu irmão passamos três meses chupando laranja todo dia — tenho imunidade até hoje.

O vestido lindíssimo com farinha de tapioca e farinha d ‘água para a rainha da Farinha de Mandioca. E o meu preferido: a Rainha do Pirarucu, com um vestido de sereia com escamas do pescoço até a cauda, que se arrastava no chão.  

Eu sei o valor da comida e da arte como explosão de sentimentos, quando se olha cada detalhe de uma obra, ainda mais de matérias-primas que estão presentes no nosso dia a dia. Cultura é clima porque é no corpo das celebrações, das danças, das comidas partilhadas e das memórias preservadas que se protege o território. Já que quem detém a memória, detém o poder — e bem alimentados estamos nutridos para qualquer guerra. 

Os festivais de colheita são expressões potentes dessa relação entre cultura e clima. No Festival do Açaí, realizado na comunidade quilombola de Murumurutuba em Santarém, há a celebração não apenas do fruto, mas do saber quilombola, do tempo, da natureza e a força da agricultura familiar. O festival da farinha na comunidade do Cucurunã nos ensina que a casa de farinha é uma tecnologia ancestral e que todos os subprodutos da mandioca são resultado de Inteligências Atemporais (IA) do nosso matoverso e das biotecnologias ancestrais sagradas e oralizadas, já que nem tudo é explicado com palavras ou cálculos matemáticos, tudo aqui também é encantaria. 

Esses festivais vão muito além do entretenimento. Eles estão enraizados na agricultura, no bem viver e no fortalecimento das identidades coletivas. Celebrar a colheita é celebrar todos os ciclos da vida, sendo parte deles e não como seres extraordinários que não precisam de um ecossistema inteiro para sobreviver.

Cultura é também uma forma de denunciar a desigualdade ambiental e a violência histórica contra corpos racializados e territórios marginalizados. É mais fácil o Festival do Açaí no quilombo do Murumurutuba acabar do que a gente parar de exportar polpa de açaí pra Europa. E se não celebrarmos a colheita pois houve uma grande seca e o açaizeiro não produziu? Estamos comprando açaí do gringo, porque agora ele tem 10.000 hectares pra plantar? E uns igarapés pro dinheiro lavar? O açaí agora vai ser apanhado com uma máquina para facilitar o trabalho de quem liofiliza todos os encantados e Mães das águas, lagos verdes e igapós para exportar? Vamos fazer um açaizeiro sintético?

A monocultura nos alinhou aos caprichos dos grandes senhores da terra; aqueles que detêm o poder executivo, o legislativo, as praias, a internet, o tráfico, a sonegação, as madeiras, o jogo do tigrinho, os garimpos, as casas de show e afins. Quando respiramos e as moléculas de mercúrio percorrem mais rápido no nosso sangue ao bombear o nosso coração, sentimos a dor da invasão. Como se eles estendessem uma bandeira e proclamassem independência ou norte dentro do nosso pulmão. Quando a soja toma o lugar do coentro é na minha caldeirada que amarga, a modo que mais uma starlink engasgada na minha goela desce quando eu giro o prato. A soja substitui o coentro, não apenas nos roçados, mas nas mesas e na memória. Como se a Cobra Grande já nem conseguisse despertar, de tanta contaminação do lago do Maicá. 

Falar da monocultura nas ondas de rádio e nos rios voadores é questionar porque pessoas como nós, crescidas nas festividades de interior, nas festas de colheita, suando no brega, no carimbó, no beiradão, somos forçados a não querer pagar R$ 20 pra ver os artistas locais se apresentarem, mas pagamos R$ 100 pra ver as figurinhas carimbadas do showbiz no único shopping da cidade, e isso ser normal, enquanto eles também são culpados por destruir a terra e matar tantas Mães Encantadas, Matintas, Oiaras, Pirarucus, Cunhãs-Porangas. É como o tiro em uma onça ou o financiamento disso.

 Em territórios dominados pela cultura da soja, vestidos com fivelas de cavalo e a bota de couro, a indústria do sertanejo se alinha aos interesses econômicos hegemônicos, sendo usada como trilha sonora do latifúndio, provavelmente de alguma novela que narra a invasão dos nossos corpos como entretenimento. Bem aqui nas veias abertas das nossas casas de farinha.

A cultura importada do centro do país e do mercado global passa a ocupar o lugar das expressões locaisEnquanto isso, os sons da terra se tornam ruídos para um mercado que prefere a previsibilidade da repetição para facilitar a dominação. A desconexão é plantada, cultivada, programada, nunca é à toa ou aúfa como dizemos no norte. Por isso a monocultura é também cultural quando os artistas da terra são preteridos por grandes nomes do mainstream e até mesmo grandes festivais, e dói mais ainda quando somos nós que fazemos isso de forma inconsciente. A cultura dominante passa a ser também a cultura da plantação em série: sem diversidade, sem identidade, sem raízes, sem revolta popular. E nós domados como cavalos.

