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O racismo não é uma piada

Em artigo de opinião, o cientista social afro-argentino Federico Pita discute a naturalização do uso de piadas racistas em canais de comunicação digital na Argentina. Segundo ele, esses canais, que precisam ser responsabilizados, justificam o uso do racismo como forma de humor sob a bandeira da liberdade de expressão irrestrita. O pesquisador aponta que esses meios e práticas vêm crescendo em meio ao governo de Javier Milei e já não podem ser ignorados como importantes formadores de opinião.
Ruffo, Schargrodsky e Rebord no "La hora africana"

Foto: Reprodução/Redes Sociais/@estoeshaa

6 de julho de 2024

Por: Federico Pita, cientista político e fundador do Diáspora Africana da Argentina (Diafar)

A utilização das redes sociais pela ultradireita nas últimas eleições e os resultados obtidos demonstraram, mais uma vez, que as redes devem ser contabilizadas na categoria dos meios de comunicação social e que, por conseguinte, o papel dos meios de comunicação social e dos comunicadores nacionais-populares é tão influente no seu próprio espaço como as mentiras dos meios de comunicação social hegemônicos e dos trolls libertários em direção aos seus. É por isso que as práticas racistas dos youtubers Tomas Rebord e Juan Ruffo, junto com o jornalista Iván Schargrodsky, em BLENDER [canal de YouTube], ou a banalização da discriminação por Marcos Aramburu, Matías Mowszet e Señora Bimbo, em GELATINA [canal de YouTube], face à decisão do governo [do presidente argentino, Javier] Milei de desmantelar o Inadi [Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo] não podem ser ignoradas. São comunicadores que se identificam com o campo nacional e popular, que fingem estar do lado certo da história e que, no entanto, acabam por se comportar em linha com o porta-voz presidencial [Manuel] Adormi ou com El Presto [jornalista e influenciador argentino de direita].

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O comunicador de ultradireita Eduardo Prestofelippo, conhecido como “El Presto”, foi recentemente denunciado por Pablo Moyano por assédio, discriminação e difamação. Enquanto o influenciador destilou ódio racial contra o dirigente sindical com insultos racistas como “grone” e “monte de gordura preta que nem sabe ler”, Aramburu, Mowszet e Miss Bimbo tiveram a ideia de abordar com humor o anúncio do alegado encerramento do Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo. Mas em vez de usarem o humor como estratégia de denúncia, improvisaram “piadas” que recaem sobre as vítimas. No BLENDER, Rebord, Ruffo e Schargrodsky fazem piada sobre a cultura africana com premeditação e malícia, e sobem a aposta semana após semana.

A proliferação de plataformas e o aumento da popularidade de canais de streaming e de streamers que se apresentam como a “nova comunicação”, “fresca”, “transgressora”, “politicamente incorreta”, “real” parece ser uma caraterística dos tempos atuais. Apresentar insultos racistas como uma forma de humor e reivindicar a liberdade de expressão não é irreverente nem inovador. O humor é, aliás, o argumento histórico utilizado pelos racistas para se justificarem (“agora já não se pode fazer uma piada?”) e a pretensa defesa da liberdade de expressão é utilizada pelo atual governo para justificar todas as barbaridades proferidas pelos seus funcionários e apoiadores (nas palavras da chanceler Diana Mondino: “Brilhante decisão de encerrar o Inadi, diminuir as despesas e aumentar a liberdade de expressão”).

O caso de Rebord, Ruffo e Schargrodsky, apresentadores do programa “Hay algo ahí” no canal BLENDER, destaca-se por fazer desta prática uma marca registada do programa. Desde 27 de fevereiro, todas as terças-feiras, o programa tem uma coluna de opinião política com Iván Schargrodsky, sob o nome “A hora africana”. A introdução do bloco gira em torno da apresentação de Schargrodsky como “o africano” e das piadas com ele. Para a triste tarefa, vestem-se com roupas e adereços africanos e tocam Waka Waka, de Shakira, em pano de fundo, incluindo lanças e referências à “selvageria”.

