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“As desigualdades evidentes no colonialismo facilitaram a apropriação cultural”, afirma Funmi Arewa

22 de janeiro de 2018

Em entrevista para o Alma Preta, pesquisadora da Universidade da Califórnia (Irvine) analisa a apropriação cultural na dimensão individual, mercadológica e história. Para Funmi Arewa, o colonialismo é um dos pontos de partida principais para a discussão de apropriação e empréstimos culturais.

Entrevista e tradução / Vinicius Martins
Imagem / UCI Law/Reprodução

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O debate sobre apropriação cultural vai e vem de tempos em tempos. Basta uma faísca no mundo pop ou uma imagem polêmica viralizar nas redes sociais para que a discussão se inflame novamente. Entre um mar de debates, acusações, likes e textões intermináveis, a pergunta central da discussão ainda permanece na cabeça de muitas pessoas, sejam elas brancas ou negras: afinal, o que é apropriação cultural?

Para responder essa difícil e delicada questão, o Alma Preta entrevistou Funmi Arewa, professora de Direito da Universidade da Califórnia (Irvine). A pesquisadora é especialista em propriedade intelectual e direito autoral e se dedica a entender os desdobrados na cultura afro-americana e africana nos mercados da indústria do entretenimento. Para Funmi, é impossível barrar ou policiar o que ela chama de empréstimos culturais – ou simplesmente os usos cotidianos – feitos no fluxo de produção cultural e criativa da humanidade.

Por outro lado, a pesquisadora afirma que os empréstimos feitos em contextos comerciais e a herança do colonialismo expõem contradições importantes e mostram como o racismo e a apropriação cultural atuam lado a lado. 

“Durante o século XX, vimos uma significativa mercantilização da música afro-americana, que se tornou uma fonte dominante de música popular em todo o mundo. Nós também vimos padrões contínuos de exclusão de músicos afro-americanos na esfera musical em formas variadas ao longo do tempo”.

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Alma Preta: Como a apropriação cultural está ligada ao colonialismo europeu?

Funmi Arewa: As desigualdades evidentes no colonialismo facilitaram a apropriação cultural e outras formas de apropriação. Tanto a apropriação cultural como o colonialismo europeu estão intimamente ligados a hierarquias de cultura, raça e poder. Essas hierarquias estabeleceram o contexto e as interações moldadas entre o colonizador e colonizado notáveis em muitos contextos do século XIX na África, por exemplo. Hierarquias e doutrinas evolutivas também foram usadas para justificar a dominação política e a intervenção colonial e contribuíram para a criação de estruturas legais e outras estruturas para permitir a apropriação do valor econômico.

O colonialismo facilitou a extração generalizada de recursos naturais, saques culturais tangíveis e intangíveis. Na Nigéria, por exemplo, além dos recursos naturais, as autoridades coloniais britânicas extraíram material cultural tangível, cujas porções significativas acabaram em museus e institutos imperiais. O roubo dos mundialmente famosos Bronzes de Benin no final do século XIX atesta o destino do saqueamento cultural tangível. Foram tomadas centenas de peças sem permissão em uma expedição militar punitiva no Benin. A maioria terminou em museus ou em mãos privadas, incluindo as mãos de soldados envolvidos na expedição militar. Poucas peças foram devolvidas.

AP: Na sua análise, você reforça a importância de avaliar o contexto para definir o que é a apropriação cultural e o que é um empréstimo cultural. Na sua opinião, quais contextos produzem apropriação cultural?

FA: O que constitui a apropriação pode ser sujeito a um debate significativo, particularmente em contextos contemporâneos de empréstimos. Como resultado, o que alguns podem chamar de apropriação cultural pode parecer uma prática diária para outros. O contexto é um aspecto fundamental para avaliar quais empréstimos podem ser apropriação cultural. O que muitos consideram constituir apropriação cultural na verdade refletem usos [de cultura] que consideram inadequados, não autorizados ou indesejáveis. As desigualdades de poder são muitas vezes importantes fatores contextuais subjacentes na apropriação cultural. Os grupos marginalizados e oprimidos têm sido, em muitos contextos, sujeitos à apropriação cultural. Nos Estados Unidos, os afro-americanos têm sido oprimidos e marginalizados por diversas vezes. Os padrões contínuos de apropriação das formas culturais afro-americanas refletiram o status de afro-americanos, particularmente quando a cultura afro-americana se difundiu mais amplamente nos Estados Unidos e em todo o mundo.