Nessa morte diária

Há quem nasça 

Das cabanas 

De arrombar as grades 

Dos novos portões da casa grande 

Assim, entre o desmatamento simbólico e a contaminação das memórias, surgem iniciativas como o Festival de Inverno Amazônico Pedritchella, realizado em Alter do Chão, na aldeia Karanã. Idealizado brilhantemente pela minha inspiração e amiga DJ Pedrita, o festival é uma salvaguarda viva da cultura amazônica. Reúne aparelhagem, desfiles de moda, gastronomia e performances que celebram o brega, o tecnobrega, a ballroom amazônica, o carimbó e a diversidade como potências culturais. Além de ser um espaço de celebração, o Pedritchella é uma plataforma de escuta, protagonismo feminino e fortalecimento da lógica contra-colonial de guerrear.

O Festival das Águas foi idealizado pela minha amiga Marlena Soares, com muita música, feira de produtos da bioeconomia e rodas de conversa. O festival debate o papel da cultura ribeirinha como força de resistência territorial. A última edição refletiu como a cultura pode ser uma ferramenta de proteção ao Baixo-Tapajós, ameaçado pelo garimpo, pelo desmatamento e avanço do agronegócio.

E há também o CineAlter, criado pela atual secretária de Cultura de Santarém, Priscila Castro, e pelo diretor do Instituto Território das Artes, Raphael Ribeiro — duas mentes brilhantes, inspiradoras e comprometidas com a potência da imagem na luta pela memória. Realizado na Aldeia Alter do Chão pelo Instituto Território das Artes, o festival celebra o cinema latino-americano e a produção audiovisual amazônica. Na última edição, suas mostras homenagearam árvores nativas como forma de enraizar narrativas locais, além de  homenagear três mulheres do cinema tapajônico, com o tema central “A representatividade matriarcal no cinema e no ativismo climático”.

Pedrita, Marlena, Priscila e Raphael são corpos pretos, periféricos e ribeirinhos onde a essência dos festivais amazônicos permanece viva: são celebrações que nascem da necessidade de gritar e guerrear usando a arte como instrumento de organização, articulação e defesa. Infelizmente, o que elas têm em comum é que o sistema de financiamento ainda favorece quem, sem nenhuma técnica e expertise do custo e vivência amazônica, consegue captar recursos por seus portfólios robustos e conexões privilegiadas.

Com a chegada da COP 30 a Belém, a gente estava crente que os artistas amazônidas de uma vez por todas se tornariam as protagonistas, mas a realidade é outra. Égua! O que se vê é uma corrida para “vender e empreender a Amazônia”, onde o que menos importa é ouvir quem sempre esteve lá. Esse cenário escancara o roubo de pauta: artistas e produtores de fora utilizam a potência amazônica para captar recursos, mas não redistribuem poder e nem visibilidade. Usam nossos rostos, nossas histórias, até nossas dores em campanhas publicitárias, mas não nos convidam para sentar nas mesas de decisão do ativismo climático.

Estamos cansadas 

Em cada respirada

Cada engasgo de fumaça

Dos murros em ponta de faca

De ter que se aliar com os donos das máquinas 

Das COPs e das senzalas 

Querem cultura?

Nos paguem 

Nos financiem

Temos ideias para adiar o fim do mundo

Só não vale roubá-las 

Invadir nossas casas

Sem permissão 

Agora nós estamos alimentadas

Protegidas pelas mais sagradas

Nas veias abertas das nossas casas de tecnologias sagradas

Farinhada

Norah Costa é cientista formada em Biotecnologia e apaixonada por comunicar uma ciência acessível, não elitizada, construída a partir das vivências do povo e dos saberes das avós. É também multiartista e ativista do ciberfeminismo amazônico. Além de co-fundadora do projeto ResistEnem. Usa a poesia, o teatro, a performance e a fotografia para denunciar o racismo ambiental e as violências impostas aos corpos e territórios, ao mesmo tempo, celebra o amor pela Amazônia.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • CBJC

    O Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) é uma organização nacional da sociedade civil dedicada às temáticas da população negra na agenda climática do Brasil. A missão é ampliar o debate público e influenciar políticas públicas de justiça climática e equidade racial a nível local, regional e nacional.

Leia mais

PUBLICIDADE

Destaques

Cotidiano