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Para Antonia Pellegrino, diretor negro no Brasil tem que ser igual ao Spike Lee, mas se for branco qualquer um serve

9 de março de 2020

O historiador Henrique Oliveira escreveu um artigo de opinião sobre a fala da roteirista Antonia Pellegrino, responsável pela série a ser produzida pela Globoplay sobre a ex-vereadora Marielle Franco, que invisibiliza diretores negros do audiovisual brasileiro

Texto: Henrique Oliveira*

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Após o anúncio que a Globoplay vai produzir uma série baseada na vida da ex-vereadora Marielle Franco, cujo assassinato completa dois anos no próximo dia 14 de março – e ainda não foi solucionado -, diversos profissionais negros do audiovisual brasileiro divulgaram um manifesto criticando tanto a ausência de pessoas negras na direção do projeto, como a escolha de José Padilha para compor a equipe de direção.

Segundo os signatários, José Padilha, diretor dos filmes “Tropa de Elite 1” e “Tropa de Elite 2”: “é o homem que deu e dá ferramentas simbólicas para a construção do fascismo e genocídio da juventude negra no país”.

“É uma violência extrema envolver numa série sobre Marielle o autor de filmes que retrataram de forma heroica a polícia mais violenta do país. Para se ter uma ideia, após Tropa de Elite, as inscrições no Bope aumentaram vertiginosamente. O retrato ali inspirou e inspira ações violentas em todo o país. Não à toa, a música tema da tropa no filme apareceu em dezenas de vídeos de apoio ao presidente em exercício. É o filme que mais exaltou o tema “bandido bom é bandido morto”, simplificando a discussão da violência urbana a uma questão de polícia”, escreveram. A íntegra do manifesto pode ser acessada aqui.

Além de José Padilha, a equipe de direção e roteiro é formada por Antonia Pellegrino (“Sexo e as Negas”, “Bruna Surfistinhas” e “Tim Maia”) e George Moura (“Onde Nascem os Fortes”, “Amores Roubados” e “O Canto da Sereia”).

Após as críticas levantadas por pessoas negras, a roteirista Antonia Pellegrino concedeu uma entrevista para o portal UOL, onde ela tentou justificar a escolha por uma equipe de direção e roteiro toda branca. Segundo ela, o fato de José Padilha morar no exterior traz segurança para quem vai dirigir uma série que conta a história do assassinato de uma vereadora morta por membros da milícia do Rio de Janeiro, que, inclusive, tentou sequestrar José Padilha, por causa do filme “Tropa de Elite 2”.

Outro ponto da escolha pelo José Padilha, parte da ambição da roteirista em fazer parcerias internacionais, e ela enxerga essa possibilidade trabalhando junto com José Padilha, que já dirigiu séries para a Netflix e o filme Robocop.

Sobre a ausência de pessoas negras, Antonia Pellegrino disse que pensou em ter um diretor negro no projeto, porém, não encontrou no Brasil pessoas do nível dos diretores negros norte-americanos como Spike Lee e Ava DuVernay.

O que chama a atenção nessa fala de Antonia Pellegrino é o nível de exigência que ela coloca para um diretor negro trabalhar na série, só serve se a pessoa for premiada assim como Spike Lee e Ava DuVernay. Será que ela está comparando José Padilha com Spike Lee?

Ao mesmo tempo em que ela preza pela excelência de um profissional negro e enche a bola do José Padilha, o mesmo foi criticado por cometer uma série de erros, manipulações e falsificação histórica, não só na série “O Mecanismo”, mas também na série “Narcos”. O filho do narcotraficante Pablo Escobar, chegou a listar 28 erros na segunda temporada.

Um desses erros diz respeito ao incêndio ocorrido no Palácio de Justiça da Colômbia em 1985, que na série “Narcos” foi mostrada como uma ação orquestrada e financiada por Pablo Escobar para destruir provas contra ele, enquanto que uma investigação realizada pelo Tribunal Especial concluiu que o grupo “M19” foi o verdadeiro responsável como uma retaliação ao presidente Belisario Betancur, por ter traído pontos do acordo de paz, segundo o grupo “M19”.

A fala de Antonia Pellegrino simplesmente invisibilizou uma série de roteiristas e diretores negros brasileiros, a exemplos de Joel Zito Araújo (“Negação do Brasil”, “Meu amigo Fela”, “As filhas do vento” e “Cinderelas, lobo e um príncipe encantado”), André Novaes (“Temporada”, “Ela volta na quinta”, “Pouco mais de um mês” e “Fantasmas”), Glenda Nicácio (“Café com canela” e “Ilha”), Jeferson De (“Distraída para morte”, “Carolina” e “Narciso Rap”), Jéssica Queiroz (“Peripatético” e “Catarina Delfino”), Gabriel Martins (“Aliança”, “Nada”, “O nó do diabo” e “No coração do mundo”) e Camila de Moraes (“O caso do homem errado”).

Uma pesquisa realizada em 2016, pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), demonstrou que apenas 2,1% dos longas-metragens lançados no circuito comercial foram dirigidos por homens negros e nenhuma obra havia sido assinada por uma mulher negra. Outra pesquisa divulgada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemma), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mostrou que entre 2002 e 2014, os homens brancos foram 84% dos diretores e roteiristas dos filmes considerados de grandes bilheterias no Brasil, apenas 2% eram homens negros e não havia nenhuma mulher negra.

A escolha de Antonia Pellegrino por José Padilha, ao invés de um diretor negro, pode ser entendida como parte do pacto narcísico da branquitude, no qual sujeitos e grupos de pessoas brancas fazem alianças para interditar que pessoas negras acessem os espaços de poder, para garantir que a branquitude continue se reproduzindo como um lugar de privilégio racial, econômico e político.

Para se defender das acusações de racismo, Antonia Pellegrino fez uma postagem em seu perfil no Instagram, dizendo que a frase “não ter um Spike Lee no Brasil” foi infeliz, ora, essa retórica é constantemente utilizada por pessoas brancas flagradas em racismo, já virou parte do manual básico dizer que a declaração foi infeliz, foi retirada do contexto ou até mesmo que as pessoas entenderam errado. No entanto, o que diriam Ava DuVerney e Spike Lee (que inclusive gravou um vídeo cobrando resposta sobre quem mandou matar Marielle Franco), se soubessem que estão sendo utilizados para desqualificar diretores e roteiristas negros no Brasil?

* Natural de Salvador, Bahia, Henrique Oliveira é historiador e militante do coletivo negro Minervino de Oliveira.

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