AP: No Brasil e nos EUA, o debate sobre a apropriação cultural gira em torno da música (por exemplo, pessoas brancas que começam a fazer parte do Hip Hop), em torno de símbolos como turbantes e dreadlocks também usados ​​por pessoas brancas e em torno do vestido tradicional de Cultura africana usada de maneira desrespeitosa. O que você acha sobre esses contextos?

FA: O empréstimo é uma regra  na criação e disseminação de variados elementos da cultura, da dança à música aos penteados e muitas outras formas de expressão. Os debates sobre apropriação cultural ficam mais complicados devido à realidade e à importância do empréstimo. Alguns que reivindicam a propriedade de elementos culturais podem ter um conhecimento limitado das origens desses elementos e as formas em que o empréstimo cultural provavelmente moldou tais elementos. Não creio que devamos ser obrigados a empreender uma escavação cultural sempre que usamos elementos culturais que podem vir de fora de nossa experiência. A exposição ao não familiar e a criação de formas culturais híbridas a partir dessa exposição são aspectos importantes da criatividade humana. O empréstimo é um elemento-chave da cultura. O empréstimo pode, por vezes, tornar difícil conhecer as origens das coisas que consideramos fazer parte da “nossa” cultura. Sem empréstimo, não teria hip hop e outras formas de música que surgiram ou tenham sido fortemente influenciadas pela cultura afro-americana, pelo menos na sua forma atual.

Como resultado, eu tendo a recuar contra reivindicações amplas de propriedade cultural, particularmente em certas áreas, incluindo cabelo e outros aspectos de vestimenta e aparência pessoal. Eu faço isso por duas razões. Em primeiro lugar, as origens dessas coisas podem ser complexas. Em segundo lugar, as decisões sobre o estilo pessoal são difíceis, se não impossíveis, de policiar. Como resultado, eu recomendaria abordagens diferentes para diferentes tipos de atos que podem ser percebidos como uma forma de apropriação cultural. Os tipos de apropriações generalizadas ligadas ao colonialismo e outros contextos de assimetrias de poder significativas, particularmente em contextos comerciais, devem ser ativamente combatidos através de todos os meios legais e outros dispositivos.

Em contraste, estratégias diferentes devem ser usadas para abordar escolhas individuais sobre penteados e moda que podem ser vistas como desrespeitosas por aqueles que têm maior conhecimento da cultura de origem. Não creio que possamos ou devamos proibir pessoas brancas de usar dreadlocks ou turbantes. Também não penso que possamos ou devemos proibir os afro-americanos de usar moda africana ou penteados. Em contextos não comerciais de escolhas individuais, o melhor que podemos fazer é tentar espalhar informações para incentivar um diálogo sobre como certas escolhas sobre cabelo e roupas podem ser vistas como ofensivas para os outros. Eu também não acho que a internet é muito útil aqui [nesse debate].

AP: Como a transformação desses elementos culturais negros em mercadorias contribui para o processo de apropriação?

FA: A apropriação cultural e a comercialização estão frequentemente conectadas. Além do colonialismo na África, minha pesquisa também se concentra na disseminação da influência da música afro-americana desde o fim da escravidão formal nos Estados Unidos. Durante o século XX, vimos uma significativa mercantilização da música afro-americana, que se tornou uma fonte dominante de música popular em todo o mundo. Nós também vimos padrões contínuos de exclusão de músicos afro-americanos na esfera musical em formas variadas ao longo do tempo. Esses padrões de exclusão freqüentemente refletiram as assimetrias de poder e o racismo.