Devemos começar por salientar que Schargrodsky não é africano. Trata-se de uma invenção resultante de uma entrevista em um outro programa do YouTube, também apresentado por Rebord. Nessa entrevista, Schargrodsky diz que os seus avós italianos fugiam da Itália fascista e estavam exilados numa colônia italiana na Líbia quando a sua mãe veio ao mundo. O nascimento no continente africano foi uma coincidência, a sua mãe tinha cidadania italiana e nunca se identificou com as culturas africanas. Apesar da exposição do próprio Schargrodsky, Rebord insistiu em declará-lo africano, e essa alcunha parece tê-lo seguido desde então. Por exemplo, no Futurock, outro espaço digital no qual Schargrodsky era colunista político. Lá, a apresentadora Julia Mengolini brincava com a alcunha que Rebord lhe tinha dado e, em mais de uma ocasião, referiu-se a ele como “o africano”.

A questão é: o que é que Rebord e companhia procuram ao chamar à coluna de Schargrodsky de “A hora africana”, quando Schargrodsky não é africano, quando ele próprio o nega e explica que nasceu em Bahía Blanca [cidade argentina na província de Buenos Aires], filho de mãe italiana e pai judeu argentino, qual é a razão desta decisão? Os próprios apresentadores deixam explícito que sabem que o que estão fazendo é errado. O colunista diz que foi acusado de apropriação cultural e o co-apresentador Juan Ruffo diz que ele e Rebord não podiam se vestir (sic) de africanos porque seria ofensivo. Por que razão, então, na semana seguinte, Rebord e Ruffo começam o programa já fantasiados e acabam dançando o Waka Waka? Desafio vocês a refletir sobre o seguinte. Dado que o pai de Schargrodsky é judeu e que, portanto, a sua ascendência judaica é um fato, não seria igualmente válido mudar o nome da coluna para “A Hora Judaica”, mudar o nome do colunista para “O Judeu”, usar Kipa, Talit e Tefillin e recebê-lo com música klezmer em vez de Shakira?

A subestimação e/ou ridicularização das culturas não hegemônicas faz parte da ferida colonial que não cicatriza e é indispensável que façamos estas discussões no seio do movimento nacional e popular se quisermos sair desta crise de dimensões catastróficas. Pedimos à nossa direção política que faça uma autocrítica, que reconheça os erros que provocaram uma ruptura com os setores populares e que nos conduziram a este descalabro libertário insensível, que tira sarro dos trabalhadores, dos pobres, dos aposentados. Mas o campo nacional e popular não são apenas os dirigentes, somos todos nós, incluindo os comunicadores.

Enfrentar a adversidade com humor é saudável, desejável: em “A vida é bela”, Roberto Benigni foi capaz de enfrentar a Shoah com humor! O humor é bem-vindo. Pode dar-nos ferramentas para decodificar as injustiças e força para enfrentar os obstáculos com que nos deparamos. O humor antirracista é, de fato, um excelente antídoto para a derrota e pode até fornecer ferramentas para a transformação. Mas o humor antirracista não ri da vítima, denuncia o agressor.

Se os comunicadores da nac&pop não abandonaram os seus princípios por mais likes e views, devem dar as explicações necessárias. No campo nacional e popular, o racismo é inadmissível. Rebord, Ruffo e Schargrodsky ainda têm tempo. Devem refletir, pedir desculpas sinceras e empenhar-se em um verdadeiro processo de reparação. O racismo não é um jogo, não é uma piada. O racismo oprime, explora, desumaniza e mata. A subestimação e a banalização do racismo o perpetuam.

Este artigo foi publicado originalmente em espanhol no portal Negrx, parceiro da Alma Preta na Argentina, e parte do site do jornal Página 12.

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    Negrx é uma seção antirracista publicada no jornal Pagina/12, da Argentina, e reúne textos de pesquisadores e jornalistas negros comentando a questão racial argentina e o mundo. Negrx é um grupo parceiro da Alma Preta.

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