O planeta já ultrapassou a marca de 2,1 milhões de casos confirmados do Covid-19, o novo coronavírus, com mais de 143 mil mortes. O vírus não escolhe quem será infectado, mas as estatísticas demonstram que em países como o Brasil e os Estados Unidos a população negra é afetada desproporcionalmente pela pandemia.
De acordo com o doutor em Biologia, Gustavo Silva, que dirige um laboratório de pesquisa na Universidade de Duke, uma das dez melhores dos EUA, a comunidade negra é a mais impactada nos dois países devido à exposição ao contágio, a suscetibilidade ao vírus em função de outras doenças pré-existentes e a falta de acesso ao tratamento adequado.
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“É difícil falar desses três pontos sem pensar no efeito sistêmico de séculos de discriminação e racismo em cima da comunidade negra”, afirma, em entrevista concedida ao Alma Preta (veja a íntegra mais abaixo).
Segundo o balanço do Ministério da Saúde, um em cada quatro brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave é negro (23,1%), essa proporção chega a um em cada três entre os mortos (32,8%).
No caso dos EUA, ainda não há números oficiais relativos ao país inteiro porquê diversos estados e cidades não divulgam a etnia dos infectados. Mesmo assim, os dados parciais demonstram a disparidade racial em meio à pandemia. Os números de letalidade com recorte racial mais alarmantes são os de Chicago, onde os negros correspondem a 30% dos moradores e a 70% dos mortos.
Embora no Brasil e nos Estados Unidos, os sistemas de saúde sejam distintos, público e privado, respectivamente, o doutor em Biologia avalia que as estatísticas do Covid-19 nos dois países apontam semelhanças na falta de assistência à população negra.
“Isso demonstra que nos dois países os negros são mais suscetíveis às complicações do vírus devido ao menor acesso aos leitos, aos profissionais de saúde e à infraestrutura como um todo, de forma que são impactados de forma semelhante tanto nos EUA como no Brasil”, sustenta.
Apontado por uma revista científica como um dos 100 mais inspiradores cientistas negros em atividade nos Estados Unidos, Gustavo Silva também falou ao Alma Preta sobre questões como os erros e acertos do Brasil e dos EUA ao lidar com os efeitos da pandemia nas populações mais vulneráveis. Confira a entrevista na íntegra:
Alma Preta: Qual é a sua perspectiva sobre a pandemia do Covid-19?
Doutor Gustavo Silva: Como biólogo, minha perspectiva é pautada no conhecimento da comunidade científica. Estamos vivendo um período muito crítico, correndo contra o tempo para estudar o Covid-19 e entender as formas de contágio e o impacto na população. Os avanços científicos, por exemplo, possibilitaram o sequenciamento do genoma do vírus com mais agilidade do que outros vírus, de epidemias passadas. Isso possibilitou pensar novas formas de terapia e maior rapidez no desenvolvimento de testes e vacinas.
É importante ressaltar que cada ação que tomamos hoje pode salvar muitas vidas. Apesar dos discursos diferentes em torno do vírus, os dados têm mostrado que a taxa de mortalidade é muito mais alta do que a de uma gripe comum. Precisamos lembrar também que outras doenças não tiram férias durante uma pandemia, então se o sistema de saúde estiver sem leitos disponíveis e você precisar, não terá acesso.
Eu pessoalmente, acho que cada vida que a gente perde é muito importante. Eu não gostaria de perder amigos e familiares nessas circunstâncias. O momento é de agir para resguardar o maior número de vidas que a gente puder.
De que maneira a pandemia expõe a disparidade racial nos EUA e no Brasil?
Os dados de internação e mortalidade com viés racial têm mostrado não só nos Estados Unidos como no Brasil o que a gente já sabia e temia. Embora as pessoas digam que o vírus é democrático e não escolhe quem será infectado, a comunidade negra tem sido desproporcionalmente afetada e os índices de mortalidade ultrapassam a porcentagem desse grupo na população. Isso pode ser explicado por diversos motivos, entre eles a exposição ao contágio, a suscetibilidade à doença e a falta de acesso ao tratamento adequado. É difícil falar desses três pontos sem pensar no efeito sistêmico de séculos de discriminação e racismo em cima da comunidade negra.
Existe uma alta proporção de negros e negras nas comunidades de baixa renda. Nem todos podem trabalhar de casa e ter suas refeições entregues em domicílio, além de que muitos ainda dependem do transporte público, aumentando ainda mais a chance de contaminação. Essas pessoas estão em um beco sem saída, ou trabalham ou não têm uma renda no fim do mês. Em muitas famílias também existe a limitação de espaço, o que maximiza a chance de as pessoas se infectarem e contaminarem pessoas próximas. As políticas públicas precisam focar no bem estar dessa população, para que elas fiquem em casa de forma segura e sem se expor ao vírus.
