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De acusador para acusado: um jovem negro não pode ser vítima de crime?

O instrutor de surfe Matheus Ribeiro foi à delegacia para denunciar um casal branco por racismo e acabou investigado por receptação

Texto: Henrique de Oliveira | Imagem: Reprodução

Matheus Ribeiro, jovem negro em bicicleta

22 de junho de 2021

O instrutor de surfe Matheus Ribeiro comprou uma bicicleta elétrica no dia 1 de abril, em um site de vendas online, onde pagou R$ 3.600, porém a Polícia Civil afirma que o equipamento foi furtado de um empresário em fevereiro. Os policiais foram até uma loja que vende a marca da bicicleta e descobriram através do número do chassi que ela estava no nome de outra pessoa. Segundo a vítima, a bicicleta foi furtada na porta de uma academia, em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro. No dia seguinte ao crime, o ex-proprietário adquiriu uma nova bicicleta no valor de R$ 7.890.

Embora não tenha nota fiscal da compra, Matheus apresentou à polícia o comprovante da transação financeira feita com o cartão de crédito da namorada. Contudo, a Polícia Civil resolveu abrir um inquérito para investigá-lo e indicia-lo por receptação. Em entrevista ao Fantástico, da TV Globo, Matheus informou que foi surpreendido pela notícia que a bicicleta que ele comprou havia sido roubada, pois confiava na pessoa que havia vendido e jamais a compraria se soubesse a sua procedência, além de não ter desconfiado do valor por se tratar de um site de produtos usados.

Segundo o artigo 180 do Código Penal brasileiro, o crime de receptação é caracterizado quando alguém adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, em benefício próprio ou de terceiros, objetos que sabe ser produto de um crime. A pena prevista é de um a quatro anos.

Na recepção qualificada que inclui adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime, a pena é de três a oito anos de reclusão. Em caso de receptação culposa, baseada em falta de cuidado quanto à origem da coisa, que possivelmente tenha origem criminosa, em que há uma desproporção entre valor e preço, a pena é detenção de um mês a um ano, ou multa, ou ambas.

Existe nesse caso uma imensa probabilidade do Matheus Ribeiro não saber a procedência da bicicleta, já que se tratava de um anúncio em um site de venda de produtos utilizados. A redução do valor se explicaria por ser exatamente um objeto de “segunda mão”, a desvalorização é muito comum, por exemplo, no mercado de automóveis. Portanto, não caberia a Matheus questionar o vendedor pelo preço que a bicicleta foi ofertada. Será que a polícia também exigiu nota fiscal para Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, o casal branco que o acusou de furto?

A investigação realizada pela polícia na bicicleta que estava com Matheus demonstra como a polícia também desconfiou da possibilidade de um jovem negro ter uma bicicleta elétrica. Acusar Matheus de receptação de roubo é negar o seu lugar de duplamente vítima, para reafirmar todos os estereótipos e preconceitos de que se tratando da ocorrência de um crime, uma pessoa negra só poder uma coisa: suspeita!

No fim das contas, os jovens brancos e o empresário que eu acredito que também seja branco tiveram suas bicicletas restituídas, enquanto Matheus Ribeiro saiu de vítima de racismo para investigado por receptação. Estava bom demais para ser verdade esse roteiro com plot twist racial pró-negro no Brasil.

O caso

No dia 12 de junho, Matheus Ribeiro estava em frente ao Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, quando foi abordado pelo casal branco Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, que o acusaram de ter roubado uma bicicleta elétrica. O instrutor de surfe estava montado na sua própria bicicleta, a qual havia comprado um site de vendas online. Segundo o jovem, foi necessário mostrar fotos antigas com o item e também a chave do cadeado para que o casal tivesse a comprovação de que a bicicleta não foi furtada.

Matheus registrou um boletim de ocorrência online no dia 14 e no dia seguinte depois foi à delegacia prestar depoimento. O desejo de Matheus e de sua defesa é que o caso seja enquadrado como racismo. Por outro lado, a delegada Natacha Oliveira, titular da 14º DP (Leblon), disse que a falsa acusação de roubo não poderia ser classificada como injúria racial por não ter havido nenhum tipo ofensa racial direcionada a Matheus. O casal branco responderá por calúnia.

Em uma entrevista, Matheus Ribeiro discordou da delegada e ponderou que se ele fosse branco o fato teria sido muito diferente. “A gente sabe que se eu fosse um jovem branco eu não seria parado daquela forma. Então eu acho que o que tem que mudar é o jeito da gente olhar esses casos, esses fatos”. Enquanto o caso ganhava repercussão nacional, a Polícia Civil prendeu no dia 16 o jovem branco Igor Martins Pinheiro, 22 anos, como suspeito de ter roubado a bicicleta elétrica em frente ao Shopping Leblon.

Imagens de câmera mostram o momento exato em que um homem branco rouba a bicicleta e foge do local. Conhecido como “lorão”, Igor é morador do bairro de Botafogo, também na Zona Sul do Rio de Janeiro, e contabiliza 28 passagens pela polícia, além de já ter sido preso em 2018 por cometer outros furtos de bicicleta na região.

Em depoimento, Mariana Spinelli e Tomás Oliveira afirmaram que não abordaram Matheus “em razão da cor da pele” e que teriam o mesmo comportamento caso se tratasse de uma pessoa branca. Verdade? A acusação racial contra Matheus Ribeiro demonstra como a sociedade não considera possível que uma pessoa negra possa ter uma bicicleta elétrica e frequente o Leblon. E mesmo que Igor Pinheiro estivesse acabado de furtar a bicicleta e passasse ao lado das vítimas, ele jamais seria abordado por ser mais um jovem branco com uma bicicleta elétrica em um bairro rico. Matheus foi acusado de roubo porque foi considerado como um corpo estranho ao ambiente social.

No mesmo dia em que Igor Pinheiro foi preso, o Ministério Público do Rio de Janeiro pediu sua prisão preventiva por outro roubo cometido no dia 4 de março, que foi negado pela juíza Simone de Araújo Rolim, da 29º Vara Criminal do Rio. Na decisão, a juíza disse que o crime havia sido cometido sem violência ou grave ameaça. A magistrada ainda argumentou que não seria possível realizar a identificação de Igor, já que as imagens coletadas pela polícia eram de baixa qualidade e o suposto autor do crime usava máscara e óculos escuros, por isso o reconhecimento feito pelos policiais poderia ser enganoso.

Enquanto a justiça diz que um jovem branco precisa ter sua identidade comprovada de forma exata para ser preso, negros são 83% das pessoas presas injustamente, tendo como única prova um reconhecimento fotográfico. O jovem Cláudio Júnior Rodrigues de Oliveira, de São Gonçalo, também no Rio de Janeiro, foi absolvido 13 vezes da acusação de roubo pelo fato de ter uma fotografia no álbum de suspeitos para reconhecimento na delegacia, a modelo e dançarina paulista Bárbara Querino ficou um ano e oito meses presa por ter sido condenada após ser reconhecida apenas pela cor da pele e o cabelo cacheado.

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