AP: A jornalista Zipporah Gene, como muitos africanos, pede aos afro-americanos que deixem de se apropriar de roupas africanas e marcas tribais. Ela argumenta que isso indica “ignorância e insensibilidade cultural”. Como você avalia esse ponto de vista?

FA: Eu acho que o empréstimo é uma norma cultural. Vejo três tipos de categorias potencialmente sobrepostas de empréstimos culturais que eu gosto de usar para pensar em empréstimos e apropriação cultural. A primeira categoria é a pessoa que usa elementos culturais individualmente por razões variadas. Eles podem achar interessantes elementos culturais desconhecidos, eles podem ter uma identificação que os faz querer copiá-los, ou eles podem homenagear por razões pessoais ou outras. Esses tipos de uso são inevitáveis, se não desejáveis, e não podem nem devem, na maioria dos casos, ser interrompidos. No entanto, as pessoas que emprestam muitas vezes podem fazê-lo de maneiras que seriam diferentes (e, em alguns casos, até refletem ignorância ou insensibilidade) das pessoas mais familiarizadas com a cultura que é a fonte do empréstimo. A melhor abordagem para esses tipos de usos culturais é fazer as pessoas pensarem mais sobre como usam. Levar as pessoas a pensarem mais sobre isso envolveria falar diretamente e claramente sobre por que determinados usos podem ser percebidos pelos africanos neste caso como reflexo de ignorância e insensibilidade cultural em vez de dizer que deveriam parar de usar. Esta questão é, naturalmente, mais complicada no caso dos afro-americanos, que têm origens passadas na África e podem, por sua vez, ver seus empréstimos [da cultural africana] como uma celebração de seu próprio patrimônio cultural.

As diferenças no ponto de vista destacado por Zipporah Gene são penetrantes no diálogo sobre a cultura. Esses tipos de uso, no entanto, são distinguíveis de duas outras categorias que considero mais problemáticas. A segunda categoria envolve apropriações culturais que ocorrem em contextos comerciais. Esses usos são muitas vezes mais problemáticos porque podem envolver usos em contextos institucionais onde as fontes de empréstimos não são devidamente reconhecidas e para as quais não é paga uma compensação adequada. Vimos muitos exemplos desse tipo de apropriações nos contextos históricos dos usos da música afro-americana. Esses tipos de usos normalmente devem ser questionados e contestados, inclusive através de meios legais e outros caminhos.

A terceira categoria envolve usos de elementos culturais que se destinam a degradar ou que só podem ser considerados humilhantes à luz do contexto de seu uso. Blackface é um exemplo dessa categoria de apropriação cultural, que é altamente censurável. Os recentes filtros digitais do FaceApp que foram retirados quase imediatamente após seu lançamento refletem os usos da cultura e imagens que foram e devem ser combatidas ferozmente. Esta opção digital de blackface, como o filtro Bob Marley do Snapchat lançado em 2016, é uma manifestação contemporânea de imagens ligadas a uma longa história de apropriação cultural e opressão de pessoas de ascendência africana. Os usos desses tipos de imagens hoje refletem a ignorância e são claramente degradantes.

AP: No seu texto, você diz que “uma compreensão tanto do empréstimo quanto da apropriação deve ser incorporada em estruturas legais, empresariais e institucionais. Em campos como o direito da propriedade intelectual, é importante o reconhecimento maior das estruturas de poder subjacentes ao empréstimo em diferentes contextos” . Existe alguma coisa assim? Você poderia dar exemplos?

FA: Precisamos reconhecer que o empréstimo é uma regra e que a apropriação cultural é uma realidade que muitas vezes acompanha as desigualdades de poder. Temos um longo caminho a percorrer, mas essas questões estão sendo discutidas cada vez mais. Algum diálogo sobre isso surgiu nas negociações internacionais de propriedade intelectual sobre expressões culturais tradicionais e conhecimentos tradicionais. {/payplans}

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