O segundo ponto é a suscetibilidade à doença de pessoas que já possuem doenças crônicas. Estudos mostram que há uma prevalência de enfermidades como diabetes e hipertensão na comunidade negra, que a torna mais suscetível ao desenvolvimento de um quadro grave em decorrência do vírus. Os dados recentes com recorte racial nos Estados Unidos e no Brasil já mostram a existência de uma disparidade entre as vítimas. Por isso, o componente racial e demográfico precisa ser incorporado às análises e relatórios do Ministério da Saúde a fim de trazer informações mais precisas e que vão ajudar a lidar com esse problema da melhor maneira possível. Nesse sentido, é muito importante o papel de organizações como a Coalizão Negra Por Direitos para que dados raciais sejam divulgados e políticas públicas estabelecidas.
O terceiro ponto é o acesso e a qualidade do tratamento. A disparidade de renda, em diferentes públicos raciais, impacta nas formas de tratamento e de prevenção e bem estar que as famílias podem investir. Grande parte da população negra não possui acesso a diversos serviços de saúde e, quando consegue acessar, não necessariamente são os melhores recursos. Outras práticas discriminatórias também podem levar ao descaso da condição real do paciente e à falta de diagnóstico e tratamento adequado. Essa é a realidade que muitas das comunidades vulneráveis estão enfrentando nessa pandemia. Essa é a forma como a crise escancara quem terá mais chance de se recuperar e sobreviver.
Nos Estados Unidos e no Brasil, os sistemas de saúde são completamente diferentes. Enquanto um é privado, o outro é público. Apesar dessa diferença, as estatísticas apontam que em ambos os países o Covid-19 é mais letal entre os negros. Isso significa que nos dois países os sistemas não atendem adequadamente essa população?
Apesar dos diferentes processos históricos e sociais que aconteceram nos dois países, ambos se basearam em um sistema econômico escravagista para seu estabelecimento como nação. Os EUA com métodos mais institucionais de segregação após a abolição, e o Brasil com métodos mais velados e sutis, mas tão efetivos quanto. No fim, o racismo foi e é sentido pelos negros de forma semelhante nos dois países.
Em ambos, os negros são economicamente desfavorecidos, ocupam os empregos de menor rendimento, são os com menos oportunidades educacionais e profissionais e valorização social. Isso se reflete no sistema de saúde também. No país norte-americano, o sistema privado de saúde é associado ao tipo de emprego que a pessoa possui. Quanto melhor seu empregador é, melhor tende a ser o seu plano de saúde. Já os trabalhadores autônomos não têm acesso aos serviços de saúde ou acessam de uma forma muito mais cara.
Agora, com o Covid-19, os pacientes que estão acometidos muito seriamente porque não tiveram a prevenção adequada, não têm acesso aos recursos necessários de tratamento tanto no sistema privado como no público. Isso demonstra que nos dois países os negros são mais suscetíveis às complicações do vírus devido ao menor acesso aos leitos, aos profissionais de saúde e à infraestrutura como um todo, de forma que são impactados de forma semelhante tanto nos EUA como no Brasil.
Quais são os erros e os acertos que os EUA e o Brasil cometeram ao lidar com os efeitos da pandemia nas populações mais vulneráveis? Neste sentido, há algo que o Brasil pode aprender com os EUA?
De forma geral, ambos os países tiveram a chance de aprender com países da Europa e da Ásia quais são as melhores formas de lidar com a pandemia. Os países com as menores taxas de mortalidade aplicaram o distanciamento social, testes em larga escala e o monitoramento. Tudo isso associado a um eficiente sistema de saúde e aos investimentos de seus governos. Esses devem ser o foco das políticas públicas, especialmente para as pessoas mais vulneráveis, que são as mais afetadas pelo vírus.
Entre erros e acertos, o governo norte-americano liberou um pacote econômico que ataca essas frentes. É um pacote de distribuição de renda à população para amenizar o impacto financeiro. Há ainda investimento nos estados, nos setores de saúde e empréstimos a empresas comprometidas com a manutenção dos empregos em vez de forçar as pessoas a voltarem ao trabalho e sobrecarregar o sistema de saúde.
A população deve seguir orientações de quem nesse período?
É um momento que precisamos ouvir os especialistas e confiar na comunidade científica. A quantidade excessiva de informação e de desinformação tem deixado as pessoas sem saberem em quem confiar. Se você precisa de uma cirurgia, você recorre a um cirurgião que estudou muito para se tornar um especialista. Hoje temos que ouvir as pessoas que sabem o que é um vírus, como funciona, de que forma infecta o organismo e como uma vacina para um tratamento seguro é desenvolvida. Isso é fundamental para que tenhamos informações de forma precisa e mais acurada. É hora de ouvir os biólogos, virologistas, infectologistas, epidemiologistas, cientistas sociais e não quem nunca trabalhou nessa área, além de seguirmos os exemplos de países que lidaram da melhor forma com a pandemia.