Enquanto não fizermos um acerto de contas a nossa história por completo, as chicotadas em corpos negros continuarão sendo normalizadas por mentalidades escravocratas; Henrique Oliveira é historiador e militante antirracista
Texto / Henrique Oliveira* | Imagem / Nataly Simões/Alma Preta
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Nesta semana, o juiz da 25ª Vara Criminal de São Paulo, Carlos Alberto Côrrea de Almeida, condenou os seguranças Valdir Bispo dos Santos e David Oliveira Fernandes por lesão corporal, cárcere privado e divulgação de cena de nudez de um jovem que furtou um chocolate. O caso aconteceu em agosto de 2019 no supermercado Ricoy, na periferia da Zona Sul de São Paulo. As imagens, no entanto, só chegaram às mãos da polícia no começo de setembro. O vídeo foi gravado pelos próprios seguranças.
No vídeo, o jovem estava nu, com as mãos amarradas e amordaçado. O adolescente contou que foi chicoteado por fios elétricos trançados, ameaçado de morte e que havia sido a terceira agressão que ele sofria dos mesmos seguranças no supermercado Ricoy. No boletim de ocorrência constava que a vítima foi abordada pelos seguranças, levada a um quarto nos fundos do supermercado e torturada por 40 minutos.
É justamente sobre a análise feita sobre tortura na sentença do juiz que eu quero falar. O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) havia denunciado os seguranças pelos crimes de tortura, cárcere privado e divulgação de cena de nudez. O juiz Carlos Alberto Côrrea resolveu absolver os seguranças do crime de tortura e transformou a denúncia do MP-SP em lesão corporal, mas baseado em o quê?
Primeiro, vejamos o que diz a Lei 9.9455/97, que considera como crime de tortura:
I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando sofrimento físico ou mental, com a finalidade de obter informação, provocar ação ou omissão de natureza criminosa, ou por discriminação racial ou religiosa;
II – Subtemer alguém, sob a guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Em sua sentença, o juiz Carlos Alberto Côrrea ignorou que o adolescente foi despido da sua roupa, teve as mãos amarradas e a boca armodaçada para que seus gritos não fossem ouvidos enquanto era chicoteado por 40 minutos. O juiz decidiu que o jovem só foi vítima de uma lesão corporal. O motivo? Ele considerou que as agressões não foram realizadas com a intenção de obter informação ou confissão do roubo, já que a vítima era conhecida pelos seguranças “ou seja, sabiam quem ele era e o que ele já teria feito, reiteradamente, em malefício ao patrimônio do supermercado.”. Portanto, não houve tortura.
A legislação brasileira não define que a tortura só pode ser tipificada quando empregada para obter confissão. O referido caso poderia muito bem ter sido enquadrado no segundo artigo, no qual a tortura acontece quando a pessoa é submetida por meio da violência física, causando intenso sofrimento físico ou mental como forma de aplicar um castigo pessoal. Ora, foi justamente isso que os seguranças fizeram, mantiveram o adolescente sobre guarda e o chicotearam com um fio com o claro objetivo de puni-lo pelo crime de furto.
O juiz, entretanto, optou por julgar o histórico criminal da vítima para absolver os acusados do crime de tortura. Se o adolescente já era conhecido por furtar no supermercado como ele próprio declarou, na mentalidade do juiz a tortura só poderia acontecer para obter a confissão, jamais uma tortura punitiva ao ato de roubar. Em resumo, o juiz não avaliou a conduta dos seguranças e sim o próprio adolescente que perdeu o status de vítima para ser analisado enquanto um criminoso reincidente. No fim das contas, ele justificou a tortura ocorrida criminalizando a vítima.
A absolvição dos seguranças pelo crime de tortura também demonstra o modus operandis do poder judiciário brasileiro na produção de legitimidade da altíssima letalidade policial brasileira. No livro “Indignos de vida – A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”, o autor e delegado da Polícia Civil, Orlando Zaccone, argumenta que os arquivamentos de autos de resistência realizados pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo judiciário se baseiam numa análise da condição do morto. Se ele for indentificado como criminoso e portador de ficha criminal, o caso é facilmente concebido como legítima defesa, garantindo ao policial o tão propagado excludente de ilicitude.
Outro argumento (sic) utilizado pelo juiz para descaracterizar o crime de tortura foi de que as agressões não foram praticadas por quem tinha “condição de autoridade, guarda ou poder”. Segundo o advogado criminalista André Lozano, a vítima estava sob o poder dos seguranças, mesmo que não sejam agentes do Estado, com autoridade legal, o jovem não tinha capacidade de resistir, pois estava amarrado, o que configurava submissão.
Na época, o delegado Pedro Luis de Souza afirmou que já tinha visto de tudo nos seus 42 anos de Polícia Civil, mas nunca algo com extrema violência como aquele chicoteamento que, segundo o delegado, foi “uma barbaridade que remonta aos idos da escravatura”. Pois bem, a escravidão é o ponto de partida e também de chegada fundamental para entendermos o porquê um juiz desconsiderou que num cenário em que um jovem negro é despido, chicoteado, amarrado e amordaço não se trata de um crime de tortura.
O Brasil, historicamente, foi formado por uma articulação entre o direito penal privado e o direito penal público, em que tanto na esfera do domínio do senhor de escravos como na do poder do Estado a população negra esteve submetida a um regime punitivo genocida e que promovia o homicídio, mutilação e tortura de afrodescendentes. Isso produziu uma normalidade e naturalidade das violências contra o corpo negro, este que foi o primeiro laboratório das experiências e das técnicas de tortura desenvolvidas pelas instituições policiais brasileiras.
Em um recente artigo, o jornalista Leonardo Sakamoto disse que a “PM que espanca rindo é a evolução do torturador da ditadura”. O referido texto refletia sobre as imagens feitas por celular de um PM agredindo jovens negros numa favela de São Paulo, após mais uma dispersão violenta de um baile funk. As imagens começaram a circular por causa das nove mortes ocorridas em Paraisópolis.
Observem que no imaginário histórico de Sakamoto o torturador está datado apenas na Ditadura Militar, quando na verdade o policial que agride jovens negros e sorri é a evolução do feitor. Na memória coletiva produzida no Brasil, o único momento histórico de exceção foi a ditadura, a escravidão é estrategicamente apagada, sendo que a ditadura só fez colocar nos seus porões novos sujeitos que até então não eram vítimas da repressão, em sua maioria jovens brancos de classe média envolvidos na resistência política ao regime. Enquanto não fizermos um acerto de contas a nossa história por completo, as chicotadas em corpos negros continuarão sendo normalizadas por mentalidades escravocratas.
* Natural de Salvador, Bahia, Henrique Oliveira é historiador e militante do coletivo negro Minervino de Oliveira.